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Princesas-príncipes e outros disfarces de gênero nos mangás

1 CULTURA POP JAPONESA: UM FENÔMENO DE PROPORÇÕES

2.3 Princesas-príncipes e outros disfarces de gênero nos mangás

Não diferente da literatura ocidental, os mangás por muitas vezes abordaram o tema do crossdress. Em sua maioria, o crossdress nos mangás aparece sob a forma do travestismo masculino, e é comumente associado à comédia ou fetichismo. Existem também casos onde o crossdress é utilizado como recurso sexual, e em alguns mangás adultos o artifício da troca de corpos entre personagens femininas e masculinas é explorado como elemento narrativo e temático para fantasiar sobre relações sexuais. Em conformidade com o que foi observado na literatura ocidental, nos mangás o crossdress feminino também é explorado de uma maneira mais séria, tangenciando questões acerca do espaço da mulher na sociedade e as atitudes adequadas para cada sexo.

Segundo Da Silva (2011), a primeira referência literária japonesa relacionada com inversão de papéis de gênero e crossdress encontra-se na obra Torikaeabaya, escrita no século XII. Nesse texto, é contada a história de dois irmãos ─ uma mulher e um homem ─ que, devido a uma maldição lançada sobre seu pai, manifestam um comportamento de acordo com o que é tradicionalmente esperado para o sexo oposto. Ao final do conto, quando a maldição é desfeita, eles assumem o comportamento que seria o “natural” para seu sexo, sem nenhum trauma. Esse texto serviu como inspiração para dois mangás shojo e foi convertido em peça do teatro feminino Takarazuka.

Conforme visto no capítulo I, em 1953, a primeira heroína de uma mangá shojo, a Princesa Safire de A Princesa e o Cavaleiro, travestia-se e comportava-se como rapaz por questões políticas. Seus passos foram seguidos por Lady Oscar, de A Rosa de

Versalhes (1972), garota criada como garoto durante o período que compreende as

tensões pré Revolução Francesa. Mais adiante, em 1999, surge Akito de Fruits

Basket102, garota que, para assumir as responsabilidades como patriarca de sua família, esconde seu sexo biológico e apresenta-se como um rapaz. Outro caso é o de Haruhi da série Colégio Ouran Host Club103 (2002), a garota que se passa por rapaz para poder trabalhar no host club de seu colégio e assim pagar uma dívida.

102Furu-tsubasu Ketto, no original, mangá de autoria de Natsuki Takaya publicado no Japão entre 1999 e 2006 pela editora Hakusensha. No Brasil, foi publicado pela Editora JBC.

103

Ōran Kōkō Hosuto Kurabu no original, mangá de autoria de Bisco Hatori, publicado no Japão entre 2002 e 2010 pela editora Hakusensha. No Brasil, foi publicado pela editora Panini Comics.

As inspirações para o nascimento e inclusão das personagens crossdresses nos mangás são múltiplas, conforme afirmou Ryoko Ikeda (2011) em entrevista explicando as bases para a criação de Oscar:

Existem dois pontos de vista: um europeu, um japonês. Nós, quando falamos de Joana d'Arc, a vemos como uma travesti. Ela é uma mulher que se veste de homem para poder lutar. Mas na Europa, foi queimada. Certamente em parte por causa de seus trajes. Isto é devido à moral e ao cristianismo. No Japão, as trupes de teatro formadas exclusivamente por homens podem interpretar uma variedade de papéis, femininos ou masculinos; o mesmo ocorre com as artistas mulheres. Havia lá mais liberdade. Pensei também em Cristina, Rainha da Suécia. Quando seu pai morreu, e leram seu testamento, viram que ele desejava que sua filha fosse educada como um menino104 (p. 4).

Por meio desse tipo e personagem, mangakás discutem e inserem temas relacionados a problemas de gênero. O foco principal dessas questões gira em torno da universalização e naturalização de comportamentos ditos apropriadamente femininos ou masculinos e na maneira como essas personagens femininas adentram universos masculinos, sem, no entanto, quebrar regras heteronormativas.

O mangá shojo possui suas bases sacramentadas sobre o romance e o amor heterossexual. Por essa razão, a sexualidade das personagens crossdressers é um tema abordado de forma cuidadosa. Comumente, tais personagens são consideradas atraentes por outras personagens femininas de seus respectivos mangás, porém seus corações pertencem a personagens masculinos. Apesar de suas vestes e comportamentos, em geral, as personagens crossdressers possuem orientação heterossexual, o que constitui mais um ponto de conflito em suas histórias: de que forma elas poderão viver um romance pleno se devem ou precisam esconder seu lado feminino?

Aliado aos enredos melodramáticos ─ culturalmente femininos ─ a busca pelo par perfeito, pelo príncipe, arrasta essas personagens potencialmente subversivas para situações e desfechos tradicionais. No caso dos quatro exemplos previamente citados, Safire separa o lado masculino de sua alma para viver ao lado de seu príncipe, Akito assume sua faceta feminina e deixa as roupas de homem de lado para poder viver seu

104 Tradução livre: Il y a deux perceptions: une européenne, une japonaise. Nous, quand nous parlons de

Jeanne d’Arc, nous la voyons travestie. C’est une femme qui s’habille en homme pour pouvoir se battre. Mais en Europe, elle a été brûlée. Sans doute en partie à cause de son accoutrement. C’est dû à la morale et au christianisme. Au Japon, troupes de théâtre masculines peuvent interpréter toute une palette de rôle, féminin ou masculin, de même du côté des troupes féminines. Il y a plus de liberté. J’ai aussi pensé à Cristina, la reine de Suède. Quand son père meurt, on lit dans son testament qu’il faut élever sa fille comme un garçon…

amor até então impossível e Haruhi, ao pagar sua dívida, surge com um vestido e se vê livre para viver seu romance. Já Oscar, que até o final foi fiel aos seus ideais, acaba morrendo em batalha. A tradição é contemplada com final feliz, enquanto a subversão encontra um desfecho trágico.

III- Construção das bases teóricas

O presente estudo é apresentado sob uma ótica transdisciplinar, em que elementos da linguística verbal e visual, da performance, do teatro e de gênero se mesclam. Nesse capítulo é desenvolvido um estudo acerca destes espaços teóricos que embasam a análise das performances 1 e 2.