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O princípio da cópia: impressão e ideia

2.1. Epistemologia

2.1.1. O princípio da cópia: impressão e ideia

Ao observarmos, de forma geral, a construção da teoria do conhecimento de Hume, percebemos que a razão é fundamental nas operações do entendimento humano. É por meio dela que as regras do raciocínio são estabelecidas, organizadas e aplicadas de acordo com as circunstâncias e os fatos que são apresentados ao homem. Ou seja, o ser humano, no pleno exercício de suas faculdades mentais, é capaz de memorizar, pensar, imaginar e fazer relações de ideias. Mas, de onde vêm essas ideias? O pensamento é livre para criar ou, mesmo em âmbito imaginativo, ele está restrito a alguns limites? Hume sugerirá que nossas ideias são originadas a partir dos dados da experiência e, como a imaginação é um estádio posterior à formação de ideias, também não está totalmente livre das amarras da natureza.

É certo que a mente pode puxar na memória lembranças de experiências agradáveis ou desagradáveis do passado consideravelmente precisas, mas nunca terão a força e a vivacidade das experiências de fatos no presente. Ganharmos um prêmio ou sofrermos um acidente no presente nos imprime uma sensação de prazer ou dor muito mais forte do que quando apenas refletimos sobre essas ideias oriundas de uma experiência remota. Por mais detalhista e esplendorosa que seja a descrição de uma paisagem feita por um poeta, suas cores serão mais opacas do que a vista de uma paisagem de fato, mesmo sob neblina. Então, para Hume (IEH, II, §1, p. 33), o primeiro passo no processo do conhecer é a percepção que temos das coisas fornecidas pelos sentidos. Das impressões originadas dos sentidos a mente concebe as ideias. E do registro destas na memória, a mente se dispõe do cabedal para pensar e fazer relações. Em resumo, podemos dizer que a experiência é seguida das impressões vindas dos sentidos e as ideias são cópias dessas impressões na mente.

Dessa forma, para Hume (Ibidem, §3, p. 34), as percepções da mente são de dois tipos: i) impressões: são aquelas percepções mais vívidas, ou seja, aquelas quando vemos, ouvimos, amamos, odiamos, etc.; ii) pensamento ou ideia: são aquelas percepções menos vívidas que trazemos à mente quando lembramos e refletimos sobre as impressões.

O pensamento é uma faculdade da mente, portanto interna. Assim, a princípio, parece ilimitado. A saber, mentalmente podemos imaginar qualquer coisa, pois aparentemente não temos a obrigação de seguir as regras externas. No entanto, Hume (Ibidem, §5, p. 35) ressalva que, na verdade, não é bem assim. O pensamento é livre, mas o material do qual a imaginação e a vontade se dispõem para fazer combinações, mesmo que a esmo, está limitado ao mundo

dos fatos. De duas ideias consistentes como montanha e ouro, por exemplo, o pensamento pode imaginar uma montanha de ouro. Dessa forma, temos que todo o nosso material de pensamento (ideias) deriva das sensações externa ou interna (impressões). Assim, por mais criativa que nossa imaginação possa parecer, ela não faz mais do que “compor, transpor, aumentar ou diminuir os materiais que os sentidos e a experiência nos fornecem” (Ibidem).

Para provar esse ponto, Hume (Ibidem, §6, p. 36) diz que por mais complexa e distante de nós que uma ideia possa parecer, no fundo, os componentes dessa ideia derivam de ideias vindas de impressões ou sentimentos simples ou, prosaicamente, corriqueiros. A ideia de Deus é um caso desses. Por exemplo, os atributos de inteligência, bondade e sabedoria infinitas nada mais são do que qualidades que podemos encontrar em nosso ambiente, mas que foram infladas a fim de elevá-las ao nível da divindade e assim distingui-la das ideias que tenham algum caráter inferior. A saber, dado que encontramos pessoas dotadas de inteligência, bondade e sabedoria acima da média humana, projetamos essas qualidades para um ser ideal em grau de totalidade e/ou infinitude.

Ainda, com intuito de reforçar a tese de que as ideias, em princípio, são cópias de impressões simples, Hume argumenta que, aquele que possui algum órgão sensorial defeituoso ou que não tem esse órgão, será fatalmente privado da formação da respectiva ideia em sua mente. Nesse sentido, o cego, por exemplo, é privado da cor e o surdo do som. Um raciocínio similar parece aplicável – apesar de menos objetivo do que o primeiro – para quem se dispõe de uma índole serena ou de uma egoísta. No primeiro caso, parece que dificilmente o indivíduo poderá desenvolver ou executar uma ideia de crueldade extremada; já, no caso de um indivíduo de índole egoísta, será difícil que ele conceba honestamente uma ideia de amizade sincera ou que pense numa generosidade em grau elevado e desinteressada. Assim, Hume ressalta a força das impressões na formação das ideias, inclusive as de caráter moral. E ao enfatizar que das impressões sensoriais vêm as ideias, o presente autor estabelece o então chamado princípio da cópia.

Apesar de Hume estar convicto de que as impressões sensíveis são a origem das ideias que a mente forma e relaciona, ele apresenta um contra-argumento que poderia tornar seu princípio da cópia falso. Segundo ele, quando apresentamos a um observador uma sequência de tons de uma determinada cor (azul, por exemplo), da mais escura para a mais clara e, dentre elas, uma faixa sem um tom que ele nunca tenha experimentado, a mente tende a preencher esse vazio com um tom intermediário. Sendo assim, há algum tipo de ideia que pode ser formada independentemente da impressão. Todavia, para Hume (Ibidem, §8, p. 37-

8), esse caso é tão singular que não é uma ameaça de fato, por isso, é deixado29 de lado e o princípio da cópia, no geral, se mantém de pé.

Feitas as explanações anteriores acerca da força das impressões na formação das ideias na mente, Hume entende que sua exposição tenha sido bastante razoável e conclui com a seguinte sugestão:

Portanto, sempre que alimentarmos alguma suspeita de que um termo filosófico esteja sendo empregado sem nenhum significado ou ideia associada (como frequentemente ocorre), precisaremos apenas indagar: de que impressão deriva esta

suposta ideia? E se for impossível atribuir-lhe qualquer impressão, isso servirá para

confirmar nossa suspeita (Ibidem, §9, p. 39).

Ou seja, se não for encontrada uma impressão para dar consistência à ideia a ela associada, a expressão ou termo não terá sentido. Poderíamos chamar isso de “ideia” fictícia, mas até esta tem como referência alguma impressão. Um ser com corpo humano e cabeça de águia, por exemplo, é uma ficção, mas inspirada em duas impressões reais: corpo humano e cabeça de águia. O ponto de Hume aqui é que se até um autor ficcional toma a experiência de mundo para nos passar uma ideia de relação de “causa e efeito” na invenção de um ser híbrido, por exemplo, muito mais o filósofo não pode dizer algo acerca do mundo sem ter como base a experiência dos fatos, suas relações e conexões. Tendo em vista esse critério, podemos afirmar que um discurso filosófico desprovido das bases experimentais é vazio.