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Preparativos e Celebração da Ceia Pascal

2.3 ANÁLISE DO ENREDO: A NARRATIVA EM

2.3.3 Preparativos e Celebração da Ceia Pascal

Depois de nos relatar o acordo que Judas firmara com os principais sacerdotes, Mateus passa aos eventos que se deram dentro da comemoração dos Ázimos. Novamente, Jesus é seu articulador. Numa narrativa breve, com apenas um diálogo curto em que os discípulos perguntam e Jesus responde, Mateus nos conta que os discípulos se apresentaram a Jesus com o intuito de preparar a Páscoa. Instruídos a irem a casa de alguém e solicitar o lugar para a celebração, os discípulos assim o fizeram. Sem maiores considerações, Mateus nos conduz à refeição preparada pelos discípulos, para a tarde daquele dia. Ali, na casa previamente solicitada, enquanto comiam a ceia, Jesus anuncia que um dos discípulos será quem o entregará. Nessa altura, a narrativa desacelera e Mateus usa o discurso direto para apresentar o conflito desse evento inicial da Paixão. Criando o efeito de neutralidade, Mateus apenas ordena o diálogo em que os personagens interagem. Mateus, num primeiro momento, não individualiza os discípulos, mas os apresenta como coletivo. Somos informados então que

eles se entristeceram e começaram a perguntar: “Não sou eu, sou, Senhor?” (26,22). Jesus não responde claramente à pergunta dos discípulos, mas lhes dá um indício: “O que coloca a mão na tigela comigo é o que me entregará” (26,23).

No entanto, Jesus assinala que tudo caminha conforme está escrito a seu respeito. Ou seja, sua entrega para ser crucificado é o cumprimento das Escrituras. E a ação daquele que o entregará, servia a esse propósito. Nesse meio tempo, Judas coloca a mão na tigela e é identificado. Ao perguntar se seria ele quem o entregaria, Jesus novamente não faz uma declaração explícita, mas insinua conhecer seu plano de traição: “Tu o disseste” (26,25). E prossegue na demonstração de seu conhecimento prévio do que está por vir, novamente insinuando conhecer o destino trágico de Judas: “ai daquele homem por quem o Filho do Homem é entregue. Melhor seria que não tivesse nascido” (26,24).

Percebemos nesse diálogo o conflito instaurado entre Jesus e os discípulos. Por um lado, Jesus será entregue para ser crucificado conforme dizem as Escrituras, mas sua entrega terá a participação pontual de um de seus discípulos. Todavia, nada acontece sem o prévio conhecimento de Jesus, que sabe e voluntariamente caminha em direção à sua entrega e crucificação.

Com esse desfecho, Mateus passa direto ao ponto seguinte, que é a instituição da ceia pascal como memorial da morte de Jesus. A instituição da Última Ceia recebeu, no cristianismo, a conotação de Sacramento, o que nos leva ao debate a respeito dos diversos aspectos que envolvem essa sua dimensão e todas as controvérsias que dela decorrem. Todavia, uma investigação a respeito desses pormenores fugiria em extremo ao nosso objeto de pesquisa. Por isso, nossa investigação abordará apenas aqueles que são de importância vital à análise dos recursos narrativos presentes na Paixão de Cristo Segundo São Mateus.

Uma questão importante e que se vincula à nossa pesquisa diz respeito ao aspecto memorial que Jesus atribui à Última Ceia. Como paradigmática que é, a morte de Jesus deve ser lembrada. Na apresentação desse aspecto, Mateus mais uma vez usa o discurso direto. Jesus mesmo institui o memorial de sua morte, que deve ser ritualizado numa refeição cujo cardápio é o pão e o vinho. Ao inserir a Última Ceia no contexto pascoal, Mateus amplifica o significado da própria Páscoa. O memorial anterior de celebração da libertação da escravidão no Egito passa a figurar, no Evangelho Segundo São Mateus, o evento da morte de Jesus, que assume uma dimensão universal de libertação espiritual e que é revivida no memorial da Ceia.

A respeito da força e significado do rito Eliade (1992, p. 38) chama a atenção para sua capacidade de permitir ao homem religioso adentrar no tempo sagrado e reatualizar o evento sagrado instituído. Por meio do rito, evita-se o esquecimento daquele evento paradigmático que se deu no passado e que é fundamental para a vida religiosa (ELIADE, 1992, p. 53). A morte, nesse contexto, assume um significado primordial, pois tem valor cosmogônico. É o retorno ao caos para possibilitar um novo início (ELIADE, 1992, p. 94). Dessa forma, a morte caracteriza-se como ritual de passagem de uma preexistência para a existência espiritual que se dá por um novo nascimento.

Além disso, na Santa Ceia, Jesus apresenta sua morte como sacrifício com derramamento de sangue pelo pecado. Nesse sentido, os sacrifícios pelo pecado prescritos nas Escrituras assumem, na Paixão Segundo São Mateus, a feição de figura da morte sacrificial de Jesus. Em Mateus, portanto, a Ceia assume a função ritual que permite ao discípulo participar do tempo sagrado em que Jesus ceou com os seus e, ao mesmo tempo, do evento de seu sacrifício pelos pecados. Nesse contexto, a própria Ceia converte-se em figura da morte de Jesus, constituindo-se num evento de significado imediato, mas que é amplificado na crucificação que prefigura. Todavia, ela também é amplificada no rito de sua celebração; pois, mais que uma refeição, a Ceia permite ao discípulo participar da mesma Ceia instituída por Jesus e, ao mesmo tempo, do sangue de seu sacrifício. Há, portanto, uma linha muito tênue que separa o evento da morte sacrificial de Jesus e a Ceia, sendo esta atemporal e restituível a qualquer tempo pelo ritual memorial de sua celebração.

Depois de postulada a natureza paradigmática a que a Última Ceia se articula com a morte de Jesus em Mateus, a narrativa caminha diretamente para os eventos que marcaram a entrega de Jesus para ser crucificado.