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1. MEIO AMBIENTE SITIADO: as normas internacionais humanitárias e a

1.1. Normas humanitárias que dispõem especificamente sobre a proteção ambiental em

1.1.3. Princípios do DIH: humanidade, necessidade e proporcionalidade

No contexto do DIH, os princípios específicos permitem interpretações progressistas46 das normas humanitárias existentes, bem como possibilitam a regulação de casos novos, a solução de conflitos normativos e o afastamento de determinadas incertezas jurídicas. À luz das finalidades desse ramo especial do DIP, quais sejam, a proteção de pessoas e coisas que não participam ou não podem diretamente participar nas hostilidades, como, por exemplo, civis e prisioneiros de guerra, além da limitação do uso da violência ao necessário para atingir as vantagens militares pretendidas com o conflito,47 é possível antever os princípios considerados essenciais ao DIH.

O princípio da humanidade assume posição privilegiada na construção do DIH e estabelece a preocupação constante com o respeito à dignidade humana, em qualquer situação. Desse princípio, insculpido no artigo 1º (2) do PA I, decorre a famosa cláusula

Martens e a garantia de que as decisões bélicas devam ser tomadas, diante de casos não

previstos no DIH, de acordo com “os usos e costumes estabelecidos pelas nações civilizadas, pelas leis da humanidade e pelas exigências da consciência pública”.48 Embora este

entendimento não seja pacífico, a compreensão mais comumente aceita acerca dos efeitos da cláusula é a de que as limitações dos conflitos armados não são apenas ditadas por convenções ou costumes, mas pelos princípios do Direito Internacional, em regime de complementaridade entre todas essas fontes do Direito.49 Para Kolb e Hyde (2008, p. 63), a

cláusula possui importantes funções limitadoras das liberdades dos beligerantes:

Whilst its existence is sometimes forgotten, there is today no doubt that the Martens clause is part and parcel of the applicable LOAC (Law of Armed Conflict). [...] That

46 Interpretações progressistas, ou evolutivas, são aquelas que fornecem aos operadores do Direito internacional

suficiente espaço de manobra para fixar o alcance de determinado dispositivo legal com base em fatores como: intenção das partes e o próprio desígnio do tratado, suas finalidades e metas (SHAW, 1994, p. 90).

47 As finalidades do DIH podem ser depreendidas das quatro Convenções de Genebra, de 1949, que visam

proteger as vítimas dos conflitos armados, sejam não-combatentes (civis) ou combatentes que não integram mais as hostilidades (enfermos, prisioneiros de guerra, feridos, entre outros).

48 Preâmbulo da Convenção de Haia, 1899. No texto original: “Until a more complete code of the laws of war is

issued, the High Contracting Parties think it right to declare that in cases not included in the Regulations adopted by them, populations and belligerents remain under the protection and empire of the principles of international law, as they result from the usages established between civilized nations, from the laws of humanity, and the requirements of the public conscience”.

49 Entendimento abraçado pela CIJ no parecer sobre a legalidade do emprego de armas nucleares, analisado no

the Martens clause is different has already been made clear by the fact that its content has been inserted into specific legal provisions found in the Geneva Conventions and in Additional Protocol I […]. Moreover, the clause has been seen as imposing specific positive law obligations on the participants in armed conflicts.

Outro princípio igualmente importante consiste na distinção entre os objetos de ataques, que devem recair sobre pessoas ou bens considerados militarmente estratégicos para a contenda, sendo ilícita a escolha de civis como alvos (SOLIS, 2010, p. 521). Esse postulado pode ser extraído do artigo 52(2) do PA I, que restringe os ataques militares às pessoas ou bens cuja utilização possa contribuir eficazmente para a ação militar da parte adversária e cuja destruição forneça vantagem militar definida, concreta e direta. Mesmo nos casos de dúvida acerca da natureza das pessoas ou bens, como nos casos em que normalmente se destinam a fins civis, mas estejam provisoriamente empregados com propósitos militares,50 existe a

presunção legal de que não se utilizam com fins belicosos, conforme determina o artigo 52(2) do PA I.

No mesmo sentido, os dispositivos 57 e 58 do Protocolo impõem às partes conflitantes o dever de cautela no momento do ataque, além da obrigatoriedade de afastar bens militares de zonas urbanas densamente povoadas. Com base nesse princípio, percebe-se que nenhuma porção do meio ambiente pode ser alvo de manobras militares, a menos que constitua em si mesma um objetivo militar (MENDONZA e CHUNG, 2007, p. 346). Por se tratar de bem comumente voltado para fins civis, cuja preservação viabiliza a continuidade da vida em determinada localidade, o ambiente natural goza de proteção especial. Significa que ataques a áreas verdes, rios, pântanos ou instalações que possam danificar a natureza devem ser precedidos de ponderações quanto à vantagem militar a ser obtida, por um lado, e às consequências infligidas às populações civis, por outro.

