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2 O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E SEU

2.5 Outros princípios e dispositivos constitucionais

2.5.5 Princípio da reserva do possível e mínimo existencial

Tratar sobre a problemática alusiva ao direito à educação e o princípio da reserva do possível é uma tarefa que demandaria uma pesquisa mais aprofundada. Como tal análise não é objeto desse estudo, apenas a título informativo, é importante sintetizar algumas questões concernentes ao tema, tendo em vista, principalmente, que o Estado, no intuito de justificar os limites da sua responsabilidade na ausência da concretização do direito à educação, tem suscitado o princípio da reserva do possível.

A chamada reserva do possível foi desenvolvida na Alemanha, num contexto jurídico e social totalmente distinto da realidade histórico-concreta brasileira. Nestas diferentes ordens jurídicas concretas não variam apenas as formas de lutas, conquistas e realização e satisfação dos direitos, mas também os próprios paradigmas jurídicos aos quais se sujeitam. Assim, enquanto a Alemanha se insere entre os chamados países centrais, onde já existe um padrão ótimo de bem-estar social, o Brasil ainda é considerado um país periférico, onde milhares de pessoas não tem o que comer e são desprovidas de condições mínimas de existência digna, seja na área da saúde, educação, trabalho e moradia, seja na área da assistência e previdência sociais, de tal modo que a efetividade dos direitos sociais ainda depende da luta pelo direito entendida como processo de transformações econômicas e sociais, na medida em que estas forem necessárias para a concretização desses direitos (CUNHA JÚNIOR, 2013, p. 744).

Assim sendo, observa-se que a cláusula denominada “reserva do possível” teve origem na Alemanha, no ano de 1972, citada em uma decisão de constitucionalidade, em se tratando de normas de aprovação nos cursos superiores de Medicina. Em tal decisão, foi limitado o acesso a mencionados cursos sob a alegação de que direitos de cunho social só poderiam ser concedidos diante de um exame e análises aprofundados sobre o caso concreto, com respaldo na razoabilidade e proporcionalidade.

Importante frisar que a cláusula da reserva do possível, no Brasil, ganhou novas interpretações, tendo em vista as diferenças sociais e culturais existentes no país, comparando com a Alemanha, berço da teoria. Sobre essa questão:

Devemos nos lembrar que os integrantes do sistema jurídico alemão não desenvolveram seus posicionamentos para com os direitos sociais num Estado de permanente crise social e milhões de cidadãos socialmente excluídos. Na Alemanha – como nos países centrais – não há um grande contingente de pessoas que não acham vagas nos hospitais mal equipados da rede pública; não há necessidade de organizar a produção e distribuição da alimentação básica a milhões de indivíduos para evitar sua subnutrição ou morte; não há altos números de crianças e jovens fora da escola; não há pessoas que não conseguem sobreviver fisicamente com o montante pecuniário de assistência social que recebem, etc (KRELL, 2002, p. 108). Observa-se que o contexto onde a teoria foi desenvolvida difere, de forma substancial, da situação fática do Brasil. Nesse sentido, mencionada cláusula é invocada como óbice à concretização do direito à educação, embora este seja consagrado, conforme se verá adiante de forma mais detalhada, como direito fundamental.

É importante frisar que apenas a alegação estatal de que não há recursos disponíveis para o cumprimento do direito à educação não é suficiente. É necessário que se comprove a impossibilidade. Assim, minimiza-se a possibilidade de o Estado agir, de forma dolosa, objetivando exonerar-se das suas obrigações constitucionais. Ao descumprir os preceitos legais, o Estado pode ser instado a fazê-lo, por meio do Poder Judiciário, usualmente acionado para a resolução de impasses. É imprescindível assegurar a concretização do mímino existencial referente aos direitos fundamentais, ou seja, devem ser respeitados os princípios e garantias fundamentais indispensáveis à existência humana, tema amplamente discutido nessa pesquisa, quando delineados aspectos concernentes ao princípio da dignidade da pessoa humana.

Ao apurar os elementos fundamentais dessa dignidade (o mínimo existencial), estar-se-ão estabelecendo exatamente os alvos prioritários dos gastos públicos. Apenas depois de atingi-los é que se poderá discutir, relativamente aos recursos remanescentes, em que outros projetos se deverá investir. O mínimo existencial, como se vê, associado ao estabelecimento de prioridades orçamentárias é capaz de conviver produtivamente com a reserva do possível (BARCELLOS, 2002, p. 246). Assim, o mínimo existencial atua como um limitador à invocação da claúsula da reserva do possível. Esta só pode ser arguida, no sentido de escusa, quando for realizado um juízo prévio de proporcionalidade e razoabilidade, onde será averiguado se o mínimo existencial está sendo garantido, em relação a todos os direitos em questão. O mínimo existencial se trata de uma proteção ao

estabelecimento de uma vida digna, onde são efetivadas as garantias fundamentais, passíveis de proteção jurisdicional.

