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CAPÍTULO II  PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS RELACIONADOS À ELISÃO

2.3 Princípios e regras

É à distinção entre princípios e regras que a doutrina passa a se ater, desde a década de cinquenta do século passado, pela obra de Jean Boulanger, jurista francês, passando pelas obras marcantes de Dworkin nos Estados Unidos e Müller, juntamente com Alexy, na Alemanha até chegar a Canotilho, conformando, juntos, o que hoje se denomina teoria dos princípios.

Ronald Dworkin51, citado por Eros Grau, trabalhando com a dualidade direito/moral, chega à constatação de que nos casos difíceis (hard cases) submetidos ao Judiciário, as decisões são tomadas em função de pautas (standards) diversas das regras, que ele nomeia de princípios. Assim, o vocábulo princípio significaria “aquelas pautas que não são regras”. Mais à frente em sua obra, subdivide os princípios em diretrizes (policies) e princípios propriamente ditos, aquelas, voltadas para o atingimento de objetivos sociais, econômicos ou políticos, e estes ligados a aspectos morais, como honestidade e justiça.

A distinção proposta por Dworkin entre princípios e regras é ainda hoje referência na doutrina, não obstante tenham surgido críticas ao seu pensamento. Segundo o professor de Harvard, as regras jurídicas seriam aplicáveis num sistema de tudo ou nada (all-or-nothing

fashion), ou seja, ou a regra é aplicável, e então nenhuma outra pode sê-lo, ou não é, e então

outra o será. As regras não comportam, portanto, exceções. Já os princípios podem até ser desprezados em determinada situação, mas isso não implica sua invalidade, pois em outra situação poderão ser aplicáveis.

Uma segunda distinção diria respeito ao fato de os princípios terem uma característica própria: a dimensão do peso ou da importância, que implica uma necessária ponderação pelo intérprete, prevalecendo o princípio que, no caso concreto, apresente-se como mais importante. Essa dimensão do peso ou importância, segundo Dworkin, não está presente nas regras. Quando houver choque entre regras, uma delas será declarada inválida, sob os critérios estabelecidos em cada ordenamento jurídico.

51 DWORKIN, Ronald. Taking rights seriouly. 5. impr. London: Duckworth, 1987. p. 22, apud GRAU, Eros

Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 115- 117.

Já para Jean Boulanger52 as regras teriam caráter geral, mas somente poderiam ser aplicadas a determinados fatos ou atos; nesse sentido, seriam especiais, porque somente poderiam ser aplicadas caso os fatos ou atos por ela vislumbrados ocorressem. Já um princípio poderia ser aplicado a um sem-número de casos.

Outra importante contribuição para a distinção entre princípios e regras foi dada pelo alemão Robert Alexy53. Ele entende os princípios como mandamentos de otimização, podendo ser cumpridos em diferentes graus, a depender de condicionantes jurídicos e materiais, permitindo o balanceamento de valores e interesses. Já quanto às regras, concorda com Dworkin, somente podem ser ou não cumpridas. Após ponderar sobre os diversos critérios já então estabelecidos para a distinção entre regras e princípios, conclui que a diferença entre regras e princípios é precipuamente qualitativa, e nem tanto de grau.

Assim como Dworkin, Alexy aponta que as regras funcionam na dimensão da validade, enquanto os princípios na dimensão do peso. O autor alemão, contudo, trabalha com um conceito mais amplo de princípio do que o americano, pois enquanto para este “os princípios entendem unicamente com os direitos individuais [...], fazendo dos bens coletivos meras policies”, aquele “alarga o conceito e insere neste os referidos bens”.54

Resumindo as diversas contribuições doutrinárias voltadas à distinção entre princípios e regras, Luís Roberto Barroso55 entende que os critérios poderiam ser apenas três: a) quanto ao conteúdo, as regras se limitariam a estabelecer comportamentos, permitindo, proibindo ou facultando, enquanto os princípios se consubstanciariam em decisões políticas fundamentais, valores ou fins públicos a serem realizados; b) quanto à estrutura normativa, as regras seriam normas descritivas, enquanto que os princípios apontariam “para estados ideais a serem buscados”; e, c) finalmente, e aqui residiria a diferença mais marcante, quanto ao modo de aplicação, as regras se aplicariam na modalidade tudo ou nada, enquanto que os princípios na dimensão do peso.

