• Nenhum resultado encontrado

O primeiro Plano Diretor de Ouro Preto –

3.1.2. Da preservação do patrimônio cultural

O início dos anos 1980, no Brasil, foi marcado por um redirecionamento intencional na política de preservação do patrimônio, quando em 1979, Aloísio de Magalhães assumiu a direção do IPHAN, traçando um novo desenho para o quadro institucional relacionado com a questão cultural no Brasil. Em janeiro de 1980, o IPHAN foi transformado em uma Secretaria do Ministério da Cultura (Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – SPHAN), tendo como órgão executivo a Fundação Nacional Pró-Memória – FNPM.

Em entrevista concedida no início de sua gestão, o próprio Aloísio de Magalhães explicou sobre a mudança de postura que o órgão teria a partir de então:

Trata-se, basicamente, da superação do velho critério de “pedra e cal” que, de certo modo, predominou durante tanto tempo no tratamento do patrimônio histórico e artístico. Não se trata de desconhecer a contribuição que este critério trouxe durante este tempo, mas, isto, sim, retomar a força do extraordinário documento legal que criou o IPHAN.

[...] O IPHAN orientou-se pela ideia de cobrir todo o país, nem sempre ouvindo a comunidade sobre a conservação de seu patrimônio. Não sou a favor desta ideia. Esta postura elitista de tantos anos talvez seja consequência do próprio sistema político brasileiro, no seu sentido histórico e tradicional. A ação que vamos procurar empreender é tentar fazer com que a comunidade, nos seus afazeres e na sua vida, se conscientize de sua ambiência cultural. Isto é, temos que procurar dar à comunidade um status de vida que lhe permita entender por que determinado prédio está sendo preservado. Em outras palavras, a própria comunidade é a melhor guardiã de seu patrimônio (Brasil, 1980, p.11).

Como se vê, já no processo de distensão política pelo qual o país passava, o IPHAN começou a refletir sobre sua política, até então bastante autoritária, evidenciando, a

76 Um dos programas descentralizadores implementados por tal governo, com rebatimentos no

planejamento urbano e na preservação do patrimônio cultural, foi o Programa Nacional de Municipalização do Turismo – PNMT, em 1995, por meio da Empresa Brasileira de Turismo – EMBRATUR. O PNMT apresentava como princípios a descentralização, a sustentabilidade, a criação de parcerias com órgãos responsáveis pelo turismo nos estados, a mobilização por meio de agentes multiplicadores e a capacitação do setor. Segundo Sales (2012), o programa delegava aos municípios a função de planejar o desenvolvimento do turismo. A descentralização calcava-se na visão de que a comunidade local é quem vivencia os problemas, determina suas necessidades e quem melhor pode identificar as potencialidades turísticas da região. Assim, o PNMT mobilizaria recursos e iniciativas locais, além de possibilitar a abertura do planejamento turístico à contribuição de potenciais beneficiários, por meio da criação de canais participativos. Mais detalhes sobre este assunto podem ser vistos na dissertação “A (possível) interface entre patrimônio cultural e turismo nas políticas públicas em Minas Gerais”, de Álvaro Américo Moreira Sales (NPGAU/UFMG, 2012), na qual o autor discutiu a estrutura do planejamento de políticas públicas nos âmbitos estadual e municipal em Minas Gerais; a relação entre patrimônio cultural e turismo nas políticas públicas; e a política estadual de patrimônio cultural e o seu grau de articulação com a política de turismo.

necessidade de escutar as comunidades. Paralelamente a este processo, nota-se nesse período, uma grande efervescência na produção das chamadas Cartas Patrimoniais, que sempre influenciaram as políticas nesta área em todo o mundo. Nelas, pode ser observado o emprego de expressões recorrentemente utilizadas nos planos urbanos elaborados nesta época, tais como participação da comunidade, cidadania, valor social da propriedade, gestão democrática, etc.

