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CAPÍTULO V A equidade dos direitos do homem na reconstrução pós-

1. O princípio da equidade

A equidade, no sentido da nossa abordagem anterior, vem enquadrar-se nas circunstâncias relativas às situações de reconstrução pós-conflitos armados.

Pese embora a análise sobre o conceito de equidade não seja de hoje, e a sua pertinência constituísse motivo de reflexão desde os primórdios jurídicos - desde Aristóteles que se mantém vigente a análise do enquadramento dos limites do conceito e respetiva aplicabilidade prática - a atualidade da questão e resultados práticos derivados desse conceito não contrasta todavia com a sua definição de outrora e atual: a equidade continua a significar “justiça do caso concreto”.

A nossa analogia no presente trabalho é tentar associar o conceito de equidade a duas situações tendo por referência o direito em sentido restrito: a resolução de casos à luz da equidade por insuficiência de normas positivadas pelo direito, por um lado, isto é a solução legal prevê essa circunstância; e, por outro lado, recorrer ao conceito para fazer uma análise prática, em circunstâncias específicas de intervenção em zonas de conflito armado. O conceito de equidade visto aqui sob o ponto de vista do resultado da atuação dos agentes humanitários no terreno tipifica um instrumento de equilíbrio possível com as nuances resultantes da especificidade dos conflitos armados, fases e condições de intervenção.

É no mesmo sentido da inevitável generalidade das leis, já defendida por Aristóteles, que se deixa para trás algumas lacunas inerentes à natureza das coisas que também no Direito Internacional Público se recorre à equidade, caraterizada pelo princípio ex aequo et

bono, nos termos do artigo 38º, nº 2, in fine do Estatuto do Tribunal Internacional de Justiça,

suprindo assim silêncios ou lacunas.

A equidade é, nos termos atrás referidos, uma fonte formal de Direito Internacional, no entanto o conceito de decisão ex aequo et bonno vai para além da equidade intra legem

ou praeter legem. A jurisprudência do tribunal vai no sentido que o teor do artigo 38º do

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diferendo ex aequo et bonno, se lhe conferirem esses poderes173, dependendo de um texto claro e inequívoco emanado pelas partes em litígio.

Assim, no caso particular dos conflitos armados, importa abordar o conceito de equidade não como qualificação de uma decisão proferida ou recurso a uma norma residual, um princípio previsto pelas partes como última possibilidade de dirimir um conflito, mas pelo contrário, o recurso a um senso comum, senso de justiça e imparcialidade numa intervenção em sede de conflito armado, onde pode ocorrer que a garantia dos direitos seja de natureza tão ténue que não faça sentido debater o que é a igualdade.

Todavia o conceito de equidade para o qual aqui se remete entende-se numa perspetiva de aplicação ao âmbito do direito internacional humanitário, ou seja de uma forma restrita. Entendemos nós, obviamente sem fugir ao princípio base ex aequo et bono, típico de circunstâncias de paz, que no caso dos conflitos armados, mormente no processo de reconstrução, há diferenças mais acentuadas que se têm que considerar e admitir. Deve por isso, tal como na equidade no sentido jurídico aplicado pelo julgador, (Fernandes, 1996) atender às razões de ordem social específicas bem como às exigências do bem comum e princípios que se pretendem salvaguardar174.

Como já tivemos oportunidade de referir, o grande número de conflitos armados que alastraram após o terminus da Guerra Fria, fomentou grandes discussões sobre a teoria e a prática na intervenção na resolução de conflitos e reconstrução da paz. Inicialmente recorreu-se a uma classificação desta amálgama de conflitos de uma forma muito simplista sob um ponto de vista quase exclusivamente de cariz étnico limitando desde logo as hipóteses de recorrer a instrumentos de prevenção e reconstrução eficazes uma vez que as razões da “moléstia” estavam mal diagnosticadas e a equidade na intervenção e na reconstrução carecia de rigor e mostrava-se inatingível.

O estudo concreto do conflito reveste-se de primordial importância, pois nem todas as guerras são iguais, quer se trate de conflitos internos (guerras civis), conflitos nacionais ou conflitos internacionais. As sociedades de onde emergem esses conflitos nunca podem ser arredadas da sua essência, da sua génese, do seu passado, do seu futuro e das suas diferenças. Consideramos, pois que os motivos pelos quais advêm esses inúmeros tipos de

173 Cf. JOAQUIM DA SILVA CUNHA/MARIA DE ASSUNÇÃO DO VALE PEREIRA, Manual de Direito Internacional

Público, cit., pp. 317-320.

174 Cf. LUÍS A. CARVALHO FERNANDES, Teoria Geral do Direito Civil, vol. II, 2ª ed., Lisboa, Lex 1996, pp. 340-

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117 conflitos, para além do seu grau de violência e classificação à luz do DIH devem ser judiciosamente ponderados, analisando as causas mínimas tendo em vista minimizar e cercear as consequências máximas.

Entendemos, no seguimento de vários autores que de facto não há uma causa isolada para os conflitos mas sim uma complexidade de causas e situações de maior ou menor índice endémico que se vão interligando, alimentando as intrigas até ultrapassar os limites da paz e gerando a guerra.