Decorrência natural da descoberta da normatividade dos princípios foi a constatação da possibilidade de colisão entre eles, em casos concretos. Isso somente é possível pelo fato de as Constituições modernas abrigarem valores que, em princípio, são antagônicos. Um

52 BOULANGER, Jean, Principes géneraux du droit positif et droit positif: le droit privé français au milieu du

XXe siécle: études offertés a Georges Ripert. Paris: Librairie Générale de Droit e de Jurisprudence, 1950. p. 55-

56, apud GRAU, Eros Roberto, Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito, p. 158-159.

53 ALEXY, Robert. Theorie der Grundrecht. Frankfurt: Suhrkamp, 1986. p. 75-77, apud GRAU, Eros Roberto,

Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito, p. 161-162.

54 ALEXY, Robert. Theorie der Grundrecht. Baden-Baden, 1985. p. 93-94, apud BONAVIDES, Paulo, Curso de

direito constitucional, p. 281.

55 BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 205-

exemplo de antagonismos entre princípios se apresenta entre a busca do desenvolvimento e a proteção ao meio ambiente.

Os conflitos podem se dar entre princípios propriamente ditos, como no caso acima citado, entre direitos fundamentais – direito à honra versus direito à intimidade – ou ainda entre direitos fundamentais e outros valores constitucionais, como no caso de choque entre a liberdade de expressão e o incitamento ao racismo.

As técnicas normalmente utilizadas para o conflito entre normas não podem ser aqui utilizadas. Eventual conflito entre princípios serão resolvidos através da técnica da ponderação, ao final da qual um dos princípios se retrairá, dando lugar ao outro que se mostrou mais apropriado ao caso. Luís Roberto Barroso assim se refere à ponderação:

[...] a ponderação de normas, bens ou valores é a técnica a ser utilizada pelo intérprete, por via da qual ele fará concessões recíprocas, procurando preservar o máximo possível de cada um dos interesses em disputa, ou, no limite, procederá à escolha do bem ou direito que irá prevalecer em concreto, por realizar mais adequadamente a vontade constitucional.56

A técnica da ponderação consiste em inicialmente delimitar os princípios e as regras aplicáveis ao caso concreto, a partir da análise cuidadosa dos fatos, e, por fim, através da atribuição de pesos a cada um dos valores em jogo, decidir que grupo de valores deverá prevalecer no caso concreto. Referindo-se a essa última fase da técnica, afirma Eros Grau:

O momento da atribuição de peso maior a um determinado princípio é extremamente rico, porque nele – desde que se esteja a perseguir a definição de uma das soluções corretas a que a interpretação jurídica pode conduzir – pondera-se o direito inteiro, como totalidade. Variáveis múltiplas, de fato – as circunstâncias peculiares do problema considerado – e de ordem jurídica – linguísticas, sistêmicas e funcionais , são descortinadas.57

Superadas as discussões quanto à normatividade dos princípios, desvendaram-se as funções por eles desempenhadas nos ordenamentos jurídicos: a) a de ser fundamento da ordem jurídica, “pedra de toque ou o critério com que se aferem os conteúdos constitucionais em sua dimensão normativa mais elevada”; b) a função orientadora do trabalho interpretativo, a que tanto se refere Eros Grau; e, c) a de fonte, no caso de insuficiência da lei ou do costume, essa última função hodiernamente deveras enfraquecida, pois, como afirma Luís Roberto Barroso:

56 BARROSO, Luís Roberto, Curso de direito constitucional contemporâneo, p. 311.

Em sua trajetória ascendente, os princípios deixaram de ser fonte secundária e subsidiária de direito para serem alçados ao centro do sistema jurídico. De lá irradiam-se por todo o ordenamento, influenciando a interpretação e aplicação das normas jurídicas em geral e permitindo a leitura moral do direito.58