A Carta de Machu Picchu, elaborada no Encontro Internacional de Arquitetos, em dezembro de 1977, pressupunha fazer uma revisão da Carta de Atenas do CIAM (1933). Nela, diz-se que o planejamento, no contexto coevo de urbanização, deveria refletir a unidade dinâmica das cidades e suas regiões circundantes, tanto como as relações funcionais essenciais entre bairros, distritos e outras áreas urbanas. Além disso, reforçava que

o planejamento, os profissionais e as autoridades pertinentes devem ter presente que o processo não termina na formulação de um plano e em sua subsequente execução, mas que, sendo a cidade um organismo vivo, é necessário considerar e prover os processos de sua manutenção (Carta de Machu Picchu, 1977, In: Cury, 2004, p. 242, grifos nossos).

A “Carta Internacional para a salvaguarda das cidades históricas”, elaborada em 1986 e conhecida como Carta de Washington, é considerada como o complemento Carta de Veneza (1964). Naquela, entendeu-se por “salvaguarda das cidades históricas”, as medidas necessárias à sua proteção, conservação e restauro, bem como o seu desenvolvimento coerente e a sua harmoniosa adaptação à vida contemporânea. Ressaltou-se, no texto, que a participação e o envolvimento dos habitantes da cidade eram imprescindíveis ao sucesso da salvaguarda e que esta diz respeito, em primeiro lugar, aos seus habitantes. Assim, “o plano deveria ter a adesão dos habitantes” (Carta de Washington, 1986, In: Cury, 2004, p. 283).

Assim, considerou-se que a introdução de elementos de caráter contemporâneo aos sítios históricos, desde que não perturbassem a harmonia do conjunto, poderia contribuir para o seu enriquecimento. Porém, recomendou-se que a circulação de veículos nesses sítios deveria ser rigorosamente regulamentada e que os grandes traçados viários previstos no planejamento físico-territorial não deveriam penetrar nas cidades históricas, mas apenas facilitar o tráfego na aproximação destas cidades e permitir-lhes um acesso fácil.

No ano seguinte, no Seminário Brasileiro para a preservação e revitalização de centros históricos, foi elaborada a Carta de Petrópolis (1987). Nesta, nota-se um avanço da questão conceitual na abordagem ao patrimônio cultural, cuja participação da população passou a ser condição sine qua non. A partir de então, formalmente, o sítio histórico urbano foi entendido como parte integrante de um contexto amplo que comporta as paisagens

natural e construída, o que implica a consideração das (re)ações antrópicas continuamente. Além disso, o objetivo último da preservação seria a manutenção e potencialização de quadros e referenciais necessários para a expressão e consolidação da cidadania. “É nessa perspectiva de reapropriação política do espaço urbano pelo cidadão que a preservação incrementa a qualidade de vida” (Carta de Petrópolis, 1987, In: Cury, 2004, p.286).77

Acrescenta-se ainda que a preservação dos sítios históricos urbanos deveria ser pressuposto do planejamento urbano, o qual era entendido como processo contínuo e permanente, alicerçado no conhecimento dos mecanismos formadores e atuantes na estruturação do espaço, para além dos perímetros de tombamento. Para isso, considerou-se fundamental a ação integrada dos órgãos federais, estaduais e municipais, bem como a participação da comunidade interessada nas decisões de planejamento, como uma das formas de pleno exercício da cidadania. Nesse sentido, foi considerado imprescindível a viabilização e o estímulo aos mecanismos institucionais que assegurassem “uma gestão

democrática da cidade, pelo fortalecimento da participação das lideranças civis” (Carta

de Petrópolis, 1987, In: Cury, 2004, p.286, grifos nossos).

