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2 A TUTELA CONSTITUCIONAL DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE E A

2.3 OS PRINCÍPIOS DE PROTEÇÃO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE: O

2.3.1 Princípio do Melhor Interesse

Com a ratificação da Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989 pelo Brasil31 e em seguida com a edição do Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990, foram introduzidos na ordem jurídica nacional, o princípio do melhor interesse e a doutrina da proteção integral – crianças e adolescentes passaram a ser consideradas sujeitos de direitos, ou seja, passaram a ser reconhecidos como seres que merecem tratamento prioritário, não subordinados ao poder indiscriminado parental.

Para melhor compreender as bases do princípio ora analisado, impende resgatar elementos de suas raízes. Tânia da Silva Pereira (2008, p. 42) esclarece que na doutrina internacional o princípio do melhor interesse da criança originou-se com o instituto parens patriae adotado pela Inglaterra, que equivalia a “uma prerrogativa do Rei e da Coroa a fim de proteger aqueles que não podiam fazê-lo por conta própria”. Tratava-se de guarda dos menores e dos loucos, então incapazes e de eventuais propriedades, sob a responsabilidade da Coroa, posteriormente delegada ao Chanceler a partir de meados do século XIV (PEREIRA, 2008, p. 42).

Segundo Daniel B. Griffith32, estudado por Tânia da Silva Pereira, (2008, p. 43) o parens patriae adotado na Inglaterra correspondia “a autoridade herdada pelo

31 Segundo Karyna Batista Sposato (2010, p. 47) “a mudança de paradigma e a introdução de um

novo direito da criança e do adolescente no ordenamento brasileiro encontra suas origens na ratificação da Convenção internacional das Nações Unidas sobre os direitos da criança em 1989, na campanha Criança e Constituinte e logo na entrada em vigor da própria Constituição. Este processo de alteração jurídica e social possui um enorme significado, o qual Emílio Garcia Méndez definiu como a conjunção de três coordenadas fundamentais: infância, lei e democracia.”

32 Daniel B. Griffith é autor do texto “The best interests standard: a comparison of the state’s parens

patriae authority and judicial oversight in best interests determinations for children and

incompetente patients. In: Issues in law and medicine” e utilizado como referência por Tânia da

Silva Pereira, (2008, p. 43) para explicar o desenvolvimento histórico do princípio do melhor interesse.

Estado para atuar como guardião de um indivíduo com uma limitação jurídica”. Neste sentido, o Chanceler, integrante das Cortes de Chancelaria, atuava como o “guardião supremo” com o objetivo de “proteger todas as crianças, assim como os loucos e débeis, ou seja, todas as pessoas que não tivessem discernimento suficiente para administrar os próprios interesses”. Esse ideal perdurou até a chegada do século XVIII, quando as Cortes inglesas passaram a distinguir a proteção das crianças, da proteção dos loucos, dentro das atribuições do parens patriae.

A mesma autora, ainda em estudo realizado a partir do texto publicado por Daniel B. Griffith quanto à origem histórica do princípio do melhor interesse, assinala:

Griffith, referindo-se às origens históricas do referido instituto,

reportasse ao caso Finlay v. Finlay, julgado pelo Juiz Cardozo, em que ficou ressalvado que, ao exercitar o parens patriae, a preocupação não deveria ser a controvérsia entre as partes adversas e nem mesmo tentar compor a diferença entre elas. “O bem estar da criança deveria se sobrepor aos direitos de cada um dos pais.” Dois julgados do Juiz Lord Mansfield em 1763, envolvendo medidas semelhantes ao nosso procedimento de “busca e apreensão do menor”, identificados como caso Rex v. Delaval e caso Blissets, são conhecidos no Direito Costumeiro inglês como os precedentes que consideraram a primazia do interesse da criança e o que era mais próprio para ela. Somente em 1836, porém, este princípio tornou-se efetivo na Inglaterra (PEREIRA, 2000, p. 43).

Foi somente a partir do século XVIII que o instituto parens patriae passou a distinguir crianças e loucos e, em 1836, o princípio do melhor interesse tornou-se oficial pelo sistema jurídico inglês, como afirma Caio Mário da Silva Pereira (2013, p. 60), em complemento à explicação.

Importante observar que embora o padrão do melhor interesse da criança seja descrito frequentemente como derivado do direito de família inglês, a Inglaterra não foi a grande protagonista na ascensão deste princípio. Lynne Marie Kohm (2008, p. 337-381) afirma que houve uma importante influência da jurisprudência americana sobre a inglesa, sobretudo relacionada à legislação da adoção, pois os movimentos protestantes teriam incentivado as adoções com a finalidade de proporcionar o bem- estar às crianças que viviam em orfanatos.

