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Primeiros sinais das manifestações populares

CAPÍTULO II O antepassado das manifestações populares o reisado

2.3. Primeiros sinais das manifestações populares

Nessas condições, uma das alternativas para amenizar o sofrimento social e moral e o arrefecimento da lida diária, foi a criação de alternativas que pudessem diminuir as tensões entre os negros cativos e os seus donos ou os donos dos engenhos de cana de açúcar. Foi assim que surgiu um tipo estranho e controverso do que convencionou-se chamar de “incentivos positivos” que seriam recompensas pelo trabalho. Como isso era feito?

Inicialmente é importante lembrar que nos engenhos de cana de açúcar, a divisão do trabalho se dava em função do sexo, em que algumas atividades eram feitas por homens e outras por mulheres. “Trabalhos de campo mais pesados - cavar, desmatar, cortar lenha - eram feitos por homens; as mulheres trabalhavam ao lado destes na mondadura23 e no corte de cana.

[...] raramente aparecem homens arrolados como moedores. Meninos dirigiam os bois ou cavalos que impulsionavam a moenda” (SCHWARTZ, 1988, p. 137, referências nossas).

A divisão do trabalho por sexo tinha ainda algumas características e dentre estas, os homens eram responsáveis pelo trabalho nas caldeiras, fornalhas e tachos enquanto que as mulheres tinham ao seu cargo a moagem, o transporte do bagaço e tudo relacionado com a moenda. Havia umas atividades dirigidas aos homens e outras às mulheres, mas o que necessitasse de força ou de supervisão eram os homens que executavam e o que necessitasse de precisão eram as mulheres as responsáveis por essas tarefas. “Fica evidente, porém, que as mulheres eram parte essencial da força de trabalho cativa exerciam ocupações cruciais para o processo” (SCHWARTZ, 1988, p. 138).

Então, houve a necessidade de uma vigilância mais ativa quanto ao processo de fabricação do açúcar, que era uma atividade bastante complexa, no sentido de impedir sabotagem ou negligência propositais por parte dos negros em retaliação ao trabalho forçado e exageradamente longo, numa forma de vingança por parte dos escravos. “Embora os senhores pudessem forçar os cativos a cumprir certas tarefas desagradáveis no processo de beneficiamento, a maioria encontrava meios melhores e mais eficazes de assegurar a execução adequada do serviço e de prevenir interrupções intencionais na produção” (SCHWARTZ, 1988, p. 139). Por esse trecho percebe-se, claramente, que havia sim sabotagem ou negligência, tanto que havia modos de prevenção, principalmente por parte dos feitores ou dos fiscais.

Esses aspectos denotam a existência de possibilidades de abrandamento das atividades dos escravos no sentido de evitar essas insubordinações e ao mesmo tempo tornar os cativos menos exigentes ou mais sociáveis. Nesse sentido, Schwartz (1988, p. 139) afirma o seguinte: “os senhores de engenho precisavam encontrar outras formas de extrair a qualidade necessária para esses serviços. O método usado consistia de incentivos”.

Por sua vez, esses incentivos se transformaram numa técnica para obter atitudes cooperativas, pelo menos momentaneamente, dos escravos e variavam bastante em sua natureza. Por exemplo, em algumas fases da fabricação do açúcar os subprodutos líquidos e garapas alcoólicas eram distribuídos como recompensa pelo trabalho, inclusive os barqueiros e os catadores de mariscos, a fim de que todos se sentissem satisfeitos. Interessante é que a bebida podia ser trocada por produtos alimentícios com aqueles cativos que não tinham direito a ela. Essas liberalidades não convenciam a totalidade dos escravos, mas alguns aceitavam. Importante salientar que apesar de tudo, o modelo de escravidão tornou-se mais flexível chegando ao ponto dos escravos fazerem o cultivo de seus próprios alimentos nos momentos de tempo livre.

No entanto, essas formas de abrandamento do árduo trabalho não foram suficientes para diminuir as demandas por formas de ações que pudessem abrandar o sofrimento da lida diária. Então, seria natural o surgimento de manifestações que pudessem minimizar o intenso trabalho escravo. Foi exatamente nesse cenário que surgiram as primeiras reivindicações de liberdade ou de suavização do trabalho forçado culminando com uma fuga ou rebelião de escravos do Engenho Santana, na Bahia, no ano de 1789 (BARROSO, 1996).

Importante lembrar ainda que aconteceu uma insólita negociação que permitiu a esses escravos a volta ao trabalho, mas de forma que fosse consentido o “brincar, folgar e cantar em todos os tempos que quisermos sem que nos impeça e sem que seja preciso licença” (SCHWARTZ, 1988, p. 142).

