• Nenhum resultado encontrado

Princípio da arbitrariedade: sua relação com a cultura

3.1 SAUSSURE E A SEMÂNTICA ARGUMENTATIVA: ALGUNS CONCEITOS

3.1.1 Princípio da arbitrariedade: sua relação com a cultura

Para Saussure, uma das principais características do signo é a arbitrariedade, a qual estabelece que a imagem acústica de um signo não está vinculada ao seu conceito. Significa dizer que não há um elo natural entre o signo e seu significado ou com a imagem acústica a ele atribuída. Exemplificando, se considerarmos: Ricardo comprou manteiga para fazer bolo, nada na forma ‘manteiga’ exprime o produto manteiga tal qual o conhecemos, tanto é que ele poderia ser substituído por outra forma, desde que houvesse um consenso geral entre os falantes do idioma em questão, neste estudo, da Língua Portuguesa.

Enquanto no português ‘manteiga’ pode ter esse significado, segundo consta nos dicionários, em italiano, esse mesmo produto é nomeado pela forma ‘burro’. O instigante é que a forma ‘burro’, que em italiano significa ‘manteiga’, também existe na Língua Portuguesa, mas com outra significação: refere-se ao mamífero asno ou, também, pode ser usado para designar pessoas com pouca inteligência, em se pensando conforme o que consta nos dicionários, mas, sob a perspectiva saussuriana, sabemos que o sentido é sempre único e atribuído no uso, diferentemente daquele dicionarizado, dado que não existe um sentido a

priori. Faço apenas uma comparação ao que consta no dicionário, para que o leitor possa

entender a perspectiva saussuriana. Vejamos um exemplo considerando o sintagma a seguir:

(1) Ana é uma manteiga derretida, sempre chora assistindo a filmes de romance.

‘Manteiga’, em (1), tem o sentido de emocionar-se com facilidade. Ou seja, só saberemos o sentido de uma forma quando posta em uso, a partir da relação com os demais signos do sistema ao qual pertence.

É, então, a noção de arbitrariedade que explica ainda a existência de diferentes idiomas, já que cada comunidade linguística constitui seu sistema linguístico. Pode ser que o leitor se questione: “Mas há uma relação que não é arbitrária entre ‘pêssego’ e ‘pessegueiro’”.

34 Do original: “la lingua cessa di essere um insieme di lementi interdipendenti per divenire un sistema di relazioni (differenziali e oppositive)” (GREIMAS; COURTÉS, 2007, p. 329, grifo dos autores).

Sim, há, a isso Saussure chama de signos derivados, os quais derivam dos signos primários. A título de exemplo, ‘pessegueiro’ lembra a palavra ‘pêssego’ e o sufixo –eiro, que também é arbitrário, lembra ‘abacateiro’, ‘mamoeiro’. No entanto, nada na forma ‘pêssego’ remete à fruta tal qual ela é. O leitor ainda pode questionar: “E quanto à etimologia da palavra?”. Ela vem do Latim malum persicum e significa ‘fruto da Pérsia’, segundo o dicionário etimológico35. Novamente, não há relação. Tanto é que em francês ‘pêssego’ é ‘pêche’ e em italiano é ‘pesca’, por exemplo, em se pensando a significação a partir do que consta em dicionários.

Aqui, outro ponto torna-se importante de ser abordado: em se tratando a língua de um sistema que é construído coletivamente, ela é parte da cultura de um povo. Tanto é que ao iniciar suas pesquisas, o antropólogo Lévi-Strauss (2008, p. 79), que fundamenta seu estudo no estruturalismo saussuriano, questiona: “Para estudar uma cultura, é necessário o conhecimento da língua? Em que medida e até que ponto? Inversamente, o conhecimento da língua implica o da cultura, ou pelo menos de alguns de seus aspectos?”.

Quanto à língua ser parte da cultura, Saussure (ELG, 2004, p. 131, grifo do autor) afirma que “não se conhece completamente um povo sem conhecer sua língua ou ter dela alguma idéia; [...] a língua é uma parte importante da bagagem das nações, contribuindo para caracterizar uma época, uma sociedade”.

É, também, pela língua que se acessa a vida política, literária e social, ou seja, a vida cultural dos povos. Ainda, é pela língua que o indivíduo tem acesso ao conhecimento, seja ele social, cultural, histórico ou científico. Sobre isso, Saussure (ELG, 2004, p. 128, grifo do autor) esclarece:

é que o homem sem a linguagem seria, talvez, o homem, mas não um ser que se comparasse, mesmo que aproximadamente, ao homem que nós conhecemos e que nós somos, porque a linguagem foi, por um lado, a mais formidável ferramenta de ação coletiva e, por outro, de educação individual, o instrumento sem o qual o indivíduo ou a espécie jamais poderia aspirar a desenvolver, em algum sentido, suas faculdades nativas.

Consoante esse viés, Lévi-Strauss (2008, p. 80) diz que “é principalmente por intermédio da linguagem que o indivíduo adquire a cultura de seu grupo; a criança é instruída e educada pela palavra, e repreendida e elogiada com palavras”. Ou seja, a língua, por ser social, faz parte da cultura e da vida dos povos, sendo importante para todas as áreas do conhecimento.

