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CAPÍTULO 3 ASPECTOS METODOLÓGICOS E ÉTICOS

3.1 PRESSUPOSTOS BÁSICOS

Os debates epistemológicos ocorridos no século XX, que colocaram em questão as bases racionalistas e empiristas nas quais se apoiavam as ciências, trouxeram ênfase à subjetividade nas reflexões sobre ciência enquanto processo de construção do conhecimento, ao tempo em que favoreceram a hermenêutica e a dialética como possibilidades de superação das dicotomias que imperaram durante séculos no campo científico (Diriwächter & Valsiner, 2006; Minayo, 2000; Rey, 2002). Controvérsias fazem parte dos debates no campo científico, em particular nas ciências humanas, representando um desafio epistemológico no sentido de estar sempre repensando suas construções teóricas e metodologias de pesquisa para compreensão da pluralidade e dinamismo da realidade na qual se insere o ser humano nas dimensões social, cultural e histórica (Branco e Valsiner, 1997; Branco e Rocha, 1998; Grandesso, 2006; Valsiner, 2007a, 2009a, 2010).

De acordo com Valsiner (2007a), a metodologia de pesquisa, em sua acepção mais ampla, reúne um conjunto de perspectivas teóricas e epistemológicas congruentes (quadro referencial), que orienta o foco do pesquisador sobre o objeto de estudo. O autor destaca que o avanço do conhecimento não depende de técnicas analíticas sofisticadas, mas das estratégias usadas para definir para onde olhar, o que comparar e o que assumir sobre os fenômenos. Crawford e Valsiner (2002), ao considerar que nos processos interpretativos envolvidos na pesquisa empírica o pesquisador se utiliza tanto do conhecimento da experiência vivida no mundo quanto do conhecimento científico, destacam a experiência intuitiva do pesquisador no processo de interpretação. As possíveis generalizações que irão resultar da investigação (objetivo básico do investimento científico) dependem fundamentalmente da ligação intrínseca entre todos os elementos da pesquisa (dados, métodos, interpretação). Portanto, a generalização do conhecimento não pode ser vista como repousando apenas sobre a objetividade no processo de pesquisa, devendo o pesquisador demonstrar a validade de suas interpretações, tendo em vista a sua perspectiva particular. Valsiner (2007a) destaca que a

questão crucial para a metodologia é a modulação dinâmica do distanciamento entre o pesquisador e os fenômenos em estudo, incluída nisso a construção de teoria e método.

Enfatizamos o caráter construtivo-interpretativo no processo de construção do conhecimento nas ciências humanas, compreendido como produção e não como apropriação linear de uma realidade, como aponta Rey (2002, 2005). Com essa concepção, na construção do conhecimento em pesquisa, enquanto um processo reflexivo do (a) pesquisador (a) como sujeito, não há como separar elementos da constituição subjetiva – crenças, valores, afetos, histórias – de sua produção. Assim, concordamos com Rey (2005) ao destacar que o pesquisador co-constrói com os demais sujeitos envolvidos o conhecimento que resulta da prática da pesquisa, sendo o acesso à realidade concebido como um domínio infinito de campos inter-relacionados, parcial e mediado pelas próprias práticas. Esse processo de interpretação dentro da pesquisa esta representado pelo diagrama do ciclo Metodológico, proposto por Valsiner (2007a), na Figura 3.

Figura 3. A atividade de interpretação no ciclo metodológico (Valsiner, 2007a).

Com base nessas concepções, buscamos utilizar estratégias que possibilitassem o olhar produtivo sobre o objeto de estudo. Desse modo nos propomos a investigar o processo de reconstrução de significados através do interjogo indivíduo < > cultura expresso nas narrativas de histórias de vida, apoiado nos pressupostos teóricos e metodológicos da Psicologia Cultural, na Abordagem Narrativa e na Teoria do Self dialógico.

Mais especificamente quanto à validade do conhecimento construído em pesquisa, este estudo se apoia na noção de amostragem historicamente estruturada (Historically Structured Sampling - HSS), apresentada por Valsiner & Sato (2006). A HSS compreende que as

trajetórias individuais refletem a diversidade de trajetórias de histórias de vida, ao mesmo tempo em que refletem as similaridades entre elas num dado contexto sociocultural e em certo nível de abstração do conhecimento, o que possibilita a generalização e construção teórica. A noção de HSS se baseia numa orientação idiográfica e no conceito de equifinalidade dos sistemas abertos, originado na teoria geral dos sistemas proposta por von Bertalanffy. Valsiner & Sato (2006) esclarecem que equifinalidade é uma propriedade dos sistemas abertos de alcançarem um mesmo estado de desenvolvimento a partir de diferentes formas e condições iniciais, que implica na compreensão de que trajetorias individuais diferenciadas podem convergir para pontos de equifinalidade. Com essa compreensão o modelo HSS contribui para minimizar tensões na relação singularidade < > generalidade nas práticas de construção teórico-metodológica (Valsiner, 2006a, 2007a).

As abordagens e métodos narrativos têm sido considerados por diversos autores (Bruner, 2004; Brockemeier & Carbaugh, 2001; Brockemeier & Harré, 2003; Lieblich et al, 1998; Murray, 2000) como recursos importantes para o estudo do Self, notadamente para a compreensão do processo de construção do Self situado no contexto sociocultural. Brockmeier e Harré (2003) consideram os estudos de narrativas uma abordagem produtiva para o problema do entendimento dos padrões dinâmicos do comportamento humano, corroborando com o pensamento de Bruner (2004), segundo o qual as narrativas são um modo específico de construção e constituição da realidade. Esses autores afirmam que na medida em que estudamos as narrativas estamos examinando as maneiras pelas quais as pessoas dão sentido às suas experiências e estruturam o conhecimento do mundo e de si mesmos. Em concordância com esses autores, consideramos que as narrativas de histórias de vida favorecem um lócus privilegiado do encontro entre a vida privada do indivíduo e sua inserção na história social e cultural, evidenciando a interpenetração entre sujeito e cultura. A narrativa de história de vida, como uma construção ativa que se organiza no tempo e espaço vividos, evidencia os diálogos negociados entre o indivíduo e seu ambiente imediato (pares, família, trabalho etc.), bem como entre o indivíduo e o amplo universo cultural (mitos, crenças, regras, convenções).

Portanto, os métodos narrativos favorecem a investigação proposta neste estudo na medida em que possibilitam explorar a dinâmica do processo de reconstrução de significados e auto-organização do Self a partir das narrativas de experiências vividas ao longo do curso de vida.