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3. PRISÕES

3.1 Prisão, controle e dominação corporal: a matéria sobrante

Com o surgimento do Estado Moderno emerge a necessidade de instituição de práticas punitivas que não tivessem mais como objetivo atingir diretamente o corpo, mas, em vez disso, se conformassem como mecanismos de disciplina. Dessa maneira, as práticas de suplício até então usuais na Idade Média se tornaram obsoletas na modernidade emergente, e o que até então supliciava diretamente o corpo físico se tornou instrumento de docilização e disciplinamento (WOLFF; FERREIRA, 2011). Todavia, as novas formas de punição, mesmo que indiretamente, também atingiam o corpo por meio de arsenais construídos simbolicamente e de modo discreto:

Não tocar mais no corpo, ou o mínimo possível, e para atingir nele algo que não é o corpo propriamente. [...] Sem dúvida, a pena não mais se centralizava no suplício como técnica de sofrimento; tomou como objeto a perda de um bem ou de um direito. Porém castigos como trabalhos forçados ou prisão – privação pura e simples de liberdade – nunca funcionaram sem certos complementos punitivos referentes ao corpo: redução alimentar, privação sexual, expiação física, masmorra. [...] a prisão, nos seus dispositivos mais explícitos, sempre aplicou certas medidas de sofrimento físico. (FOUCAULT, 1999, p. 15-19).

Foucault (1999) afirma que, durante o século XVIII, tais estratégias de punição – que são também instrumentos de expressão do poder – viram como objetivo primeiro tornarem-se um esquema regular, ou seja, deveriam fazer parte do cotidiano do sistema judiciário, coexistindo dentro e fora dele. A intenção, já que o suplício corporal começava a ser encarado como ato bárbaro e selvagem, não era punir menos, mas punir melhor, com menos severidade e maior universalidade (FOUCAULT, 1999). Jardim (2010) menciona nesse contexto que havia uma relação de proporcionalidade entre o crime praticado e o seu castigo, onde se estabeleciam os suplícios como “uma arte quantitativa do sofrimento, correlacionando os tipos de ferimentos físicos, sua qualidade e intensidade de acordo com a gravidade dos crimes cometidos, também variando conforme a pessoa do criminoso e o nível social de sua vítima” (JARDIM, 2010, p. 13). Na mesma época, com o processo de industrialização emergente, a punição passa a se apresentar quase como uma necessidade que, através do cárcere, se fará presente como espectro disciplinar e de controle.

[...] a prisão pode ser vista como uma estrutura preocupada justamente em dar conta das sobras do processo de controle da violência, monopolizando a violência e a lei. Naquele momento, o controle social estava direcionado àquelas pessoas que apresentavam dificuldades de se inserirem no processo produtivo emergente e não se enquadravam nem como trabalhadores, nem como carentes, e precisavam ser, por isso, disciplinadas. A essa sobra da sobra, a prisão passou a ser alternativa. (WOLFF; FERREIRA, 2011, p. 48).

Quanto ao caráter disciplinador e perverso das prisões, ele é acentuado no caso brasileiro em razão de um contexto de desigualdade social. Desde a colonização portuguesa advém práticas penais cujas concepções medievais levavam ao suplício corporal (JARDIM, 2010). Zaffaroni (1999) defende que os sistemas jurídico-penais passam, nas últimas décadas, por uma crise de racionalidade já que seus mecanismos normativos baseiam-se em uma realidade não existente, sobretudo no contexto latino-americano. Significa que os sistemas penais da América Latina como um todo semeiam a dor e a morte por meio do exercício do poder. Não conseguem, portanto, atingir suas finalidades, pois seus discursos planificados não correspondem à realidade concreta e acabam operando com níveis de violência tão ou mais altos do que a própria violência que pretendem combater. Daí decorre a afirmação do autor de que o discurso jurídico-penal histórico e contemporâneo é racionalmente falso na medida em que defende estratégias de punição balizadas na violência como forma de proteger aqueles que se enquadram na lei, da violência do todo social. Em outras palavras, o discurso jurídico-penal contemporâneo só é mantido porque é o único instrumento – mesmo que precário – para defender os direitos humanos de determinados segmentos sociais (ZAFFARONI, 1999).

