• Nenhum resultado encontrado

1. O DEBATE SOBRE A CATEGORIA SOCIEDADE CIVIL E ESTADO

1.5 Privados, porém públicos?

A ideia que decorre do debate sobre o público e o privado remete a uma construção histórico-ideológica, que está atrelada ao debate teórico que perpassa as categorias: Estado, sociedade civil e mercado. Emerge na reprodução das relações capitalistas e da classe burguesa, no momento em que a consolidação dessa classe passa a exigir um espaço seu, individual, em que o Estado ou o poder coercitivo não pudesse intervir. Não é possível entender essa relação entre o privado e o público sem entender a própria história do capitalismo e os seus anseios.

Até a consolidação do capitalismo e de sua classe dominante, não era possível falar de um espaço privado. Sua conquista foi um passo para a conquista da “liberdade”, do direito à propriedade, elementos desejados pela classe burguesa. O Estado era absoluto, detinha todo o poder e o controle dos bens de produção, que estavam atrelados as suas ordens e aos seus

benefícios. Não podemos deixar de destacar a presença da religião na concentração desses meios, principalmente da Igreja Apostólica Católica Romana, que, em sua relação, às vezes, inconfundida, com o Estado absoluto, detinha o poder de possuir os seus bens de produção.

Com as conquistas e a superação do poder absolutista pela burguesia, o privado e o público tornam-se espaços autônomos. Para a ordem burguesa, a consolidação do direito ao espaço privado, individual, em que o poder monárquico não podia interferir, foi essencial para a consolidação de seu projeto de classe. O debate sobre a ideia de público/privado acompanha as fases do próprio capital e da sua consolidação. O público sempre esteve atrelado a sua relação com a estrutura estatal, e o privado, à propriedade privada, individual, cabendo ao Estado apenas garantir, sem interferência, somente protegendo esse direito.

O que se observa, na fase monopolista do capitalismo (a partir de 1890), é que o Estado passou a dar um caráter público às refrações da “questão social”, no momento em que assume uma nova postura funcional e estrutural, que, segundo Paulo Netto, ultrapassa as fronteiras das condições externas da produção capitalista e de garantidor da propriedade privada.

Na idade no monopólio [...] a intervenção estatal incide na organização e na dinâmica econômica desde dentro, e de forma contínua e sistemática. Mais exatamente, no capitalismo monopolista, as funções políticas do Estado imbricam-se organicamente com as suas funções econômicas. (2009a, p. 25, grifos do autor)

Nessa nova fase, as ações do Estado passam a incidir, direta e indiretamente, no desenvolvimento do modo de produção vigente. Entre suas ações, estão as que passam a atender aos “problemas sociais” que se ampliaram na fase monopolista do capital. Logo, passa a administrar os efeitos da manifestação da “questão social”, de forma sistemática e estratégica, indo de encontro aos princípios clássicos do liberalismo, da não interferência e deixa as pessoas “livres” para alcançarem o seu desenvolvimento.

Mesmo contrariando aos ideais liberais, o Estado amplia suas ações diretas na economia, de forma que foi ampliando suas ações estratégicas de enfrentamento aos efeitos de empobrecimento e da miséria da sociedade burguesa. Segundo Paulo Netto, “[...] a funcionalidade essencial da política social do Estado burguês no capitalismo monopolista se expressa nos processos referentes à preservação e ao controle da força de trabalho [...]” (2009a, p.31). Seu lugar na execução das políticas sociais públicas torna-se mais presente e ampliado em sua fase welfariana, já que o Estado é colocado com o “salvador” de mais uma crise do capital.

O interessante é que as políticas sociais estiveram atreladas ao público até as décadas finais do Século XX e que passam a ser questionadas na fase neoliberal do capital. Nesse momento, o Estado é criticado pela dimensão do seu poder e de atuação, e o projeto neoliberal passa a intervir para minimizar suas ações e o que impedir o desenvolvimento do capital, ou mesmo antenado naquilo em que podiam atuar de forma “melhor” ou com mais eficiência que o Estado. O discurso privatista do público se torna um elemento essencial nessa nova fase, o público passa a ser um elemento de desejo para a obtenção do lucro, e os meios estratégicos de desenvolvimento e de produção que estavam no controle estatal passam a ser entregues aos monopólios internacionais. Nessa direção, também seguem as políticas sociais, que passam a ser concorridas e executadas por “organizações privadas de interesse público29”.

O debate defendido pelos seguidores do liberalismo e sua diversidade de entendimento (neoliberais, terceira via, etc.) é a superação do público como estatal, perpassado por interesses ideológicos, que querem privatizar o que resta de público: as políticas sociais, os direitos sociais e os espaços públicos. Por outro lado, o privado torna-se um elemento intocável tanto no abstrato quanto no concreto.