Os Estados Unidos, então na contramão dos ideais propagados pelo Direito Romano, que tratava a adoção de filhos como meio de obter herdeiros e possibilitar a manutenção do patrimônio da família, procurou estabelecer uma instituição para melhorar a condição da criança negligenciada. Em meados de 1813, esse incentivo à adoção foi recepcionado pelos tribunais em suas jurisprudências com o nominado best

interest.33 Fala-se, também, que o princípio se propagou justamente em razão de um litígio envolvendo a guarda de uma criança, cuja decisão ponderou pelo melhor interesse desta. (KOHM, 2008, p. 381).

Desde o século XVII até o século XIX, notava-se que o melhor interesse da criança estava ligado, de certa forma, ao utilitarismo, com uma visão romântica do direito de família, traduzindo a interpretação de que o reconhecimento do bem-estar da criança compreendia a sua felicidade, independentemente se seus direitos fundamentais individuais estavam sendo tutelados ou não. A mudança dessa perspectiva ocorreu somente em meados do século XX, com a Declaração Universal dos Direitos da Criança de 1959, pois passou-se a confrontar o utilitarismo pelo qual a criança era considerada, com a noção de autonomia e de desenvolvimento. (KOHM, 2008, p. 381).34

Tânia da Silva Pereira (2000, p. 218) enfatiza que “a aplicação do princípio do

best interest permanece como um padrão, considerando, sobretudo, as necessidades

da criança em detrimento dos interesses de seus pais.” O princípio do melhor interesse adotado pela Declaração dos Direitos da Criança foi inserido no Brasil no Código de Menores, todavia, inicialmente, destinado apenas aos menores que se encontravam em situação irregular, sem muitas distinções (AMIN, 2015, p. 68). Anos depois, o princípio foi adotado pela Convenção dos Direitos da Criança de 1989, ratificada pelo Brasil em 1990, cujo teor foi incorporado ao Estatuto da Criança e do Adolescente (NADER, 2016, p. 418). Mais adiante a pesquisa inclinar-se-á a justificar a validade constitucional e fundamental deste princípio, notadamente tratando aspecto sobre a Convenção.

33 Segundo Guilherme Calmon Nogueira (2003, p. 458), o melhor interesse foi reconhecido como

solução de disputas atinentes à guarda dos filhos, pela Corte da Pensilvânia, nos processos de dissolução da sociedade conjugal, advindo a construção da teoria conhecida como Tender Years

Doctrine. Neste sentido, em razão da idade da criança, entendeu-se que ela “necessitava dos cuidados maternos, o que representou o critério da presunção de preferência materna, posteriormente alterado para a orientação conhecida como tie breaker, ou seja, a teoria que recomenda não haver preferência materna, mas a determinação de que todos os elementos devem ser considerados dentro do princípio da neutralidade quanto ao melhor interesse da criança.”

34 “Custody law began to develop in the 1600s, starting with the natural law concept of patria potestas,

or paternal power, which many believe gave the father absolute rights to his children—whom he viewed as chattel.57 The late seventeenth century in England transformed the patria potestas jurisprudence toward a parens patriae doctrine, recognizing the state as parent at times when the King‘s Bench was called upon to intervene in family matters.58 This jurisprudence was likely influenced by utilitarianism in Europe, which spread to the establishment of the colonies. John Stuart Mill viewed paternal power as that which could only be rightfully exercised ―to prevent harm to others.‖59 The Enlightenment and the Romantics had a strong influence on the law of families.” (KOHM, 2008, p. 381).

Na contemporaneidade, tem-se que o princípio do melhor interesse, inserido na ordem interna, atua como garantidor do respeito aos direitos fundamentais outorgados às crianças e adolescentes, para autenticar as decisões judiciais, pois não é o que o Julgador entende que é melhor interesse para a criança, mas sim o que objetivamente atende à sua dignidade como criança, aos seus direitos fundamentais em maior grau possível. Pode-se dizer que o princípio do melhor interesse é utilizado como orientação ao legislador, bem como ao aplicador do Direito, pois é ele que determina qual a real necessidade de aplicação de uma norma diante de um conflito (AMIN, 2015, p. 69).

O melhor interesse representa uma relevante mudança de sentido nas relações parentais, pois o filho deixou de ser considerado um objeto e passou a ser considerado como sujeito de direito que possui tutela própria no ordenamento jurídico, com prioridade absoluta em relação aos demais integrantes da esfera familiar (GAMA, 2003, p. 467).

Lins e Menezes (2017, p, 7-8) afirmam que “o conteúdo do melhor interesse não coincidirá, necessariamente, com a vontade imperativa dos pais, do Estado ou mesmo da própria criança/adolescente”, pois sob a perspectiva da dignidade da pessoa humana, deve ser observado, em primeiro plano, o interesse maior da criança. Desse modo, embora o conteúdo do princípio demonstre-se abstrato, possui peculiar objetivo de garantir o desenvolvimento da pessoa e de sua autonomia.