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1.4 A PRESENÇA DAS AQUARELAS

A aquarela é uma técnica de pintura na qual os pigmentos se encontram suspensos ou dissolvidos em água. É uma técnica muito antiga, cujo surgimento se supõe relacionado à invenção do papel e dos pincéis de pelo de coelho na China, há mais de 2000 anos.29 Os suportes utilizados na aquarela são variados; o mais comum é o papel com elevada gramatura. Fayga fez uso de materiais e 27 SAMPAIO, 2001, p. 153-155. 28 GEIGER, 2008, p. 78. 29

OLIVEIRA, Gilberto Habib (org.). Aquarela: a cor da memória. São Paulo: CLA Cultura Ltda., 2012, p. 19.

técnicas diferenciados e sempre os articulou muito bem. Entre os recursos utilizados desde o início de sua carreira encontra-se a técnica da aquarela.

Na técnica da aquarela o acaso também determina certas orientações, pois a tinta fluida faz com que não haja domínio pleno das possíveis irregularidades surgidas no ato criador. As pinceladas de aquarela aplicadas sobre papel formam uma fina camada de tinta que, se não for alterada, apresentará alguns contornos quando seca. Ao se aplicar pinceladas curtas e soltas sobre as previamente secas, pode- se obter uma rede de linhas fluidas e quebradas que, em alguns casos, contribuem para definir as formas.

Figura 9: Fayga Ostrower, Sem Título, Aquarela sobre papel, 38,1 x 27,9 cm, 1946.

Fonte: Instituto Fayga Ostrower.

Fayga encontrou nas aquarelas uma aventura constante, pois é uma técnica que exige uma rapidez extraordinária e, por meio dessa velocidade, aparece um

grande leque de possibilidades plásticas. Existe uma tensão entre o gesto da mão e a secagem da tinta no papel. Isso permite que um simples gesto seja carregado com uma carga emocional fundamentada em sua intuição.30 A artista procurava entender a técnica como uma linguagem artística. As camadas de tinta se intercalam entre cores transparentes e opacas e criam um jogo ritmado pelas escalas tonais. Em Composição Abstrata (Figura 10), aquarela produzida ainda na década de 1940, a artista conseguiu obter ritmo em variações das escalas cromáticas com uma grande alteração de tons azuis e verdes:

Tudo nessa técnica é ritmo, gesto fluido da mão a desenhar e pincelar, traços e manchas que flutuam quase imperceptivelmente entre valores claros aos mais escuros. Traz-me a mente a imagem de espaços luminosos cantantes. As transparências me fascinam. É difícil, porém, encontrar palavras para aquilo que intimamente se sente como beleza maior.31

Figura 10: Fayga Ostrower, Composição Abstrata, Aquarela sobre papel arches, 47,8

x 69,7 cm, 1947. Fonte: Instituto Fayga Ostrower.

30 SAMPAIO, Lilia. “A Beleza da Aquarela”. In: LUSTOSA, Heloisa Aleixo; COUTINHO, Wilson;

SAMPAIO, Lilia. A Música da aquarela. Rio de Janeiro: Ministério da Cultura, 1999, p. 11-12.

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OSTROWER, Fayga. Algumas considerações sobre técnica e forma expressiva. Rio de Janeiro: Catálogo da Exposição n° 251, Galeria Bonino, 1980.

Ao optar por uma técnica ou ao decidir trabalhar com certo material, sempre se inicia a procura de uma linguagem. O pensamento imaginativo do artista começa a especular e propõe as viabilidades materiais para configurar formas expressivas. Os termos da linguagem visual se ampliam e proporcionam aspectos específicos que podem evidenciar um novo sentido para essa matéria.32

A técnica pode ser comparada a um instrumento musical. Assim como o compositor imaginaria uma obra, tendo em mente a gama e sonoridade de certos instrumentos, piano, violino, grande orquestra, o artista plástico também se decide por determinada técnica de pintura, desenho ou gravura a partir de certos efeitos visuais ele conhece e avalia: tessituras, formas, cores, massas. Na escolha da técnica, sem dúvida hão de influir circunstâncias concretas – uma encomenda que o artista poderá ter recebido, um convite, uma exposição, ou um mero acaso que lhe despertou o interesse. Mas, no fundo, a seleção da técnica corresponderá a uma seletividade interior da pessoa. De outro modo não seria significativo o interesse. Assim, a real opção talvez nem se dê em termos conscientes, obedecendo, antes, a uma predeterminação interiorizada que encontra no momento oportuno uma espécie de pretexto para se manifestar.33

Na busca pela metodologia que melhor atenda aos seus anseios, cada artista cria uma relação mais próxima com as técnicas que ele julga ser interessante para seus trabalhos. Motivada por necessidades expressivas, Fayga Ostrower começou uma pesquisa sobre os problemas formais suscitados pelas aquarelas, entre eles o tratamento dado ao espaço pictórico, em que as formas se organizam e sugerem uma abertura e ampliação.34

Em contrapartida à cor impressa, na qual as transparências são muito difíceis de serem obtidas de forma plena, a aquarela possui como uma de suas maiores características a fluidez das cores translúcidas:

A artista lança mão deste meio para procurar a fluidez do processo de coloração e as transparências luminosas da matéria. A aquarela é tecnicamente difícil porque a aguada define-se rapidamente. Entre o gesto e a secagem exige-se o domínio do processo técnico sendo impossível consertar o que ficou registrado e a intuição é indispensável ao ato de criação.35 32 OSTROWER, 1980. 33 OSTROWER, 1980. 34

COCCHIARALE, Fernando. Aquarelas de Fayga Ostrower: poesia e expressão. Rio de Janeiro: Catálogo da Exposição n°295, Galeria Bonino, 1983.

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As aquarelas foram vitais para fase inicial da abstração.36 E têm o elemento visual cor como uma espécie de coluna vertebral37, que proporciona a sustentação da

obra em uma profusão de cores contrastantes, além de movimentos sinuosos e insinuantes, vazios instigantes e traços diagonais. Com uma grande preocupação ligada às questões de estruturação espacial, Fayga ordenava o espaço em contrastes obtidos pela sobreposição da tinta diluída:

Para uma artista atenta a construção espacial estruturada, os efeitos colorísticos diluídos da aquarela não são suficientes para organizar o conjunto da composição. Por isso, as transparências estão contrapostas nas áreas onde a cor é aplicada mais densamente, delimitando formas e ordenando o espaço por contrastes visuais.38

A aquarela é a música das artes visuais. Constituída fisicamente por um mínimo de elementos, possui um efeito que vai além do material. A expressão adquirida nessa técnica tem uma enorme densidade lírica e poética. Por mais rápido que seja o manuseio do artista, os traços nascem impregnados com sua sensibilidade e intelecto, e compõem uma música apreciada pelo olhar.

Figura 11: Fayga Ostrower, Composição Abstrata, Aquarela sobre papel arches, 75,8

x 56,7 cm, 1988. Fonte: Instituto Fayga Ostrower.

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GAGE, John. A cor na arte. São Paulo: Martins Fontes, 2012, p. 106.

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IVO, Gonçalo; CRUZ, José Maria Dias; LYRA, Edgar. Gonçalo Ivo Aquarelas Watercolours

Aquareles. Rio de Janeiro: Andrea Jakobsson Estúdio, 2002. 38