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Primado da percepção e a tarefa de uma descrição fenomenológica da experiência estética

4 DESCRIÇÃO FENOMENOLÓGICA DA EXPERIÊNCIA ESTÉTICA E SUA CULMINÂNCIA NO SENTIMENTO, COMO ANÚNCIO DE UMA SIGNIFICAÇÃO

4.1 Primado da percepção e a tarefa de uma descrição fenomenológica da experiência estética

Seguindo, uma vez mais, o legado de Merleau-Ponty3, Dufrenne atribui à percepção um essencial primado, sabendo-se ser o sensível lugar onde já cintila o sentido, de cuja entrega a experiência estética é privilegiado exemplar.

3 A eleição da percepção como motivo filosófico principal tem, no pensamento de Merleau-Ponty, razões que, por si mesmas, exigiriam uma compreensão total de seu modo de filosofar, isto é, do modo como se teria ele apropriado dos achados fenomenológicos, a partir de Husserl e para além de Husserl. Não podemos aqui fazer esta digressão, na tentativa de traçar o itinerário filosófico merleau-pontiano. Nos limites do interesse que nos move, salientamos que o primado da percepção é, para Merleau-Ponty, assentado desde sua obra capital

Phénoménologie de la perception, tese principal de seu doutorado, publicada em 1943. O texto da exposição do

trabalho perante a Sociedade Francesa de Filosofia, na sessão de 23 de novembro de 1946, seguido da discussão foi publicado, no Brasil: MERLEAU-PONTY, Maurice. Do primado da percepção e suas conseqüências

filosóficas. Campinas: Papirus, 1990. Ora, como está a sugerir o próprio título deste último escrito, para ele, a

percepção precede necessariamente o saber sobre o mundo e as coisas, sendo o fundo de toda referência que a eles se faça. Dufrenne assume o primado da percepção, direcionando a investigação rumo ao encontro de suas conseqüências estéticas. Aqui, como também em Merleau-Ponty, encontramos o corpo como lugar de entrelaçamento dos sentidos na percepção, é ele que possibilita a unidade do objeto estético. O sentido deste se anuncia para o corpo e, somente então, ultrapassa-o, atingindo outros planos. É o que se pode colher desta passagem significativa: “não podemos fazer permanecer toda a percepção sensível no nível do pré-reflexivo. É preciso passar do vivido ao pensado, da presença à representação.” (DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de

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Assim, para a compreensão do estético, firma-se uma exigência definitiva: descrever os diversos momentos da percepção estética – presença, representação e reflexão - atentando-se, ainda, para as funções exercidas, em cada um deles, pela imaginação e pelo entendimento.

Quanto ao privilégio concedido à percepção, isto se deve ao fato de que o sensível torna o mundo presente. Assim, deve ser revalorizada a percepção como lugar de origem e de sustentação do sentido, é por ela que o sensível se nos entrega. É pela percepção que se acolhe o sentido, já presente no sensível. Que o sensível seja o começo, e suas espécies, o modo pelo qual o mundo se faz originariamente presente ao sujeito, é expressão literal de Dufrenne:

Tangível, audível, visível, é sempre sob as espécies do sensível que o mundo me é presente. Jamais como um em-si intocável, jamais ainda como aquilo a que o saber o reduzirá: as qualidades primeiras não se dão senão através das qualidades segundas. Tudo começa com o sensível. Tanto pior para uma certa filosofia que se interdita de falar do começo.4

A revalorização do sensível, portanto, implica num retorno à força da percepção, na defesa de seu primado. Aqui se estreitam os laços que unem Dufrenne a Merleau-Ponty, para quem a percepção é um fundo necessário, um ponto de ancoragem do conhecimento e do sentido. De fato, ele havia afirmado que “a percepção não é uma ciência do mundo, não é um ato, uma tomada de posição deliberada, ela é o fundo sobre o qual todos os atos se destacam e é pressuposta por eles”.5

Assim, compreende-se que, na experiência estética, a percepção seja a fonte originária e irrenunciável da conversão da obra de arte em objeto estético. Se o sentido é imanente ao sensível, é na percepção estética que este mesmo sentido se consagra e se dá por manifesto. Rompe-se a dualidade, realidade e irrealidade: o “objeto estético é apreendido como real sem

4 DUFRENNE, L’oeil et l’oreille. Paris: Edition Jean-Michel Place, 1991. p. 70.

5 MERLEAU-PONTY, Maurice. Phénoménologie de la perception. Paris: Gallimard, 1987. p. V. Eis a citação, no original: “la perception n’est pas une science du monde, ce n’est pas même un acte, une prise de position deliberée, elle est le fond sur lequel tous les actes se détachent et elle est présupposé par eux.”