A partir da análise do Parecer Consultivo da Corte Internacional de Justiça sobre a Legalidade da Ameaça ou Uso de Armas Nucleares (1996), trabalhado com mais detalhamento no item seguinte, percebe-se a centralidade do princípio da distinção na compreensão e implementação do DIH. Com efeito, a Corte (1996, p. 257, §78) estatuiu que:

50 Caso, por exemplo, de uma igreja, lugar de adoração protegido pelo DIH, que abrigasse munições ou tropas

The cardinal principles contained in the texts constituting the fabric of humanitarian law are the following. The first is aimed at the protection of the civilian population and civilian objects and establishes the distinction between combatants and non- combatants; States must never make civilians the object of attack and must consequently never use weapons that are incapable of distinguishing between civilian and military targets. According to the second principle, it is prohibited to cause unnecessary suffering to combatants: it is accordingly prohibited to use weapons causing them such harm or uselessly aggravating their suffering. In application of that second principle, States do not have unlimited freedom of choice of means in the weapons they use.

O terceiro princípio orientador do DIH consiste no princípio da necessidade, que impõe aos ataques militares a observação de finalidades específicas, visando a restringir a liberdade de ação bélica para preservar vítimas inocentes, sem entretanto deixar de considerar os imperativos militares emergentes nas situações de conflito. A relevância da necessidade militar é expressa nos artigos iniciais do Código Lieber,51 elaborado em 1863 e promulgado pelo então presidente Abraham Lincoln, no propósito de servir como manual de condução de hostilidades para o Exército dos Estados Unidos, ao definir que “a salvaguarda do país é prioritária a quaisquer outras considerações”.52

O edifício argumentativo do princípio da necessidade em cenários de guerra é erguido com base na doutrina da integridade territorial. Nos termos dos artigos 14, 15 e 16 do Código Lieber, necessidade militar equivale à indispensabilidade de medidas lícitas, em consonância com o DIH, capazes de assegurar os objetivos do conflito. Entre as medidas permitidas pelo artigo 15, consta a destruição de todos os meios e fontes de vida das forças inimigas, de onde se presume que estariam incluídas áreas verdes indispensáveis à subsistência da população civil,53 ressalvando, porém, que a necessidade militar não justifica a realização de todo e

qualquer ato de crueldade e hostilidade que dificultem sobremaneira o estabelecimento da paz, embora permita a suspensão de determinados direitos e garantias individuais.

51 Oficialmente, o Código Lieber era conhecido como “Instructions for the Government of Armies of the United

States in the Field”.

52 Código Lieber, art. 5º: “To save the country is paramount to all other considerations”.

53 Código Lieber, art. 15: “Military necessity admits of all direct destruction of life or limb of armed enemies,

and of other persons whose destruction is incidentally unavoidable in the armed contests of the war; it allows of the capturing of every armed enemy, and every enemy of importance to the hostile government, or of peculiar danger to the captor; it allows of all destruction of property, and obstruction of the ways and channels of traffic, travel, or communication, and of all withholding of sustenance or means of life from the enemy; of the appropriation of whatever an enemy's country affords necessary for the subsistence and safety of the army, and of such deception as does not involve the breaking of good faith either positively pledged, regarding agreements entered into during the war, or supposed by the modern law of war to exist. Men who take up arms against one another in public war do not cease on this account to be moral beings, responsible to one another and to God”.

Em face de necessidade militar justificável e imperiosa, os documentos do DIH, como o PA I (1977),54 preveem a possibilidade de derrogar a limitação aos meios e métodos de combate, fornecendo ampla margem de manobra aos beligerantes.55 Diante dessa

possibilidade, a Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU) reforçou a importância do princípio da necessidade, emitindo a resolução 47/37, em 1992, no curso da Guerra do Golfo, depois do episódio dos incêndios de poços petrolíferos por tropas iraquianas. De acordo com esse documento, a destruição do meio ambiente, desde que não justificada por necessidade militar, vai de encontro aos princípios e regras Direito Internacional.56

Na sequencia do conflito no Golfo, e apesar dos passivos ambientais estrondosos, parte da doutrina internacionalista manifestava-se otimista quanto às mudanças no princípio da necessidade em cenários de guerra. Para Baker (1993, p. 352), a práxis militar do final do século passado já se mostrava mais consciente dos mandamentos de proteção do ambiente natural contra os efeitos da guerra. Consequentemente, segundo a autora, a doutrina da necessidade militar estaria atravessando processo de redução de sua aplicação a parcelas cada vez menores de manobras militares, possibilitando que considerações de natureza ambiental tomem precedência ante as de caráter bélico em determinadas circunstâncias.

