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3 TRAÇADO DA “DIFERENÇA” EM UMA VIAGEM AO MÉXICO

3.1 PREPARATIVOS DA VIAGEM

O percurso cumprido até aqui nos permite delimitar alguns parâmetros a serem considerados na análise do modo como o escritor Silviano Santiago utiliza a concepção da “diferença” no romance Viagem ao México, corpus selecionado para a pesquisa, vertendo sobre sua própria produção literária o aporte teórico desenvolvido ao longo do trabalho como crítico, pesquisador e professor.

O primeiro parâmetro a ser retomado consiste no dilema do intelectual latino- americano – bem como de qualquer outro intelectual das antigas colônias que ainda mantêm o espectro da dependência cultural ratificado pelo neocolonialismo – de submeter-se inteiramente ao modelo etnocêntrico ou de negá-lo em sua totalidade e voltar-se para a ancestralidade autóctone. A esse dilema, Silviano Santiago elege como alternativa a constituição de um lugar intermediário “entre” os dois extremos, uma vez que, diante da introjeção dos elementos da cultura dominante, não há meio de recusar-lhe as influências, além do que a extinção de muitos elementos das culturas autóctones impede o seu resgate integral. Esse “entrelugar” permite ao intelectual a observação, a análise e a interpretação dos diversos elementos culturais responsáveis pela sua formação.

Em razão disso, o escritor sustenta que a dependência cultural deveria ser assumida pelo intelectual latino-americano como inevitável, só que não de modo pacífico e ordeiro, mas acompanhada de uma postura crítica e transgressora. Para tanto, cabe ao intelectual selecionar aquilo que, na tradição etnocêntrica, abre espaço para a transgressão, aquele aspecto da tradição que, alcançando uma potência extrema, salta em direção ao outro, num legítimo movimento de repetição em “diferença”.

Isto porque, para a efetivação desse processo de observação, análise, interpretação, crítica e transgressão da cultura etnocêntrica, Silviano Santiago propõe a adoção, como conceito operacional, da noção de “diferença” cunhada a partir das propostas teóricas de Jacques Derrida e Gilles Deleuze, além dos demais aspectos de desconstrução e reversão elaborados pelos dois filósofos. Tal proposição sustenta-se exatamente no abalo provocado por esses conjuntos teóricos no pensamento metafísico ocidental que sustentou – e até hoje sustenta – as relações de dependência mantidas no decorrer do tempo e ratificadas pela era dita globalizada.

Com as propostas teóricas de Jacques Derrida e Gilles Deleuze, a “diferença” sai do lugar de inferioridade, ao qual foi relegada por força do pensamento metafísico ocidental fundado na identidade, e assume sua força afirmativa como potência primeira, como possibilidade de significação dentro de um determinado sistema, fora do qual inexiste sentido preestabelecido. Em se tratando de um jogo que, por precedê-las, torna possível a significação e a determinação de um conceito, a “diferença” não pode ser aferida em si mesma, pois ela não se deixa submeter aos limites do conceito e, via de consequência, às regras do sensível, da percepção e da representação.

Ocorre que a “diferença” tem uma dupla feição, por corresponder ao jogo diferencial responsável pela significação e conceituação e, a um só tempo, o efeito desse mesmo jogo. Assim sendo, a “diferença” não é passível de percepção enquanto jogo, mas o é apenas enquanto efeito, acontecimento ou fenômeno.

Desta forma, para abordar o papel da “diferença” no romance Viagem ao México, deve-se, em princípio, considerá-la enquanto força atuante no interior do processo de escrita. Por isso, parte-se do pressuposto de que Silviano Santiago tem ciência e consciência da atuação da “diferença” no processo de elaboração da escrita ficcional e da sua potência afirmativa, tanto que algumas das propostas teóricas referendadas na não-ficção do escritor aparecem no romance de modo explícito. Some-se a isso o fato de que vários de seus efeitos podem ser mapeados no decorrer do romance, um dos exercícios a que nos propomos neste capítulo.

Entretanto, como exercício preliminar, necessário se torna apresentar algumas características do romance Viagem ao México.

Dentre os estudos literários que se dedicam a abordar a intersecção do trabalho crítico e ficcional de Silviano Santiago – aos quais o presente trabalho pretende somar –, muitos deles apontam para o caráter exemplificativo do romance Viagem ao México, por tratar-se de uma prosa limite, um misto de romance, diário, biografia e ensaio, que rompe as já frágeis

fronteiras dos gêneros literários. O romance – para simplificar a referência ao corpus, pois a discussão quanto à natureza desse texto não constitui objeto deste trabalho – relata a viagem do dramaturgo francês Antonin Artaud ao México realizada no ano de 1936, com o objetivo de buscar na cultura ancestral mexicana elementos de renovação do decadente teatro burguês ocidental e da sociedade europeia. Apesar de acolher na narrativa diversos dados históricos e biográficos de Antonin Artaud e do próprio Silviano Santiago, trata-se de uma escrita ficcional, estratégia semelhante àquela utilizada quando da construção do romance Em liberdade (1994), no qual aborda os primeiros dias vivenciados por Graciliano Ramos após a saída da prisão em 1937.

Paralelo à narrativa da viagem de Antonin Artaud, Silviano Santiago reflete sobre o processo de colonização do Novo pelo Velho Mundo, a dependência cultural e as relações pós-coloniais; sobre a constituição da identidade e da alteridade na América Latina; e, ainda, sobre o papel do escritor na sociedade moderna, particularmente do escritor latino-americano, associado ao processo de elaboração da escrita.

