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3 CONTEÚDO E EFEITOS DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA NO PROCESSO

3.4 PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA COMO REGRA DE TRATAMENTO: PRISÕES

A partir da Carta Magna de 88, a expressão “ninguém pode ser considerado

culpado estabelecida no seu art. 5º, inciso LVII, enaltece o entendimento do princípio

como regra de tratamento do indivíduo, pois impede que o acusado receba tratamento

que é destinado aos culpados antes da sentença condenatória.144

Nesse sentido, Souza Netto145 argumenta que o âmbito da presunção de

inocência não se limita à disciplina probatória, já que parte do devido processo legal

e irradia por todo o sistema penal de intervenção estatal sobre uma pessoa,

alcançando, assim, a investigação do cidadão e o tratamento a ele dispensado em

toda a trajetória até a aplicação ou não da pena.

Desse modo, segundo Camargo146, o reflexo mais marcante dessa vertente

do princípio é visto na disciplina prisional. Isso porque, a prisão transmite o estigma

de culpado ao indivíduo que está sendo processado, pelo qual sua aplicação antes da

sentença condenatória definitiva (sentido que veremos melhor mais adiante) deve ser

reservada apenas para casos excepcionais, em que a necessidade de medidas

cautelares seja demonstrada, sob pena de violação da presunção de inocência.

Portanto, a segunda consequência que pode ser extraída da presunção de

inocência é a preservação, como regra, da liberdade física do acusado durante o

processo penal.

Primeiramente, precisamos entender como funciona o regime das prisões

processuais no nosso ordenamento jurídico, principalmente após as reformas de 2008

e 2011 na lei processual. Atualmente, conforme o entendimento do Supremo Tribunal

Federal, a prisão decorre de apenas duas possibilidades: a derivada de sentença

penal condenatória irrecorrível (após o trânsito em julgado), e a prisão decorrente de

medida cautelar, antes do fim do processo, quando são preenchidos os requisitos

quanto à sua necessidade, que serão vistos adiante.

144

CAMARGO, Monica Ovinski de. Op. cit. p. 257.

145

SOUZA NETTO, José Laurindo de. Op. cit. p. 154.

146

CAMARGO, Monica Ovinski de. Op. cit. p. 256-257.

Pacelli147 afirma que o Código de Processo Penal de 1941, em sua redação

original, foi elaborado com base no juízo de antecipação de culpabilidade, na medida

em que a fundamentação da custódia remetia apenas à lei, e não a uma razão cautelar

específica.

Havia, por exemplo, as prisões automáticas que derivavam da pronúncia e de

condenação recorrível, constituindo, inclusive, a prisão como condição de

admissibilidade para o recurso de apelação.

Tal paradigma foi alterado a partir da vigência da Constituição de 1988, com

os incisos LVII e LXI do art. 5º148, e principalmente, com a Lei 11.719/2008, que

promoveu profundas alterações na matéria, exigindo, por exemplo, que toda prisão

anterior à sentença condenatória funde-se em ordem escrita e fundamentada da

autoridade judiciária competente.149

As mudanças foram complementadas com a Lei 12.403/2011, que trouxe

inúmeras alternativas ao cárcere, afastando a prisão provisória com a nova redação

do art. 283 do CPP150 e instituindo de forma definitiva a natureza cautelar de toda

prisão antes do trânsito em julgado, fixando o caráter excepcional e subsidiário dessas

prisões.151

Dentre outras mudanças, houve a revogação expressa dos arts. 595 e 393,

ambos do CPP152, que determinavam, respectivamente, a deserção da apelação pela

fuga do réu e o lançamento do nome do condenado em primeiro grau no rol dos

culpados. Pacelli153 lembra que mesmo antes da alteração legislativa, a Súmula 347

147

OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Op. cit. p. 496-497.

148

LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;

LXI - ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade

judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos

em lei;

149

OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Op. cit. p. 497.

150

Art. 283. Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada

da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado

ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão

preventiva. (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).

151

OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Op. cit. p.498 - 499.

152

Art. 595. Se o réu condenado fugir depois de haver apelado, será declarada deserta a apelação.

Art. 393. São efeitos da sentença condenatória recorrível: I - ser o réu preso ou conservado na prisão,

assim nas infrações inafiançáveis, como nas afiançáveis enquanto não prestar fiança; II – ser o nome

do réu lançado no rol dos culpados.

do STJ já pregava que “O conhecimento de recurso de apelação do réu independe de

sua prisão”154.

Visto que as prisões processuais atualmente admitidas só podem possuir

natureza cautelar, adentraremos na análise dos requisitos que as autorizam.

Inicialmente, Camargo155 aponta duas características que revestem as medidas

cautelares, que são a provisoriedade e a proporcionalidade. A primeira indica que a

medida cautelar é instrumental, o que significa que é utilizada para alcançar

determinado objetivo durante o processo criminal, podendo ser usada ou descartada

a qualquer momento. Já a proporcionalidade é aquela que orienta os juízes a respeito

da necessidade de aplicação da medida cautelar, sopesando-se as razões que

levaram à adoção da medida e o prejuízo que é causado pela restrição do direito.