O poder estatal, por meio de políticas públicas, tem a atribuição de aplicar os recursos públicos, tendo em vista o seu poder de decisão. Porém, não fica à mercê do Estado a escolha de prestar ou não a parcela mínima de cada direito fundamental social. Caso assim fosse, estaria se incorrendo no risco de violar direitos e garantias constitucionais. Essa parcela de direitos fundamentais, também denominada como sendo “mínimo existencial”, possibilita a efetivação do princípio da dignidade da pessoa humana.

A Constituição da República de 1988 dispõe, expressamente, em seu art. 5º, inciso XXXV, a possibilidadede se recorrer às vias judiciais quando da violação de direitos: “A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de lesão a direito”. Portanto, no caso de violação dos direitos fundamentais, o Poder Judiciário poderá ser acessado, na busca por uma intervenção capaz de assegurar o cumprimento das políticas públicas, objetos de legislação e das normas constitucionais. Afinal, os direitos positivados, ou seja, aqueles expressos na legislação, restarão inócuos e vazios, se desprovidos de efetividade. Cabe ao Judiciário, intérprete e aplicador do Direito, assegurar a efetivação das normas fundamentais.

A jurisprudência tem se posicionado no sentido de que o Estado não pode se eximir da sua obrigação, utilizando como respaldo a cláusula da “reserva do possível” e a alegação de que há limitações financeiras capazes de inviabilizar a prestação estatal equivalente. Assim já decidiu o Superior Tribunal Federal:

CRECHE E PRÉ-ESCOLA – OBRIGAÇÃO DO ESTADO – IMPOSIÇÃO – INCONSTITUCIONALIDADE NÃO VERIFICADA – RECURSO EXTRAORDINÁRIO – NEGATIVA DE SEGUIMENTO. 1. Conforme preceitua o artigo 208, inciso IV, da Carta Federal, consubstancia dever do Estado a educação, garantindo o atendimento em creche e pré-escola às crianças de zero a seis anos de idade. O Estado – União, Estados propriamente ditos, ou seja, unidades federadas, e Municípios – deve aparelhar-se para a observância irrestrita dos ditames constitucionais, não cabendo tergiversar mediante escusas relacionadas com a deficiência de caixa. Eis a enorme carga tributária suportada no Brasil a contrariar essa eterna lenga-lenga. O recurso não merece prosperar, lamentando-se a insistência do Município em ver preservada prática, a todos os títulos nefasta, de menosprezo àqueles que não têm como prover as despesas necessárias a uma vida em sociedade que se mostre consentânea com a natureza humana. 2. Pelas razões acima, nego seguimento a este extraordinário, ressaltando que o acórdão proferido pela Corte de origem limitou-se a ferir o tema à luz do artigo 208, inciso IV, da Constituição

Federal, reportando-se, mais, a compromissos reiterados na Lei Orgânica do Município – artigo 247, inciso I, e no Estatuto da Criança e do Adolescente – artigo 54, inciso IV. 3. Publique-se. (STF, Decisão Monocrática, RE n. 356.479-0, rel. Min. Marco Aurélio. J. em 30/04/2004, DJU 24.05.2004).

Nesse sentido, depreende-se do julgado acima que o intuito das decisões tem sido preservar a efetividade do mínimo existencial, o que vai de encontro à pura e simples avaliação discricionária da Administração Pública. Desse modo, em se tratando do direito fundamental à educação, a tese de defesa consubstanciada na “reserva do possível” não pode ser meramente alegada, sem nenhum tipo de respaldo comprobatório, na tentativa de suscitar ausência de recursos.

Nas palavras do Ministro Marco Aurélio, as escusas oriundas de deficiência de caixa, já que é evidente a enorme carga tributária suportada do país, não merecem prosperar. Além disso, não se pode permitir que sejam menosprezados aqueles que não possuem condições de prover as despesas necessárias a uma vida digna, com o mínimo existencial. Os direitos fundamentais, aqui em específico, o direito à educação, devem ser garantidos, posto que é dever do Estado, preceituado pela Carta Constitucional.

3 O RECONHECIMENTO JURÍDICO-CONSTITUCIONAL DOS DIREITOS

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