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Em ensaio de 1948 acerca da influência de Edgar Allan Poe sobre três gerações da poesia moderna francesa, T. S. Eliot reflete acerca da relação entre o discurso teórico de um autor e sua própria poesia de modo bastante revelador. Considera Eliot:

Nenhum poeta quando escreve a sua própria art poétique, devia ter esperança de fazer muito mais do que explicar, racionalizar, defender ou preparar o caminho para sua própria prática: isto é, para escrever o seu próprio gênero de poesia. Pode pensar que está a estabelecer regras para toda a poesia; mas o que tem a dizer que vale a pena dizer tem a sua relação imediata com o modo como ele próprio escreve, ou quer escrever. (ELIOT, 1992, p. 153)

Com esta reflexão em mente, podemos ler os ensaios do próprio Eliot menos enquanto projeto de reavaliação da tradição literária, nos moldes das grandes expressões críticas da tradição inglesa, como Samuel Johnson, no século XVIII, e Matthew Arnold, no século XIX, e mais enquanto a maneira como o poeta explicava, raciocinava e defendia para si mesmo e para o público a aparição de sua poesia. O próprio Eliot confessava, em seus últimos anos, que, se sua crítica literária tinha algum valor, este se encontrava nos ensaios acerca de poetas específicos, não naqueles em que ele se propõe teorizar de modo geral acerca da natureza da poesia.

Por outro lado, é também para esses ensaios ou passagens de caráter mais teórico e geral que podemos nos voltar para compreender o caso específico da poesia eliotiana e, em particular, sua concepção de impessoalidade. Podemos desconfiar, por exemplo, quando o poeta, ainda bastante jovem, escreve, no notável Tradição e talento

individual, de 1919, que o poeta não tem uma personalidade para expressar; essa

constatação reflete, mais do que qualquer outra coisa, uma condição pessoal bastante decisiva para a obra poética de Eliot.

Como se observará mais adiante, essa poesia é marcada por um profundo paradoxo, bastante diferente em natureza dos paradoxos milimetricamente inventados por Pessoa: se, na sua produção crítico-teórica, Eliot empenhou-se em reavivar para a poesia ideais clássicos de objetividade e antisentimentalismo, enaltecendo, na tradição literária, aqueles poetas nos quais a dissociação entre pensamento e emoção não era demasiado sensível, sua produção poética, por outro lado, é marcada por arraigado irracionalismo, que impulsiona sua poética calcada na justaposição de fragmentos. Por trás de uma poesia arquitetada através de alusões e referências à tradição literária,

pressente-se uma força rítmica primitiva, ―sullen, untamed and intractable‖ (ELIOT, 2004, p.358 ), como o rio de ―The dry salvages‖, o terceiro dos ―Four quartets‖, força que ameaça constantemente a frágil ordem cultural, à espreita, por toda parte:

His rhythm was present in the nursery bedroom, In the rank ailanthus of the April dooryard, In the smell of grapes on the autumn table,

And the evening circle in the winter gaslight.36 (ELIOT, 2004, p.358 )

A poesia de Eliot apresenta-se, assim, como complicada rede de tensões entre a expressão desse impulso primitivo, conduzindo a níveis de consciência mais profundos, em que a concepção corriqueira de personalidade se estilhaça, e um desejo nostálgico, por uma ordem embasada na tradição — uma tradição, de todo modo, viva, que, em vez de reprimir os materiais primitivos, antes lhes forneça modos de expressão ou correlatos objetivos –, uma tradição, portanto, que harmonize o que há de primitivo e o que há de civilizacional na experiência humana. Por esse viés, sua poesia se aproxima da discussão desenvolvida anteriormente neste estudo, a propósito das ideias de Pessoa e de Cortázar sobre a arte clássica. É neste sentido que Eliot se afastará da crença romântica na espontaneidade sugerida na expressão da personalidade, convencido, como Proust, de que o significado de cada experiência humana só se revela no padrão que se forma na memória, ao longo dos anos, padrão que, sem embargo, é,

new in every moment

and every moment is a new and shocking

valuation of all we have been.37 (ELIOT, 2004, p.348)