35 Dicionário etimológico. Disponível em: https://www.dicionarioetimologico.com.br/pessego/. Acesso em: 4 maio 2020.

A língua, por ser um constructo social, acompanha as transformações dos povos e, com isso, sofre modificações conforme as alterações sociais (SAUSSURE, ELG, 2004). Consoante isso, o antropólogo francês afirma:

A linguagem pode ser tratada como produto de uma cultura: uma língua usada por uma sociedade reflete a cultura geral da população. Mas, num outro sentido, a linguagem é uma parte da cultura, constitui um de seus elementos, entre outros. [...] A depender do ponto de vista adotado, as questões que se colocam não são as mesmas (LÉVI-STRAUSS, 2008, p. 80, grifo do autor).

A língua está na e para a sociedade e visa à compreensão. Por ser um constructo social, ela está relacionada com a cultura. É aí que entra a noção de arbitrariedade saussuriana: é ela que permite que cada comunidade constitua seu sistema de signos; um único indivíduo é incapaz de modificar qualquer um deles de forma isolada. Se o ser humano não fosse um ser social, ele não sentiria necessidade de se expressar. É o seu meio, suas relações sociais, conforme afirma o mestre genebrino, que faz o ser humano querer interagir: “A língua é um fato social. O indivíduo, organizado para falar, só poderá chegar a utilizar seu aparelho através da comunidade que o cerca, – além disso, ele só experimenta o desejo de utilizá-lo em suas relações com ela” (SAUSSURE, ELG, 2004, p. 154).

Benveniste (1995), partidário das ideias saussurianas, também diz que a organização social que os indivíduos integram faz com que sintam desejo e necessidade de se comunicar, tornando-os completos, em razão de que não há melhor modo de expressar o pensamento do que pela linguagem, porque: “É um homem falando que encontramos no mundo, um homem falando com outro homem, e a linguagem ensina a própria definição do homem” (BENVENISTE, 1995, p. 285).

Assim sendo, é pela língua que podemos perceber/compreender/conhecer/vivenciar diferentes aspectos culturais. A título de exemplo, no português, usamos o verbo ‘estar’ para designar ‘estou cansado’, em italiano se diz ‘sono stanca’ e se faz uso do verbo ‘ser’ e não do ‘stare’ (estar), que, em uma tradução livre, seria ‘sou cansada’, que tem um sentido diferente de ‘estou cansada’. Ou, ainda, no italiano, é comum a expressão ‘che bello’ que equivaleria, numa tradução literal, a ‘que belo’ em português. No entanto, dependendo do uso e das relações linguísticas, essa expressão italiana pode equivaler ao ‘que legal’ brasileiro.

Para compreender essas diferenças é necessário conhecer a cultura desses povos. É devido a essa relação que, segundo Lévi-Strauss (2008), há tempos deixou de ser necessário mostrar o quanto a Linguística contribui para os estudos da Sociologia.

1º – os signos da escrita são arbitrários; nenhuma relação existe entre a letra t e o som que ela designa;

2º - o valor das letras é puramente negativo e diferencial; assim, a mesma pessoa pode escrever t com variantes [...]

A única coisa essencial é que esse signo não se confunda em sua escrita com o do l, do d etc.;

3º – os valores da escrita só funcionam pela sua oposição recíproca dentro de um sistema definido, composto de um número determinado de letras [...]

4º – o meio de produção do signo é totalmente indiferente, pois não importa ao sistema [...]

Quer eu escreva as letras em branco ou preto, em baixo ou alto relevo, com uma pena ou com um cinzel, isso não tem importância para a significação (SAUSSURE, CLG, 2012, p. 167, grifo do autor).

Dito de outro modo, não importa o meio pelo qual são produzidos os signos, desde que não se confunda uma letra ou um som com as demais. É preciso conseguir diferenciar ‘lata’ de ‘tata’, por exemplo, tanto na forma escrita quanto oral.

Diante disso, o singular só existe em oposição ao plural; ‘copos’ só existe em oposição a ‘copo’. Assim como, se não existisse a forma ‘xícara’, a forma ‘copo’ possivelmente abarcaria o significado de xícara. Normand (2009) exemplifica isso ao dizer que ‘ande’, só tem valor em oposição a ‘andem’, ‘andemos’, ‘ando’, mas não isoladamente. Isso também ocorre com a distinção entre ‘ande’, ‘pare’ ou ‘continue’.

Sobre isso, Normand (2009, p. 77) afirma que “é necessário parar de querer isolar formas que seriam observáveis em si e admitir que elas não podem ser apreendidas senão em suas relações com outras, que elas só existem, do ponto de vista linguístico, nessas relações”. Ou seja, os signos são solidários e encontramos, nesse sistema, apenas diferenças (SAUSSURE, ELG, 2004).

Um outro atributo muito importante do signo é o de valor, que está na base da SA, o qual abordo no próximo subcapítulo e faz uma relação com a alteridade platônica que, segundo Ducrot, está na base dessa noção.

Documentos relacionados