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4 O PRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURÍDICA

4.1 CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS

4.1.1 Princípios e regras: uma justificação preliminar

Tendo em vista que o presente trabalho dedica-se a analisar as interações existentes entre o princípio da segurança jurídica diante das alterações do Direito, decorrentes de modificações na interpretação dos seus textos legislativos, parece importante apontar, previamente, qual o conceito de princípio adotado, não obstante as grandes dificuldades presentes nessa tarefa. É que, provavelmente, essa seja uma das matérias que mais tenham sido debatidas no cenário jurídico nacional, havendo um sem-número de conceitos a seu respeito, sem que se possa falar em qualquer uniformidade, que, provavelmente, nunca será alcançada. Vale, por isso, relembrar a lição de Engisch, para quem esse problema, assim como todos os verdadeiros problemas fundamentais, nunca poderá ser resolvido definitivamente98.

Não sendo esse o tema do presente trabalho, cabe apenas indicar que se adota aqui a concepção de Humberto Ávila a respeito dos princípios jurídicos, exposta no seu livro: Teoria dos Princípios, para quem é possível traçar uma dissociação entre princípios e regras a partir de três critérios, quais sejam, (i) o critério da natureza do comportamento prescrito; (ii) o critério da natureza da justificação exigida e (iii) o critério da medida de contribuição para a decisão99.

Afirma o autor que “enquanto as regras são normas imediatamente

descritivas, na medida em que estabelecem obrigações, permissões e proibições mediante a descrição da conduta a ser adotada, os princípios são normas imediatamente finalísticas, já que estabelecem um estado de coisas para cuja realização é necessária a adoção de determinados comportamentos”100. Deve-se ter

em vista, no entanto, que a proposta formulada pelo autor apenas destaca uma característica primária das referidas espécies normativas, uma vez que, tanto as regras prescrevem uma determinada finalidade, para a qual o comportamento por       

98 ENGISCH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico. Tradução de João Baptista Machado. 10. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 2008. p. 182.

99 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 12. ed. São Paulo: Malheiros, 2011. p. 71-78. 

elas exigido é tido como hábil à sua consecução, quanto os princípios também justificam a adoção de determinados comportamentos, quais sejam, aqueles necessários e adequados à promoção do estado de coisas por eles impostos.

Todavia, essa dissociação é importante na medida em que, ao destacar que as regras são imediatamente descritivas, ao passo que os princípios são normas imediatamente finalísticas, permite verificar que cada uma delas exige uma distinta justificação para a sua aplicação. Com efeito, as regras exigem para a sua aplicação uma “avaliação da correspondência entre a construção conceitual dos fatos e a

construção conceitual da norma e da finalidade que lhe dá suporte”101, ao passo que “a interpretação e a aplicação dos princípios demandam uma avaliação da correlação entre o estado de coisas posto como fim e os efeitos decorrentes da conduta havida como necessária”102. É dizer, enquanto para a aplicação da regra o

intérprete deve argumentar quanto à correspondência entre a hipótese da norma e dos fatos do caso e da finalidade subjacente à norma, nos princípios deve ele justificar que determinada conduta contribui para a promoção do estado de coisas por eles imposto.

Diante do fato de as regras estabelecerem comportamentos que devem ser adotados, fixando, em síntese, o que é proibido, permitido ou obrigatório, tem-se que a sua aplicação não demanda, na maior parte dos casos, a consideração de outras razões para a sua aplicação, tendo elas, por assim dizer, uma pretensão de decidibilidade e abrangência. Os princípios, ao contrário, por apenas estabelecerem fins a serem alcançados “consistem em normas primariamente complementares e

preliminarmente parciais, na medida em que, sobre abrangerem apenas parte dos aspectos relevantes para uma tomada de decisão, não têm a pretensão de gerar uma solução específica, mas de contribuir, ao lado de outras razões, para a tomada de decisão”103.

Apresentados os critérios que justificam a dissociação entre princípios e regras pelo autor, pode-se apresentar a conceituação por ele feita a respeito dessas duas espécies normativas. Afirma Ávila que:

      

101 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 12. ed. São Paulo: Malheiros, 2011. p. 73.

102 Ibidem. 103 Ibidem, p. 76.  

As regras são normas imediatamente descritivas, primariamente retrospectivas e com pretensão de decidibilidade e abrangência, para cuja aplicação se exige a avaliação da correspondência, sempre centrada na finalidade que lhes dá suporte ou nos princípios que lhes são axiologicamente sobrejacentes, entre a construção conceitual da descrição normativa e a construção conceitual dos fatos.

Os princípios são normas imediatamente finalísticas, primariamente prospectivas e com pretensão de complementaridade e de parcialidade, para cuja aplicação se demanda uma avaliação da correlação entre o estado de coisas a ser promovido e os efeitos decorrentes da conduta havida como necessária à sua promoção104.

A grande vantagem dessa conceituação é que, ao se considerar os princípios como normas que demandam a consecução de determinadas finalidades, impõe-se ao intérprete que em sua justificação argumente de modo a demonstrar quais os comportamentos exigidos para a promoção do estado de coisas imposto pela norma. De outro lado, afasta-se a consideração de que apenas os princípios incorporariam valores ao ordenamento jurídico, na medida em que as regras, ainda que mediatamente, também positivam valores, sendo que, no entanto, ao invés de deixar para o intérprete a especificação dos comportamentos tidos como valiosos, o próprio legislador já se encarregou de assim proceder.