Nesse contexto, a impessoalidade será fator decisivo. Por um lado, seu percurso em direção a uma poética impessoal segue um itinerário próximo ao de Pessoa. Como vimos, a impessoalidade no poeta português está intimamente relacionada à conexão entre pensamento e sentimento, e este será um dos temas essenciais da crítica de Eliot ao longo dos anos, inaugurado no célebre ensaio sobre os poetas metafísicos. Essa convicção teórica acerca da necessidade de tornar o processo criativo mais objetivo e, por conseguinte, mais autoconsciente, está fortemente presente na concepção poética de Eliot, e será observada a seguir neste estudo. Por outro lado, contudo, a impessoalidade de sua poesia relaciona-se também, como sugerido acima, a uma prática

36―Seu ritmo presente no quarto das crianças, / Na álea de ailantos dos quintais de abril, / No cheiro das uvas sobre a mesa de outono / E no halo vespertino dos lampiões de inverno.‖

37 ―novo a cada momento /e cada momento é uma nova e aterradora / valoração de tudo o que temos sido.‖

poética que se vale constantemente do intuitivo e do associativo. A impessoalidade de seus poemas, em especial ―The waste land‖, aponta, assim, para uma convergência entre essas duas instâncias de sua mente criativa. Eliot, a propósito, era bastante autoconsciente a respeito disso. Numa resenha de 1918, ele escreve:

O artista, eu acredito, é mais primitivo, assim como mais civilizado, do que seus contemporâneos; sua experiência é mais profunda que a civilização, e ele apenas utiliza os fenômenos da civilização para expressá-la. (ELIOT apud BERGONZI, 1972, p. 74).38

À parte qualquer retórica a favor de uma concepção aurática do artista, ainda bastante presente, de modo geral, no Alto Modernismo (a despeito da emergência da desidealização da arte como muitas vezes o tema próprio da arte modernista), a reflexão é bastante indicativa do modo como estrutura-se a obra de Eliot, oscilando entre o ―civilizado‖ e o ―primitivo‖, principalmente em um poema como ―The waste land‖. É justamente essa experiência mais profunda que a civilização que abala a concepção tradicional de personalidade, a qual, conectada à revisão da tradição literária, desencadeará sua poética impessoal.

Procurar-se-á, a seguir, observar mais detidamente como se dá a síntese entre esses dois impulsos presentes na mente criativa deste ―apaixonado infeliz‖. É preciso notar, porém, que, em Eliot, é impossível separar o desenvolvimento estético de sua poética do desenvolvimento espiritual, relacionado à sua conversão ao anglo- catolicismo e à importância fundamental da religião na sua trajetória pessoal. Como já sugerimos, a impessoalidade dessa poesia resulta a um só tempo de sua leitura crítica da tradição literária, próxima da que Pessoa efetuou, e de sua relação crítica com a cultura, mediada, em parte, pela perspectiva cristã. Portanto, embora o interesse essencial deste estudo seja estético e literário, não se furtará aqui a abrir-se para as orientações pessoalíssimas que informavam o processo criativo de Eliot.

Uma vez que se sabe que a produção ensaística de Eliot é bastante vasta, será preciso, como ocorreu ao se tratar de Pessoa, restringir a abordagem sobre seus textos. Concentrar-se-á, portanto, nos ensaios de ―The sacred wood‖, nos seus Selected

essays, organizados pelo próprio autor, em 1955, e em seu The use of poetry and the use of criticism, obra que compila as palestras de Eliot apresentadas na Universidade de

38 Diante dessa reflexão, é bastante natural que venham à mente as obras de artistas canônicos do Alto Modernismo como Pablo Picasso e Igor Stravinski.

Oxford, entre 1932 e 1933.39 Não fugiremos, naturalmente, à pesquisa em outras fontes, quando necessário.