[...] as culturas negras são uma síntese e resultam do diálogo entre as tradições africanas, europeias e indígenas, fundam-se dos jogos de linguagem, intertextuais e interculturais, que performam. A esta discussão acrescentamos que a cultura negra encontra-se em constante conflito com as estruturas de dominação onde novas sínteses são produzidas pela população histórica afrodescendente (NUNES, 2010, p. 48).

Dessa forma, para Barroso (1996), as manifestações populares que viriam dar origem ao reisado apareceram, no século XVIII, sendo originado na época do Brasil colonial,

quando reuniu referenciais culturais vindos da África e dos indígenas. “Naquele período em que o Brasil era colônia portuguesa, cuja sociedade se ancorava na produção açucareira e na pecuária, a Igreja mantinha diversas formas de trazer para a congregação, os negros, os pagãos e os mestiços” (FARIAS, 2015, p. 19). “Nos engenhos de cana, a presença da Igreja era de importância vital para a boa ordem dos trabalhos” (BARROSO, 1996, p.23), tanto que o padre, na maioria das vezes, era filho do senhor do engenho ou alguém a seu serviço, inclusive recebendo pagamento monetário pelos serviços eclesiais (BARROSO, 1996).

Para Mello e Souza (2006), o poder de Portugal nas questões relacionadas à religião foi muito competente porque soube impor suas crenças aos povos africanos, nomeadamente aqueles da foz do Rio Zaire, em volta da metade do século XV.

Tamanha foi sua competência que conquistou o rei Nzinga Kuwu, conseguindo deste rei e dos membros da elite real o uso dos próprios nomes dos reis de Portugal, para em seguida serem batizados com muita pompa e festas.

Inicialmente apenas o rei do Congo e um de seus filhos foram ungidos pelo sacramento do batismo o que chegou a causar revolta na aristocracia, haja vista que esta se sentira enfraquecida e ao mesmo tempo desprotegida dos benefícios divinos ou sobrenaturais, provocando, assim, um mal-estar no reino.

Como em Soyo, os membros da elite excluídos do batismo manifestaram o seu descontentamento com isso, e a hierarquia foi novamente invocada como justificativa: que se acalmassem, que o receberiam quando a mulher, o filho e o irmão do mani Congo também se tornassem cristãos. Talvez a preocupação desses nobres, aos quais o batismo era negado, se referisse justamente às hierarquias, pois poderiam estar sendo rebaixados com a exclusão do novo rito religioso adotado pelo rei. E também como em Soyo, ao batismo seguiram-se festas, danças e queima de ídolos, como chamavam os portugueses as figuras de culto que não fossem as cristãs (MELLO E SOUZA, 2006, p. 59).

É importante frisar a importância portuguesa sobre suas colônias além da visível ascendência da Igreja ou da religião (BARROSO, 1986) sobre os escravos em particular, aspectos que culminariam com o benzimento das máquinas, dos bichos, dos carros de bois que eram enfeitados com flores e folhas entrelaçadas, das pessoas incluindo os escravos, enfim de tudo que fosse direta ou indiretamente envolvido com a produção de cana de açúcar e do próprio açúcar, haja vista que o término da safra coincidia com o início das atividades produtivas no segundo semestre do ano (BARROSO, 1996).

No entanto, uma eventual recusa à benção dos negros ensejava uma revolta que culminava com a recusa ao trabalho por parte dos escravos que almejavam além dessa bênção, a participação em algum tipo de festejo ou solenidade ou qualquer ritual que pudesse minimizar o sofrimento através dos serviços eclesiais, haja vista que “os indivíduos viviam processos traumáticos de quebra das estruturas sociais que davam as bases de sua inserção no mundo, tendo que encontrar novos termos de convivência e de apreensão da realidade ao seu redor” (MELLO E SOUZA, 2006, p. 147).

Dessa forma, o fato de haver uma grande concentração de escravos africanos na lavoura de cana de açúcar, havia também a possibilidade do surgimento de novos traços culturais. Passado algum tempo, isto foi verificado através do aparecimento da capoeira e outras manifestações como as lutas, as danças, os cânticos, os folguedos, as crenças, etc., sendo que “era a herança africana o que mais distinguia os escravos, presente em formas de falar, na música e na dança que tocavam quando se reuniam” (MELLO E SOUZA, 2006, p. 159).

Nesse sentido, Barroso (1996, p. 62) assevera que:

A partir do contato inicial, os portugueses empreenderam no Congo um processo de evangelização e tutela cultural que teve por objetivo imediato a nobreza do então florescente império, particularmente os seus reis que, além de tomarem nomes portugueses e se batizarem, passaram a comandar uma cruzada de cristianização abrupta do seu próprio povo.