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reenviar ao real”, é o “sensível em sua glória”. A este respeito, pode ser citada exemplar passagem que, servindo-se da referência ao teatro, acrescenta a temática da redução à tese da imanência do sentido no sensível:

O que é real, o que “me prende”, é justamente o “fenômeno”, que a redução fenomenológica pretende atingir: o objeto estético dado na presença e reduzido ao sensível, aqui a sonoridade do verbo combinada com os gestos dos atores e o encanto do

décor, a que a atenção se entrega totalmente para preservar a pureza e a integridade, sem

jamais evocar a dualidade do percebido e do real; o objeto estético é apreendido como real sem reenviar ao real, quer dizer, a uma causa do seu aparecer, ao quadro como tela, à música como barulho de instrumentos, ao corpo como bailarino como organismo: não é outra coisa senão o sensível na sua glória, cuja forma, que o constitui, manifesta a plenitude e a necessidade, que traz em si e dá de imediato o sentido que o anima.6

A afirmação de que o objeto estético é essencialmente percebido e de que, ainda, “manifesta o sensível em sua glória” já está também presente na Phénoménologie, como se vê no seguinte excerto: “o objeto estético é essencialmente percebido: para a sua epifania, por vezes a execução, a testemunha ou o público sempre, são necessários; ele manifesta o sensível em sua glória.”7

Mas a dependência do objeto estético da percepção não deve conduzir à afirmação de que seja redutível à consciência que o apreende, ele é simultaneamente um em-si para-nós,8 enfim, “na aparência é mais do que aparência”, aponta para o mundo singular que traz em si, deixando entrever a percepção como tarefa infinita.

Este passo é fundamental para a compreensão da temática desta pesquisa. Na Phénoménologie, a afirmação de que o objeto estético, em seu aparecer, revela a verdade, conduz a outra, a saber: o sentido, que lhe é imanente, pode comportar uma significação

6 DUFRENNE, Mikel. Intentionalité et esthétique. In Esthétique e philosophie. Vol. I. Paris: Editions Klincksieck, 1976. p. 55.

7 DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. I. Paris: PUF, 1953. p. 286.

8 DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. I. Paris: PUF, 1953. p. 287. Conferir, ainda, DUFRENNE. Mikel. Intentionalité et esthétique. In Esthétique et philosophie. Vol. I. Paris: Editions Klincksieck, 1976. p. 56.

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ontológica, isto é, pode ser uma abertura que sugere a existência de uma co-substancialidade entre o homem e o mundo. Nos escritos posteriores à Phénoménologie, aparecerá a Natureza, como instância comum e fundamento que reúne sujeito e objeto estético.

Quanto à importância da percepção para desvelar o sentido do objeto estético, bem como acerca de sua abertura em direção ao mundo singular que traz em si e para o qual sempre nos remete, destaque-se a seguinte passagem da Phénoménologie:

O objeto estético não é exterior ou transcendente às suas aparições, pois não se realiza senão nelas, diferentemente do objeto vulgar para o qual é indiferente ser bem ou mal percebido (...). Não se deixa reduzir a suas aparências, pois pode, por si mesmo, denunciá-las, pois o próprio quadro nos adverte que a iluminação é deficiente ou a nossa percepção desfavorável, a música que o movimento está mal regulado ou que não estamos em forma para escutar e o próprio monumento que o meio circundante o trai ou que o tempo manchou a pedra (...). O objeto estético não é senão aparência, mas na aparência é mais do que aparência: seu ser é o do aparecer, mas algo se revela no aparecer que é a verdade e que obriga o espectador a prestar-se à revelação.” 9

Há na percepção estética um mútuo envolvimento daquele que sente e do sentido, denunciando a existência de um entrelaçamento entre sujeito e objeto que, por sua vez, nos remete a um espaço originário anterior à cisão, ou para Dufrenne, à diferença. Reconduzir o pensamento ou mesmo a consciência a este espaço originário é tarefa da estética e, com isto, ela presta seus melhores préstimos à reflexão filosófica.10

Em suma, uma fenomenologia da percepção estética se faz necessária na medida em que deve cumprir uma especial tarefa: dar conta dos momentos que, articulados, assistem à emergência do objeto estético e de seu sentido.

9 DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. I. Paris: PUF, 1953. pp. 288-289. 10 DUFRENNE, Mikel. L’apport de l’esthétique à la philosophie. In Esthétique et philosophie. Vol. I. Paris: Editions Klincksieck, 1967. p. 9.

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Para Dufrenne, a análise do objeto estético demonstra que seu aparecer se dá sob três aspectos distintos: como sensível, como objeto representado e como objeto expresso.11 Muito embora, o objeto estético seja uno e una também a percepção, pode-se falar de três momentos da percepção estética que fazem paralelo com as três formas do objeto estético: presença, representação e reflexão. Isto significa que a pluralidade, seja dos aspectos sob os quais se apresenta o objeto estético seja dos momentos da percepção estética, indicam um aprofundamento da compreensão, não cindindo realmente um e outro, mantendo-se íntegra a unidade seja do objeto estético seja da percepção estética.12

Descrever os momentos da percepção estética, articulando-os, em paralelo, com as diversas formas de apresentação do objeto estético: esta a tarefa de uma fenomenologia da percepção estética.

Segue-se aqui o caminho percorrido por Dufrenne: partir da descrição fenomenológica da percepção estética para, no final, concluir em favor da abertura ontológica que ela comporta.

11 Todo o primeiro volume da Phénoménologie é dedicado à fenomenologia do objeto estético. Os três aspectos sob os quais ele se apresenta são ali longamente tratados. Os limites desta pesquisa, contudo, não recomendam uma digressão sobre cada um deles. Algo sobre os diferentes aspectos de apresentação do objeto estético será dito, no decorrer do texto, à medida que isto se fizer necessário para a compreensão do paralelismo estabelecido por Dufrenne entre aqueles aspectos e os três momentos da percepção estética. Quanto ao noticiado paralelismo, conferir, sobretudo DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 419.

12 Sobre a unidade real da percepção estética, ver DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience

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