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Capítulo 2 – Rua, Casa, Pedaço: a sede do Cariri Olindense

2.1. A primeira geração

Clubes e Troças marcam o carnaval das ruas estreitas e ladeiras de Olinda. É a rua, segundo Magnani, que “resgata a experiência da diversidade” (1993), possibilitando encontros entre conhecidos e desconhecidos, as variadas trocas entre os diferentes, “a multiplicidade de usos e olhares – tudo num espaço público e regulado por normas públicas” (1993). As ruas são um espaço de experiências e encontros diversos. Muitos olhares rodeiam aquilo que passa pela rua e ela pode servir para diversos usos, como o de passarela para o desfile de uma agremiação. Às 4 horas da manhã do domingo de carnaval sai às ruas uma agremiação que, diferentemente das muitas outras olindenses, não desfila com bonecos gigantes. Sai com seu personagem montado em um burro. O carnaval de Olinda hoje é lembrado pela presença de bonecos gigantes que desfilam em todos os dias de carnaval, acontecendo até o encontro de vários bonecos. O aumento quantitativo desses bonecos aconteceu a partir da década de 198028. A Troça Carnavalesca Mista Cariri de Olinda, em contrapartida, leva às ruas, todos os anos, um velho barbudo, com sua face pintada de branco, longa barba e vestimentas bem simples. Sua imagem foi inspirada em um vendedor de ervas medicinais do mercado de São José, no Recife. Muitas troças tiveram suas origens assim, com fatos pitorescos (LÉLIS, 2011: p. 70), como afirma Katarina Real, “o grupo tem uma experiência notável que deixa uma impressão forte” (1990: p. 32) e assim começa a Troça.

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Sobre os Bonecos gigantes, ver BONALD NETO (1992); GASPAR, Lúcia. Bonecos Gigantes de Pernambuco (A-Z). Pesquisa Escolar Online, Fundação Joaquim Nabuco, Recife. Disponível em: <http://basilio.fundaj.gov.br/pesquisaescolar/>. Acesso em: 30 de outubro de 2014.

Figura 16: Fotografia do senhor que trabalhava no mercado de São José e foi homenageado por Cariri, imagem de 1921, está presente na sede da agremiação. Acervo da Troça.

A figura 10 foi uma fotografia registrada pelos fundadores da agremiação do vendedor de ervas. Quando os fundadores Augusto Canuto, Cosmo Botão, Jacinto Martinho, Oscar Silvino, Isnar Colombo e Eugênio Cravina resolveram criar uma Troça, foram ao centro do Recife para comprar os materiais necessários. Chegando lá, se deparam com um mascate muito peculiar, não conseguiram o nome de batismo desse indivíduo, mas registraram uma foto e pediram a sua permissão para homenageá-lo em uma agremiação carnavalesca. A homenagem foi concedida e, desde 1921, o Cariri sai às ruas. Como só sabiam o apelido do senhor, que era “Cariri”, e nunca mais conseguiram vê-lo novamente, assim a troça ficou sendo chamada.

Existe também outra versão para a fundação de Cariri, esta é uma versão lendária muito falada nas ladeiras de Olinda. Nela, se afirma que o velho Cariri era, na verdade, um sequestrador de crianças, muitos pais contavam essas histórias para amedrontar os filhos, dizendo que entregariam seus filhos ao Cariri que os colocariam em um saco e assim não iriam mais aparecer. Fragmentos dessa lenda podem até ser identificadas em seu Hino:

“Lá vem o Cariri ali Com saco de pegar criança

Pegando menino e moça Pegando tudo o que a vista alcança”

O Hino não tem autoria conhecida, mas os dirigentes da agremiação afirmam que essa lenda não tem fundamento e que a Troça surgiu de fato da homenagem ao retirante que veio do sertão e era um mascate. O improviso marcou o início e boa parte das atividades dessa agremiação. O desfile também era, e ainda é, um dos pontos mais esperados da Troça. Nos primeiros anos, assim como no Homem da Meia Noite, havia um “lugar para sair” e o desfile começava.

O desfile de Cariri era o responsável por abrir oficialmente o carnaval de Olinda, a Troça esperava o “Zé Pereira para anunciar Momo”, (Rivaldo, um dos dirigentes, em Entrevista) para sair às ruas. Zé Pereira teria sido o primeiro boneco gigante de Pernambuco, criado pelo folião Gumercindo Pires de Carvalho, na cidade de Belém de São Francisco, abrindo os festejos carnavalescos de sua cidade (BONALD, 1992). Porém, para os olindenses, ainda no sábado de carnaval,

A maioria dos foliões se fazia presente, bem como todos os estandartes das agremiações da cidade. No Varadouro, a partir das 20 horas, ficavam à espera do desembarque, no Largo existente, daquela figura representativa do carnaval. De repente, surgia uma embarcação, bastante iluminada e enfeitada. O povo ficava ansioso para ver o Zé Pereira (ATAÍDE, 1982: p. 24).