Na discussão contemporânea, observa-se a necessidade de superar a dicotomia entre público e privado, mas, ao fim de tudo, acabam reforçando essa ideia dicotômica e estrutural da sociedade moderna. Não podemos esquecer que foi a partir dessa divisão que se fortaleceu a necessidade de garantir os bens individuais, a propriedade e o privado, em detrimento do público. O que se amplia na contemporaneidade é apenas a ideia de que o privado também pode ser público. Portanto, a visão dicotômica continua com um novo elemento, o privado, porém público, como podemos observar na “alternativa lógica” proposta abaixo, que contribui para ampliar as combinações entre o “público” e o “privado”. Vejamos:

Tabela 1 COMBINAÇÃO ENTRE PRIVADO E PÚBLICO

AGENTES para FINS = SETOR

Privados para Privados = Mercado

Públicos para Públicos = Estado

Privados para Públicos = Terceiro Setor Públicos para Privados = Corrupção

(FERNANDES, 1994, p.21)

Como podemos observar, essa nova combinação de agentes privados, cujas ações são voltadas para fins públicos, resultará, segundo esse autor, na expansão da “esfera pública”, já que ela também pode ser um espaço de atuação do cidadão-individual, voluntário, e não, apenas, do governo. Nessa reflexão, não se fala em mexer no privado, no fundamento da sociedade burguesa, mas na ideia de que o público pode ser gerido pelo privado.

Nas sociedades primitivas e no patrimonialismo, o espaço público e o privado eram confundidos; no capitalismo liberal o espaço privado se separa do público e ganha autonomia; no capitalismo burocrático, o espaço público volta a crescer, mas de forma estatal; no capitalismo do dessas vinte-e-um o espaço público voltará a crescer, mas agora no plano não-estatal do controle social. (PEREIRA, 1997, p.39)

Na verdade, essa reflexão está atrelada ao movimento neoliberal e privatista do público, já que ocorre uma corrida típica do capital em querer tornar aquilo que é público em espaço privado ou manter a ideia de público, mas administrado pelo privado. Como exemplo, temos a atuação do “terceiro setor”, que vincula a sua ação privada ao espaço que é público: as “ONGs” vêm disputando o seu espaço nas políticas sociais, ao afirmar que essas políticas, apesar de serem públicas, podem ser geridas pelo privado30 e financiadas pelo Estado.

A relação público/privado em favor do privado está arraigada na tradição política do Brasil. Ela foi essencial para consolidar o projeto atrasado de desenvolvimento que ainda temos. As relações patrimonialistas, escravocratas, ainda prevalecem na política, nas relações de troca e de apadrinhamento tão enraizadas na nossa cultura. Se, por um lado, a luta em favor do público, de sua ampliação - a partir dos movimentos sociais e das organizações sindicais e associativas no país - sempre foi vista como atos “comunistas”, como algo que ameaça a elite, que afeta as relações privadas: a luta pela terra, pela moradia, pelo direito a saúde, a formação universitária. Por outro, a classe dominante adota um discurso de repensar o “público” e ampliar sua noção para além do Estado, mas com interesses privados. Para Pereira e Grau, “colocar-se em termos de público não estatal vai nessa direção, insinuando que a sociedade „civil‟ não é equivalente ao público, assim como o Estado não o esgota [...]” sendo necessário, “[...] repensar a própria noção do público e distingui-lo tanto do Estatal como do corporativismo” (1999, p. 20 - 21).

Ao analisar a ampliação do público no Brasil, principalmente no pós-Constituição de 1988, podemos perceber que, até os dias de hoje, vivemos em constantes fases de resistência

30

Para Fernandes (1994), o segmento das “ONGs” resume a ideia de “privado com funções públicas”, e seus fins têm a característica do serviço público.

da classe trabalhadora e dos movimentos sociais, na defesa e na ampliação do público, no sentido de socializar a “coisa” pública, ao mesmo tempo em que vivemos sobre constantes ameaças pela a elite dominante, na luta pela contrarreforma e pela desconstrução das conquistas e dos direitos sociais, de privatizar esses direitos.

Observamos, então, que, na política dos últimos governos, inclusive do governo do Partido dos Trabalhadores, em que o privado é posto nas relações políticas em detrimento do público, os bens coletivos e as conquistas do povo brasileiro são colocados nas mãos dos grandes empresários: a educação, a saúde, as grandes construções de infraestrutura voltadas para a produção e os bens públicos, como bancos, aeroportos, portos e, principalmente, as políticas sociais que vêm sendo disputadas pelas organizações privadas para a sua execução.

Nessa direção, podemos concluir que a luta, hoje, não é simplesmente para superar teoricamente a dicotomia entre público e privado, mas buscar construir uma relação sócio- histórica para além do modo de produção capitalista, de forma processual, pois, na sociabilidade do capital, o privado sempre prevalecerá sobre o público. O importante é garantirmos uma relação para além do privado e que possamos consolidar uma direção política que agregue a vontade coletiva e mexa com as estruturas privadas de produção.

CAPÍTULO II

2. O FENÔMENO DAS “ONGs” NO BRASIL: CONSTRUÇÃO