Todas essas características fazem de Viagem ao México um texto complexo, que assume a dobra ficcional-ensaística explicitamente. Para nossa sorte, contudo, o leitor pode contar com a gentileza do escritor, que desde o início adverte quanto às estratégias ficcionais que serão usadas ao longo da narrativa, preparando-o para o porvir. Isso se verifica a partir da própria dedicatória, cujo teor ora transcreve:

A Heitor, Teresinha e Enrique Cortés, sem eles,

à cidade de Albuquerque (Novo México), sem ela,

eu não teria sido um outro. (VM11, p. 5)

Constata-se que logo na dedicatória o escritor mostra o enfrentamento da construção da identidade e da alteridade e do jogo relacional entre elas, que será um dos pontos de reflexão do texto que segue.

Prosseguindo na identificação das pistas dadas pelo escritor, também nos deparamos com o trecho de uma carta de Antonin Artaud endereçada a Jean Paulhan, “[...] datada de 1º de junho de 1934, em que aquele comenta as reações violentamente negativas deste à peça de teatro Héliogabale” (VM, p. 7), que funciona como epígrafe do romance. O excerto remete para o limite entre o ficcional/mentira e o real/verdade, tema recorrente na produção de

11 As transcrições do romance Viagem ao México serão chamadas pelas iniciais VM seguidas das páginas respectivas.

Silviano Santiago, demonstrando o papel da linguagem como elemento construtor dessas noções.

Munidos dessas advertências, o leitor adentra ao romance Viagem ao México, sendo recebido por um exórdio que, como o nome denuncia, faz um preâmbulo da narrativa, mais uma vez alertando quanto aos elementos de sua composição. Aqui o narrador – que também é escritor – entra em cena, expondo a assimilação da tradição etnocêntrica e o diálogo que com ela se estabelecerá, não se esquivando de esclarecer que a “diferença” será a grande mediadora, daí decorrendo a necessidade em transmudar-se em monstro.

O romance Viagem ao México está dividido em três partes, as duas primeiras compostas por quatro cantos e a última, por cinco cantos. O encerramento faz-se com um epílogo.

A primeira parte, denominada “Preparativos”, relata desde os fatos que influenciaram a decisão de Artaud em fazer a viagem até a adoção das providências práticas para sua realização. No “Canto I”, já se percebe o caráter fragmentário da narrativa, uma vez que ela dá-se a partir de uma personagem localizada na Paris da década de 1930 e de um narrador situado no Rio de Janeiro da década de 1990. Nele também são encontradas informações quanto à situação de Artaud no verão de 1935, momento em que decide pela viagem, e à forma como se estabelece o diálogo entre o narrador e o protagonista. No “Canto II” a narrativa retroage um pouco mais no tempo para contar os contatos de Artaud com as experiências do teatro oriental na Paris de 1931 e na Marselha de 1922 que tanto influenciaram suas propostas teatrais. Segue-se o “Canto III” mostrando uma tentativa de desintoxicação de Artaud como uma necessidade preparatória para a viagem. No último canto dessa parte, o “Canto IV”, o protagonista envolve-se com as providências práticas para a viagem.

A segunda parte, “As viagens”, dedica-se ao trajeto de Paris até o México, iniciando- se com o “Canto V”, no qual a narrativa está localizado na Antuérpia de 1936, local de passagem para os viajantes, assim como Artaud. O “Canto VI”, de sua parte, trata do período em que Artaud ficou a bordo do Albertville, o transcurso da viagem e suas inquietações. No “Canto VII” o narrador assume de modo mais pessoal a narrativa, para esclarecer algumas questões relativas à estratégia ficcional adotada e refletir um pouco sobre a situação de Cuba em 1993, estreitando o colóquio com Artaud, que faz uma escala em Cuba em seguida. Esta visita à ilha cubana faz parte do relato constante do “Canto VIII” e corresponde a um momento de crucial importância para a narrativa, por significar a “morte” e o “re-nascimento” do protagonista, preparando-o para a chegada ao México.

A terceira parte, finalmente, passa-se “No México” e é iniciada pelo “Canto IX” que trata da chegada de Artaud naquele país pela cidade de Vera Cruz e o deslocamento até à cidade do México, seu destino final. O “Canto X” subverte ainda mais a fragmentária narrativa, desde quando tem início com uma visita que a personagem principal faz ao narrador no Rio de Janeiro de 1994, oportunidade em que são abordados aspectos da crítica literária e teatral da década de 1990, para em seguida retornar a narrativa para a cidade do México de 1936, relatando os primeiros momentos de Artaud na cidade. Um dos pontos interessantes desse canto é a aproximação entre o dramaturgo francês e o narrador, porque vítimas da incompreensão por parte da crítica. O “Canto XI” tem início com uma série de questionamentos sobre a situação da América Latina, aos quais se sucede o relato de fatos referentes à estada de Artaud na cidade do México, a forma como é recepcionado pelos amigos de Torres Bodet e os primeiros problemas causados pelo vício. O “Canto XII” prossegue com o relato dos dias do protagonista no México, focando as decepções sofridas com o contato com os mexicanos, inclusive os intelectuais, e o princípio da compreensão de que sua viagem não atingirá a finalidade. No último canto do livro, o “Canto XIII”, o fracasso da viagem fica evidenciado, quer porque Artaud não conseguiu desvencilhar-se do vício, quer porque não encontrou a ancestralidade asteca que tanto procurava, quer porque o seu projeto não foi compreendido, principalmente por contrariar as propostas nacionalistas da época. Perante tantas frustrações, ele decide ir ao interior do país para estabelecer contato com os índios Tarahumaras, na tentativa de encontrar a ancestralidade mexicana que tinha ido buscar e, até aquele momento, não tinha sido encontrada.

Em linhas gerais, essa a descrição do romance acolhido como corpus de pesquisa e que será, nas linhas seguintes, submetido a uma leitura atravessada pelo aporte teórico evocado no capítulo precedente.