No processo de preservação dos sítios, a Carta ressaltou que o inventário, como parte dos procedimentos da análise e compreensão da realidade, constituía-se na ferramenta básica para o conhecimento do acervo cultural e natural.78 Entendia-se que a realização do inventário, com a participação da comunidade, proporcionaria não apenas a obtenção do conhecimento do valor por ela atribuído ao patrimônio, mas também, o fortalecimento dos seus vínculos em relação a este patrimônio. Entretanto, outras formas de proteção e outros instrumentos, inclusive urbanísticos, também foram citados no documento, tais como: normas urbanísticas, desapropriação, isenções e incentivos fiscais, etc. Assim, “na diversificação dos instrumentos de proteção, considera-se essencial a predominância do valor social da propriedade urbana sobre a sua condição de mercadoria” (Carta de Petrópolis, 1987, In: Cury, 2004, p. 287).

Como se pode notar, a importância da participação popular nos processos decisórios disseminou-se, também, para as políticas de preservação do patrimônio cultural. Por sua

77 A Carta de Petrópolis traz também a recomendação de que especial atenção deve ser dada à

permanência das populações residentes e das atividades tradicionais no sítio histórico urbano, desde que compatíveis com a sua ambiência.

78 O ano de 1988 foi declarado o Ano Nacional do Inventário, ocasião em que a cidade de Ouro Preto

foi novamente inventariada. Foram feitos inventários dos imóveis que compunham os principais centros históricos do país, com levantamentos documentais, fotografias, medições e preenchimento de questionário socioeconômico pelos proprietários ou usuários dos imóveis. Privilegiando mais uma vez os centros históricos, a SPHAN não se ateve às franjas e espaços de transição com as ocupações mais recentes, o que poderia subsidiar ações no sentido de mitigar as pressões de descaracterização vindas destas.

vez, a Constituição Federal, de 1988, incorporou os avanços preconizados pelas Cartas Patrimomiais e pelo redirecionamento da atuação do IPHAN, caracterizando melhor o patrimônio cultural brasileiro e ressaltando a importância da participação da comunidade:

Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:

I - as formas de expressão;

II - os modos de criar, fazer e viver;

III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas;

IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais;

V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.

§ 1º - O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação (Brasil, 1988, grifos nossos).

Neste ínterim, a Carta de Cabo Frio, redigida em 1989, reforçou que o êxito de uma política preservacionista teria como fator fundamental o engajamento da comunidade, que deveveria ter por origem um processo educativo em todos os níveis, com a utilização dos meios de comunicação (Carta de Cabo Frio, 1989, In: Cury, 2004).

Vale ainda destacar a Carta do Rio, produzida na II Conferência Mundial para o Meio Ambiente e Desenvolvimento, conhecida como Eco 92. Entre os vinte e sete prinicípios acordados, ressaltou-se que o melhor modo de tratar as questões ambientais seria através da participação de todos os cidadãos interessados no nível correspondente. Ressaltou, também, que, no plano nacional, qualquer pessoa deveria ter acesso adequado à informação sobre o meio ambiente de que dispuserem as autoridades públicas, inclusive a informação sobre os materiais e as atividades que ocasionassem perigo a suas comunidades, assim como a oportunidade de participar nos processo de tomada de decisões:

Princípio 10: [...] Os Estados deverão facilitar e incentivar a sensibilização e a participação da população, colocando a informação à disposição de todos. Deverá ser proporcionado acesso efetivo aos procedimentos judiciais a administrativos, entre os quais o ressarcimento de danos e os recursos pertinentes (Carta do Rio, 1992, In: Cury, 2004, p. 314).

Por fim, ressalta-se que, na década de 1990, houve uma grande produção de cartas, onde a questão do patrimônio imaterial começa a ser cada vez mais debatida e a ter mais

peso e relevância, tais como a Carta de Mar del Plata (1997)79 e a Carta de Fortaleza (1997).80 De modo geral, recomendava-se que a preservação do patrimônio cultural fosse abordada de maneira global, fomentando, inclusive, a articulação das políticas de preservação patrimonial e turismo, para possibilitar o desenvolvimento social produtivo. Além disso, ambas as cartas recomendaram que os estudos de impacto ambiental abordassem o impacto cultural e que o item “patrimônio cultural” fosse regulamentado de modo a contemplar a sua amplitude.