Zé Pereira chegava à cidade de barco e depois continuava seu cortejo “montado num burro, no Largo do Varadouro, acompanhado por uma orquestra de frevo” (ATAÍDE, 1982: p. 24). Depois de sua chegada e durante o seu cortejo, os estandartes das agremiações do período voltavam para as suas sedes.

Depois que Zé Pereira chegasse à Olinda e anunciasse o Carnaval, Cariri já poderia e deveria iniciar a folia, abrindo os festejos do carnaval de Olinda. Para os mais antigos olindenses, o carnaval na Cidade Alta começa apenas no domingo de carnaval, já que no sábado a folia era conduzida por Zé Pereira. Não são mesmo muitas as agremiações que desfilam no sábado, quando comparamos com o domingo e os outros dias de folia, nas ladeiras.

Os desfiles da primeira geração foram marcados pelo improviso, não havia muitos preparativos, a brincadeira era a palavra de ordem das atividades. Pouco dinheiro, muita criatividade e animação marcam os primeiros cortejos do Cariri. As ruas, ainda, eram o espaço de destaque e os desfiles os momentos de maior importância.

Em 1931, ocorreu uma eleição para presidência da agremiação, duas chapas se organizaram e a chapa que perdeu a eleição resolveu se desmembrar da Troça de Cariri. A partir dessa dissidência, para ocupar a presidência da agremiação, a chapa perdedora resolveu fundar outra agremiação, assim surgiu o Homem da Meia Noite, que passou a desfilar antes de Cariri. A partir dessa data, começa uma grande rivalidade entre as duas agremiações, como afirmam os dirigentes Mauro, Romildo e Rivaldo: “Lá nos anos 1930 era ferro e fogo, a gente não podia se encontrar que se pegava”. Por algum tempo, a rivalidade permaneceu entre os membros das duas agremiações, eles não se entendiam e as relações não eram nem um pouco cordiais. Segundo José de Ataíde,

A rivalidade entre agremiações faz sucesso que se vem verificado há muitos anos. Outrora com mais ardor. Havia até brigas entre os simpatizantes. (...) A rivalidade nasce a partir da criação de qualquer brincadeira de carnaval, porque é formada quase sempre por dissidentes. (1982: p. 16)

A rivalidade entre as agremiações carnavalescas pode ser verificada entre vários grupos. Em Olinda, existem histórias de rivalidade entre os blocos Batutas e Guaiamum-na-Vara e entre os Clubes Lenhadores e Vassourinhas, por exemplo, além de Cariri e o Homem da Meia Noite. Cada agremiação seguia com seus cortejos, organizando seus desfiles sem contato e com muita competitividade.

Em muitos desses casos, a rivalidade se explica pelas dissidências, como podemos verificar no caso de 1931. Contudo, essas divergências acabam, de alguma forma, dando continuidade ao carnaval, como explica Katarina Real:

Naquele momento, o grupo revolve que “vão fundar uma troça” para sair no próximo carnaval. Fundam-se troças e acabam-se troças, divergências num grupo vão produzindo novos grupos, membros deixam uma troça para brincar com outra. (1990: p. 32)

A dinâmica de fundação e pertencimento das agremiações perpassa por divergências, continuidades e a vontade de fundar novos grupos. Assim, o carnaval e as agremiações acabam se renovando. A rivalidade pode também funcionar como um importante estímulo para garantir que os desfiles aconteçam e sejam cada vez mais criativos e chamem mais pessoas a acompanhá-los.

As gerações são lembradas, pelos dirigentes do Cariri, muito mais pelos dirigentes de cada momento do que pela periodização em anos. A partir da década de

1950, portanto, teria início à segunda geração, uma geração que compreendeu um vasto período terminado apenas no final dos anos 1990, quando teria iniciado a chamada terceira e atual geração.

O parentesco também pode ser usado como um dos marcadores de tempo. As gerações marcam também a genealogia da família Canuto, presente na agremiação desde seu surgimento. Augusto Canuto, que foi um dos fundadores da primeira fase, é o pai de Romildo Canuto, que dá seguimento à segunda geração e Romildo Canuto Filho e Rivaldo Canuto são os herdeiros que atuam na terceira geração da Troça.

Essa primeira geração foi marcada pela criação da Troça e o forte improviso dos desfiles, além da dissidência e formação do Clube de Alegorias e Críticas o Homem da Meia Noite. Talvez, tenha sido essa rivalidade que tenha impulsionado a continuidade dos desfiles nesse primeiro momento. A geração se finaliza para que importantes mudanças ocorram na segunda geração, como aquisição de uma sede.