Ocorre, porém, que a noção de necessidade militar, conexa àquela de vantagem militar antecipada, favorece raciocínio relativo, variável de acordo com a perspectiva em questão, isto é, se agressor ou vítima (SOLIS, 2010, p. 521). A aferição da necessidade (e da vantagem a longo termo) de determinado ataque pela parte agressora será distinta daquela experimentada pela vítima, que considerará diversas manobras inimigas como “desnecessárias”. Ademais, a noção de necessidade pode ser construída levando-se em conta o ataque como um todo, ao invés de parcelas específicas e isoladas do ataque, fato que favorece interpretações antagônicas do princípio da necessidade no DIH. Afinal, se a vantagem militar pretendida visa sempre à vitória no conflito (ou o “ataque como um todo”), a parte vencedora considerará o conjunto das manobras efetuadas como necessário.

54 A Convenção de Genebra n. I, que compõe o quadro normativo do DIH, menciona a “urgente necessidade

militar” nos artigos 8º, 29, 30, 33 e 50, para os casos em que há flexibilização das normas protetivas do texto humanitário.

55 Protocolo Adicional I, art. 54(5) – “Tendo em conta as exigências vitais de qualquer Parte no conflito para a

defesa do seu território nacional contra a invasão, são permitidas a uma Parte no conflito, em território sob seu controlo, derrogações às proibições previstas no n.º 2, se necessidades militares imperiosas o exigirem”.

56 “Destruction of the environment, not justified by military necessity and carried out wantonly, is clearly

Por fim, traz-se à cena o princípio da proporcionalidade, segundo o qual “nenhum alvo, mesmo que militar, deve ser atacado se os prejuízos e sofrimento forem maiores que os ganhos militares que se esperam da ação” (BORGES, 2009, p. 20). Esse postulado encontra suas raízes no Direito Costumeiro Internacional, tendo sido codificado no PA I, mais especificamente nos dispositivos 35, 51 e 57. Segundo a contribuição do CICV à Conferência do Rio (CICV, 1992, p. 09), o conceito de proporcionalidade fixa importantes restrições ao uso da força no cenário internacional, na medida em que permite somente os atos proporcionais e necessários aos objetivos lícitos de qualquer operação militar.

Para delimitar o que se entende por proporcionalidade nas normas humanitárias, Mendonza e Chung (2007, p. 347) sugerem que “la proporcionalidad en un ataque se mide a partir de la necesidad militar y en función a la ventaja militar (concreta y directa) a ser obtenida”. Desse princípio decorre a regra insculpida no artigo 35(2) do PA I, que proíbe a geração de danos supérfluos e sofrimento indiscriminado, não apenas às pessoas civis, como também aos militares em conflito. Discorrendo sobre a definição de wartime environmental

damage proporcional às vantagens obtidas, Baker (1993, p. 365) defende que uma vasta gama

de danos ambientais registrados até hoje seria considerada ineficaz (do ponto de vista bélico), dado que os prejuízos à população civil sejam claramente desproporcionais a quaisquer pretensas metas militares. De fato, ainda quando o meio ambiente consista em alvo militar, quando porções da natureza sejam utilizadas com fins militares por uma das partes em conflito, os danos causados devem ser ponderados com as consequências negativas para a população que depende das áreas atingidas para sobreviver.

Nesse sentido, ainda segundo Baker, (1993, p. 367), as restrições com base na proporcionalidade são de tal monta relevantes, que seriam vinculantes a todos os Estados, inclusive aos não signatários do PA I. Equivale a defender que as normas do Protocolo possuiriam caráter vinculante e, portanto, de costume internacional. No mesmo sentido, Solis (2010, p. 121) defende que o PA I apenas formalizou as normas de costume internacional expressas pelos princípios de DIH, entre eles o da proporcionalidade. Contudo, tal concepção diverge do entendimento de Dinstein (2001, p. 534), para quem, apesar dos avanços inegáveis trazidos pelo PA I, é errado enxergar nos termos desse documento abundância de direito consuetudinário. Trata-se de debate ainda inconcluso, do qual se extraem duas vantagens: consolida, em primeiro lugar, a centralidade dos princípios humanitários no debate acerca da condução das hostilidades (jus in bello); e favorece abordagem princípiológica do DIH, em

contraste com a abordagem eminentemente dogmático-legalista, possibilitando maior leque de interpretações sobre a licitude ou não de certas medidas militares.

Decorre daí que os princípios humanitários, por refletirem forte carga humanista (de fato, os princípios saíram fortalecidos das ondas de reconhecimento de direitos humanos na segunda metade do século passado) e por gozarem do status (controverso) de costume internacional, sendo vinculantes a todos os Estados, podem oferecer proteção adicional ao meio ambiente nos cenários bélicos. Dialogam diretamente com outros princípios de ramos especiais do DIP, como o princípio da precaução (do direito ambiental) e o princípio da proteção da dignidade da pessoa (referente aos direitos humanos) e desse diálogo decorre rica interação entre os diferentes ramos do direito internacional, bem como ampliação das possibilidades de interpretação dos respectivos ordenamentos. Tal abordagem principiológica multidisciplinar revela-se tanto mais necessária conforme se notam as insuficiências das normas (princípios e regras) de DIH em proteger eficazmente o meio ambiente durante conflitos armados.