Segue a autora dizendo que os requisitos legais para a aplicação das medidas

cautelares não são exatamente os mesmos que os do processo civil, já que estes

correspondem ao fumus boni iuris e ao periculum in mora, e possuem como objeto

questões patrimoniais, ao passo que no processo penal, o objeto é

predominantemente a liberdade do indivíduo. Assim, para a determinação de uma

prisão cautelar, não é correto falar-se em fumaça do bom direito, mas na existência

de provas de materialidade e fortes indícios sobre a autoria. Da mesma forma, o

periculum in mora não reflete no processo penal o perigo na demora em si, mas em

outros fatores como o perigo de fuga, a perturbação ao normal desenvolvimento do

processo e a suscitação de desordem social ou econômica.156

No mesmo sentido, Aury Lopes Jr.157 critica a impropriedade na utilização pela

doutrina tradicional do fumus boni iuris e do periculum in mora como fundamento das

medidas cautelares do processo penal, pois não se pode afirmar que há fumaça do

bom direito para a decretação da prisão cautelar, mas a existência do fumus comissi

delicti, como probabilidade de cometimento de um delito, ou mais especificamente,

referente à prova de existência do crime e indícios suficientes de autoria.

Ainda, com relação ao periculum in mora, o autor alega que tal conceito é

cabível apenas quanto às medidas cautelares reais, cuja demora pode fazer com que

154

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmula 347. Disponível em:

<

https://ww2.stj.jus.br/docs_internet/revista/eletronica/stj-revista-sumulas-2012_30_capSumula347.pdf.>. Acesso em 26 de agosto de 2015.

155

CAMARGO, Monica Ovinski de. Op. cit. p. 258-259.

156

Ibidem. p. 260-261.

haja a dilapidação do patrimônio do acusado. Entretanto, com relação às medidas

coercitivas pessoais (como na prisão preventiva), o risco assume outro caráter158.

Nesse sentido:

Em primeiro lugar, o periculum não é requisito das medidas cautelares, mas

sim o fundamento. [...] Aqui o fator determinante não é o tempo, mas a

situação de perigo criada pela conduta do imputado. Fala-se, nesses casos,

em risco de frustração da função punitiva (fuga) ou graves prejuízos ao

processo, em virtude da ausência do acusado, ou no risco ao normal

desenvolvimento do processo criado por sua conduta (em relação à coleta da

prova) [...] Logo, o fundamento é um periculum libertatis, enquanto perigo que

decorre do estado de liberdade do imputado.

159

(grifo no original).

O perigo de fuga deve ser comprovado por meio de provas certas, tais como

quando o indivíduo está se desfazendo dos bens, preparando documentos para

viagem e outros. Já a perturbação ao normal andamento do processo pode ser

configurada quando há ameaça a testemunhas, tentativas de interferir na coleta de

provas, de corromper os peritos e dentre outros. Por fim, com relação ao risco da

ordem pública, esta poderá ser configurada quando as atitudes do indivíduo

demonstrarem riscos para a paz social, como a prática de novas infrações penais,

apologia ao crime, reunião em quadrilha ou bando e outros.160

Em suma, estes são os requisitos necessários para que uma medida cautelar

seja aplicada, permitindo assim, que ela seja imposta antes da sentença condenatória

irrecorrível.

Dessa forma, o princípio da presunção cria uma regra de proibição do Estado

em restringir a liberdade pessoal baseada unicamente na possibilidade de

condenação futura. Por conseguinte, segundo o entendimento predominante,

qualquer tipo de prisão processual obrigatória ou automática, que não seja

fundamentada em razões cautelares, violaria a presunção de inocência.161

Resumidamente, vimos então, que o âmbito da atuação da presunção de

inocência produz dois efeitos: um deles é no âmbito probatório, incumbindo à

acusação o dever de comprovar a responsabilidade criminal acima de qualquer dúvida

razoável, resultando também no princípio in dubio pro reo; e o outro se relaciona à

158

Ibidem. p. 200-201.

159

Idem.

160

CAMARGO, Monica Ovinski de. Op. cit. p. 261.

161

FIGUEIREDO, Igor Nery. Op. cit. p. 57-58.

proibição da restrição da liberdade do réu antes da sentença, apenas pelo fato de

estar respondendo a uma ação penal. 162

Segundo Nucci163, o alvo principal da presunção de inocência é fazer com que

o dever de provar a culpa seja do órgão acusatório. Os efeitos secundários seriam

relacionados às restrições de direitos individuais apenas em situações excepcionais,

os quais acabamos de analisar. Ademais, a presunção atrairia a aplicação de

princípios correlatos, como a de que ninguém é obrigado a se auto acusar e a do

direito ao silêncio.

Assim, pode-se dizer que o núcleo duro do princípio é aquele que trata do

standard de prova para a condenação, que não admite qualquer tipo de restrição.

Entretanto, o efeito do princípio no tratamento do acusado, apesar de impedir

restrições aos seus direitos antes do julgamento ou revesti-los de caráter excepcional,

não possui natureza absoluta, podendo neste ponto ser relativizado.164

Partindo-se da premissa de que é possível a restrição do princípio quanto ao

tratamento do acusado, é que serão tratados, nos próximos capítulos, algumas críticas

referentes à duração do princípio da presunção de inocência estabelecida em nossa

Constituição.

162

Ibidem. p. 58.

163

NUCCI, Guilherme de Souza. Princípios... p. 334

164

MORO, Sergio Fernando. Crime... p. 154.

4 CRÍTICA À DIMENSÃO TEMPORAL DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA: ENTRE