O discurso falso do direito penal – de que as penas resolveriam ou seriam uma resposta efetiva para a violência, no caso latino-americano, é produto especialmente do subdesenvolvimento dos países latinos que têm como experiência econômica o capitalismo periférico – voltar para o que diz a Teoria Marxista da Dependência (TMD40) ajuda a

compreender melhor a relação de dominação que os países centrais exercem sobre a “periferia do mundo”, em termos de economia global e a subordinação, em relação a essas mesmas estruturas econômicas, que sofre os países recentemente industrializados como Brasil. Assim, também o discurso da transitoriedade dos sistemas penais cai por terra, já que a ideia de um desenvolvimento progressivo não se aplica quando se percebe a conjuntura de dependência econômica que atinge os países que compõem a América Latina.

Hoje, temos consciência de que a realidade operacional de nossos sistemas penais jamais poderá adequar-se à planificação do discurso jurídico-penal, e de que todos os sistemas penais apresentam características estruturais próprias de seu exercício de poder que cancelam o discurso jurídico-penal e que, por constituírem marcas de sua

40 Na teoria da dependência o subdesenvolvimento se sustenta basicamente nas relações históricas entre centro e

periferia. Sendo que o crescimento dos países centrais alicerçado na exploração dos países periféricos implica no desenvolvimento capitalista, do qual o subdesenvolvimento é parte e expressão – porque mantêm uma relação de subordinação e opressão. Por isso, não se trata de um processo evolutivo com uma sequência de ações, mas de uma relação complementar e contraditória. A dependência da América Latina, especificamente, reside na desigualdade de participação ativa nos mercados, dominados pelos países centrais. Florestan Fernandes (1976, p. 222) corrobora com essa ideia ao dizer que o desenvolvimento capitalista no caso do Brasil “apresenta os traços típicos que ele teria de assumir nas Nações tidas como periféricas e heteronômicas, fossem ou não de origem colonial”.

essência, não podem ser eliminadas, sem a supressão dos próprios sistemas penais. A seletividade, a reprodução da violência, a criação de condições para maiores condutas lesivas, a corrupção institucionalizada, a concentração de poder, a verticalização social e a destruição das relações horizontais ou comunitárias não são características conjunturais, mas estruturais do exercício de poder de todos os sistemas penais. (ZAFFARONI, 1999, p. 15, grifos do autor).

O contexto das prisões brasileiras na atualidade, portanto, evidencia um dos quadros mais completos de direitos violados: “superpopulação carcerária, ausência de individualização da pena, dificuldades de acesso à defesa e a outros direitos estabelecidos na Lei de Execuções Penais são situações corriqueiras nas prisões no Brasil” (WOLFF et al., 2007, p. 15). Representam, assim, uma contradição diante do seu propósito legal, pois não só respondem com violência aos crimes cometidos como descumprem a lei ao negligenciarem direitos humanos, usufruindo, mesmo que hipocritamente, do paradoxo de tentar “remediar com um ‘mais Estado’ policial e penitenciário o ‘menos Estado’ econômico e social que é a própria

causa da escalada generalizada da insegurança objetiva e subjetiva em todos os países”

(WACQUANT, 2001a, p. 7). A frase “A prisão é o pior lugar do mundo” (CT01) recebe materialidade diante desse quadro de violação de direitos que representam as prisões no Brasil.

[...] a penalidade neoliberal é ainda mais sedutora e mais funesta quando aplicada em países ao mesmo tempo atingidos por fortes desigualdades de condições e de oportunidades de vida e desprovidos de tradição democrática e de instituições capazes de amortecer os choques causados pela mutação do trabalho e do indivíduo no limiar do novo século. (WACQUANT, 2001a, p. 7).

O uso da violência também se justifica enquanto garantia de que a segurança se mantenha, e de que se mantenha, também, uma divisão entre aqueles que não foram capazes de disciplinar – o “lixo” humano, porque é tratado como o lixo que é retirado das casas sem a preocupação exata do que será feito com ele – e aqueles que estão em harmonia com a sociedade, que representam a boa índole. Aos primeiros é reservado o cárcere, um “depósito industrial dos dejetos sociais” (WACQUANT, 2001a, p. 11), “um mundo à parte [no qual] a segurança e disciplina demarcam justificativas racionais para práticas que expressam apenas autoridade e descumprimento de direitos” (WOLFF, 2005, p. 114).

Além do descumprimento geral dos direitos humanos, a prisão também serve como instrumento de eliminação dos sujeitos considerados socialmente indesejáveis. Àqueles que não foram capazes de ser educados de acordo com as regras gerais, resta o espaço da prisão, que nas palavras de Foucault (1999, p. 139), é um instrumento de “[...] eliminação física das pessoas que saem dela, que morrem nela, às vezes diretamente, e quase sempre indiretamente [...]”.