Imperando, por isso mais que um fator, temos que considerá-los para atingir a equidade possível. Há fatores a considerar tais como ressentimentos históricos, sentimentos de exclusão da sociedade dominante, marginalização política, discriminação económica na desigualdade de distribuição de recursos e benefícios concedidos que contribuem inexoravelmente para o subdesenvolvimento e para a ausência da reconstrução tendo em visto trilhar o caminho genuinamente democrático.

O enfoque de um processo cabalmente equitativo para efeito de resultados claramente eficazes e não fictícios caraterísticos dos meandros políticos e meramente diplomáticos alheados dos resultados práticos, consiste em atender às exigências de um sistema de partilha de poder no âmbito de uma equidade e justeza possível que não fira a suscetibilidades dos diferentes grupos, conjugando géneses passadas e vicissitudes presentes. Não podemos olvidar, por isso, a existência de fatores (económicos e sociais) que por serem formas de contínua interação entre grupos diversos estão diretamente relacionados com o aumento da instabilidade e surgimento de formas de contestação em relação ao status quo do poder instituído.

A desigualdade no acesso a bens e serviços, aos recursos aos direitos e necessidades básicas e incapacidade ou ausência de vontade dos detentores do poder em atender aos problemas sistémicos e reivindicações dos grupos distintos e mesmo da população em geral são fatores que contribuem para o agravamento e perpetuação dos conflitos, afastando paulatinamente a consolidação da reconstrução.

Exercer a equidade é, quanto a nós, ter a perceção de que as fortes desigualdades nas oportunidades económicas no acesso a recursos, por exemplo, provocam diferenças significativas no modus vivendi dos grupos constituídos com a suscetibilidade de provocar ressentimentos e deterioração progressiva das relações sociais com efeitos na emergência e propensão para os conflitos.

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Ter um atitude baseada na equidade, quanto possível, seja em que fase do conflito essa intervenção possa ocorrer, poderá consistir em reconhecer as questões estruturais, bem como a necessidade de lhes reagir com eficácia e sustentabilidade, mormente as desigualdades socioeconómicas, as discriminação inter e intragrupos, no enfoque das causa e fatores dissimulados aos olhares negligentes. A ausência das estratégias de paz, sem recurso às questões fundamentais inerentes aos grupos sistematicamente negligenciados pelos governos centrais e pelos atores internos e externos envolvidos no processo põem em causa o objetivo da reconstrução e consolidação no desiderato de uma paz duradoura e sustentável.

Mostra-se também essencial equacionar a partilha equitativa de recursos, a divisão da terra e envidar esforços no sentido de amenizar e ultrapassar ressentimentos e ódios baseados em identidades raciais. Apenas este contexto de atuação permitirá consolidar as garantias de cidadania equitativa e perene deixando para trás os estigmas enraizados nas diferenças étnicas, religiosas ou culturais, como armas geradoras e alimentadoras dos conflitos, atingindo um cenário de paz assente em pilares sólidos.

Urge para efeitos dessa equidade que nos propusemos aqui debater, coexistir na reconstrução um entendimento profundo e rigoroso em relação à complexidade e dinâmica das causas a eles subjacentes, vulgarmente designadas como guerras étnicas mas que na verdade, carecem de um entendimento mais abrangente e consciente do que uma abordagem simplista, enovelada pela instrumentalização dos motivos geradores dos conflitos.

Consiste portanto, numa matriz crucial da abordagem quer seja no conflito do Afeganistão, do Kosovo, do Sudão, Ruanda ou Burundi e todos os demais, qualquer que seja o contexto, saber compreender e resolver os conflitos, ajustando a análise para efeitos de uma equidade que não pode excluir o peso das desigualdades socioeconómicas. Reveste-se de primordial importância atender também às razões históricas, procurando atingir as respostas estruturais às exigências básicas consideradas essenciais através de uma análise profícua, nunca perdendo de vista que os simples acordos políticos, jogos diplomáticos desfasados da realidade, sem bases estruturais sólidas serão efémeros e de efeitos inócuos.

Serve-nos tudo isto para sustentarmos que nos vários conflitos e focos de violência que vão assolando as regiões e os países vão sendo despoletados por múltiplas divergências, para além das étnicas e religiosas, muitas das vezes artificialmente criadas, mas

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119 principalmente sustentamos que maioritariamente esses conflitos se mantêm acesos por exigências de cidadania equitativa, justiça social e míngua de direitos económicos e sociais dentro dos grupos mais lesados, fazendo com que os conflitos permaneçam ativos e nocivos até que as suas causas genéticas sejam de uma vez por todas neutralizadas e substituídas pela satisfação das necessidades fundamentais das populações.

Cumpre-nos, então, por último referir que a especificidade do conceito, no sentido em temos vindo a analisá-lo, adaptado à prática da intervenção humanitária nas zonas de conflito em geral e na reconstrução pós-conflitos armados em particular é que consiste no ponto de equilíbrio desejável na atuação. A essência desse ponto de equilíbrio tem contudo a sua especificidade: a intervenção para ter hipótese de eficácia no terreno tem que ter a anuência dos envolvidos nos trâmites do Direito Internacional Público, mas para além disso, deve-se configurar e concretizar na justeza e acerto da visibilidade humanitária.