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O princípio de diferença “parece de fato corresponder a um significado natural de fraternidade: ou seja, à ideia de não querer ter vantagens maiores, a menos que seja para o bem de quem está em pior situação”192. Segundo Rawls, o

princípio de diferença tem como exigência “que seja qual for o nível geral de riqueza, as desigualdades existentes têm de satisfazer a condição de beneficiar os outros tanto como a nós mesmos”193. E completa dizendo que “essa condição revela que

mesmo usando a ideia de maximização das expectativas dos menos favorecidos, o princípio de diferença é essencialmente um princípio de reciprocidade”. Na sua concepção de justiça política, as pessoas livres e iguais não ganham às custas umas das outras, ao contrário, somente se permitem vantagens recíprocas. Tendo isso em vista, as ações afirmativas constituem medidas que se situam de fato como uma questão de justiça social indispensável para eliminar os privilégios sociais, e contribuir, de modo significativo, para a construção de uma sociedade efetivamente justa. De alguma maneira, as ações afirmativas se traduzem em ações de reciprocidade e de fraternidade para com os menos favorecidos.

As ações afirmativas estão em conformidade com a ideia de cooperação social entre as pessoas livres e iguais, pois com base em interpretação do liberalismo político, preservam a relevância da noção de reciprocidade e do senso de justiça entre todos os cidadãos. Enquanto ideias estruturantes, os princípios de justiça como equidade, em especial o princípio de diferença, exigem que as desigualdades econômicas e sociais beneficiem todos, especialmente os menos favorecidos. Diante disso, ao dar ênfase à relação de reciprocidade entre as pessoas socialmente mais favorecidas e as menos favorecidas com base em perspectiva política, busca-se tornar evidente que a falta dos sentimentos de natureza altruística e a ideia de benefício mútuo é prejudicial para a democracia. De alguma forma, isso enfraquece a capacidade de compaixão e obstaculiza o desenvolvimento de laços afetivos entre as pessoas e as instituições. Decerto, numa

192 RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 126.

193 RAWLS, John. Justiça como equidade: uma reformulação. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p.

sociedade em que às pessoas demonstram o entendimento acerca da concepção política de justiça e aceitam publicamente que seus princípios devem ser referência na divisão igual dos bens sociais, as ações afirmativas atenderão à condição de reciprocidade nos acordos distributivos, possibilitando atenuar as consequências dos acidentes naturais e da própria sorte social. Portanto, o senso de justiça é capaz de produzir nos cidadãos livres e iguais a vontade de agir em nosso bem, e isso parece ser indispensável para a preservação da sociabilidade recíproca e fraterna.

Parece razoável acreditar que, em sociedades democráticas, as quais anseiam a igualdade plena para todos os seus cidadãos, possam ter o princípio da fraternidade como um parâmetro em suas relações políticas entre as pessoas mais favorecidas e as menos favorecidas. Acredita-se que os cidadãos possam ter a consciência de que a admissibilidade das ações afirmativas se configura como uma política pública equitativa, por meio da qual os menos favorecidos poderão ter preservado a sua cidadania. A fraternidade, além de contribuir para o processo de humanização das sociedades modernas e democráticas, contribui para a realização dos direitos humanos fundamentais das pessoas. Nesse sentido, com base no conceito de fraternidade acredita-se que os programas de ações afirmativas possibilitam superar estigmas ainda identificáveis na sociedade civil quando se trata da afirmação e da garantia dos direitos constitucionais pelos menos favorecidos. Consequentemente, para além de uma abordagem filosófica simplista, o processo de legitimação das ações afirmativas, como esta tese revela, pode ser entendido de acordo essa perspectiva de fraternidade, tal como Rawls compreendia o segundo princípio da justiça.

Os princípios de justiça têm base equitativa sobre a qual os mais favorecidos por talento natural, ou mais afortunados em posição social, duas coisas das quais não se pode considerar merecedor, possam esperar a cooperação voluntária dos outros quando algum sistema viável seja uma condição necessária para o bem-estar de todos. Quando se decide procurar uma concepção de justiça que neutralize os acidentes da dotação natural e das contingências de circunstâncias sociais como fichas na disputa por vantagens políticas e econômicas, se é levado a esses princípios. Eles expressam a consequência do fato de serem deixados de lado os aspectos do mundo social que parecem arbitrários de um ponto de vista moral194.

É natural pensar que a igualdade de oportunidades de fato requer o estabelecimento de procedimentos justos segundo os quais as pessoas possam competir por várias recompensas sociais. Nessa medida, as ações afirmativas surgem como uma ferramenta social para se enfrentar o fracasso da igualdade formal, ajudando a mitigar a falta de êxito que resulta das desigualdades étnica- raciais e econômicas, notavelmente ainda existentes, como ocorre no sistema de educação superior. Ante essa realidade, as ações afirmativas podem ser usadas para aumentar a quantidade dos estudantes de baixa renda aos níveis mais elevados de formação acadêmica. Pode-se olhar para um caso concreto de ações afirmativas voltadas para o acesso ao ensino superior para que se compreenda essa realidade. Uma modalidade interessante de ação afirmativa é o Programa Universidade para Todos195, destinado à concessão de bolsas de estudo por

instituições privadas de ensino superior aos estudantes egressos do ensino público e de baixa renda. Não é exagero dizer que, quando uma sociedade não adota nenhuma modalidade de ações afirmativas, ela se distancia da justiça e, consequentemente, abre margem para que os menos favorecidos não consigam maximizar o seu direto ao nobre bem social da educação pública, universal e de qualidade.

Uma forma ideal de ação afirmativa deve usar, principalmente, o princípio da justa igualdade de oportunidades como um meio para determinar quem deve se beneficiar. Portanto, as ações afirmativas devem direcionar as pessoas que tiveram a menor igualdade de oportunidades, como demonstrado pelas menores taxas de renda e mobilidade social. Dadas as realidades do atual sistema público de ensino, isso significa que os estudantes de baixo status socioeconômico de comunidades com grandes populações de menos favorecidos devem ser os beneficiários das ações afirmativas no acesso ao ensino superior. Quando a ação afirmativa é usada dessa forma, impede que a condição étnico-racial e o status socioeconômico de uma pessoa, assim como a falta de oportunidades causada por esses atributos, prejudiquem a realização de suas expectativas de vida. Portanto, as ações

195 No Brasil, de acordo com a lei nº 11. 096/2005, que instituiu Programa Universidade para Todos –

PROUNI, dispõe, em seu Art. 2º, que a bolsa de estudos será destinada: I - a estudante que tenha cursado o ensino médio completo em escola da rede pública ou em instituições privadas na condição de bolsista integral; II - a estudante portador de deficiência; III - a professor da rede pública de ensino, para os cursos de licenciatura, normal superior e pedagogia, destinados à formação do magistério da educação básica; Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004- 2006/2005/lei/l11096.htm. Acesso em: 15 set. 2018.

afirmativas permitem os mesmos resultados que, provavelmente, teriam ocorrido se não houvesse uma falha anterior do princípio da justa igualdade de oportunidades. É justificável, portanto, até o momento em que os princípios de justiça como equidade possam ser plenamente realizados e os cidadãos tenham compreendido bem sobre a importância de se apoiar o conjunto da normatividade institucional, em especial, da concepção compartilhada de justiça.