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A problemática da fome no pós-guerra

A remessa de genêros de primeira necessidade e vestuário para a Alemanha era o principal objetivo da SEF e dos organismos de ajuda humanitária do pós-guerra. Um dos aspectos emblemáticos da destruição da Alemanha foram as condições materiais, médicas e sanitárias nas quais as pessoas viviam. A população carente de vestimentas, calçados, cobertores, carvão, água potável e uma alimentação balanceada estava à mercê do enfraquecimento, das doenças e da desnutrição.65 Neste sentido temos o testemunho bastante significativo de H. M. Czerwinski, proveniente de Berlim e escrito ao P. Stöer em 11/12/1947:

Reverendíssima Excelência!

Esta carta escreve um jovem alemão que sofre de tuberculose nos dois pulmões e que, há vários meses, encontra-se acamado e cujo médico lhe disse que, se não obtiver alimentos suplementares suficientes, não viverá mais durante muito tempo. Este lhe solicita enviar um pacote de alimentos. Uma cópia do atestado médico enviado pelo Departamento de Saúde, que mostram minhas condições de saúde, se encontra junto da carta. Como minhas necessidades de vida são extremamente modestas, estou disposto a doar a minha comunidade pelo pacote de alimentos 100 marcos para os pobres e fugitivos oriundos do leste. Várias cópias de que também auxílio financeiramente minha igreja sem aguardar um pacote, enquanto meu rendimento permite, encontram-se junto. Evidentemente quero pagar os alimentos que o Sr. me enviar tão logo o governo militar na Alemanha autorize o fluxo de pagamentos internacionais.66

Czerwinski pode considerar-se um privilegiado por ter sobrevivido à primeira fase do tratamento, pois a falta de medicamentos nos hospitais era uma constante. Os doentes de tuberculose não tinham, geralmente, prognósticos tão positivos. Czerwinski necessitava somente de alimentos para sua recuperação. Segundo um relatório médico alemão publicado na Folha Dominical de 01/02/1948:

Nações Unidas aconselha medidas destinadas a atender as populações que se acham ameaçadas pela fome.

In: Correio do Povo. Porto Alegre, Sexta-Feira, 15/02/46, p. 01 65

Segundo notícia publicada no Correio do Povo de 26/04/46, a guerra fez com que houvesse uma quebra na safra agrícola de 40% e provocou irregularidades na distribuição dos produtos alimentícios, destruiu meios de transporte e estradas. A produção de arroz, açúcar, gordura, carne e pescado seriam, de acordo com a notícia, menores no ano de 1946. Além disso, como causas do aumento da fome, o jornal aponta a seca na África do Norte e o aumento populacional. ANDERSON, Clinto P. A humanidade ameaçada pela fome. In: Correio do

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Triste e comovedor é ter de assistir agora à morte de tuberculosos. Um paciente pediu-me que o deixasse ir para casa; ele sabia que devia morrer e no hospital nada se podia fazer por ele. Não recebia medicamentos para acalmar a tosse e as dores da laringe não podiam achar lenitivo (ao lado da tuberculose pulmonar tinha ele uma adiantada tuberculose de laringe). Como não podíamos ajudar, preferia morrer em casa.

Podemos afirmar sem exagero que os nossos doentes de tuberculose em grau adiantado, por assim dizer, morrem de tanto tossir. Em caso de um derramamento de sangue não nos achamos em condições de poder tranqüilizar os vasos respiratórios de um tuberculoso. Não possuímos Codeína, nem Dicodid, Acedicon, Heroin, etc.. Quando se vê morrer um doente, que, com um desenvolvido abscesso no pulmão sofre de violentos ataques de tosse e que não podemos proporcionar, nem sequer passageiramente, o mais insignificante bálsamo através de um medicamento eficiente, surge o sincero desejo de escolher uma outra profissão, pois este quadro ultrapassa o limite de nossas forças.

Cerwinski expõe, em seu drama, a falta de condições materiais do poder público em auxiliar os indivíduos a se recuperar das enfermidades às quais estavam sujeitas. Além disso, a falta de alimentos influenciava na recuperação dos pacientes. A fome, uma constante no pós-guerra, mobilizou não só os organismos internacionais que procuravam ajudar, mas também as repartições de saúde pública em suas políticas.67 Estas tiveram de desenvolver projetos de combate à fome baseadas em estudos de nutrição que propunham medidas concretas a serem adotadas pelos governos de ocupação.68

As dificuldades de alimentar as populações das zonas de ocupação fez com que o Gen. Joseph Mcnarney, comandante da força de ocupação norte-americana, propusesse ao Conselho Aliado de Controle, que os EUA e a URSS adquirissem alimentos em conjunto. Outra medida de impacto foi a decretação, pela Inglaterra, da baixa de consumo de calorias por indivíduo a partir de 04/03/46 em sua zona de ocupação. Esta era de 1.500 calorias diárias e foi diminuída para 1.014 calorias.69 Estas medidas fizeram com que a população ficasse muito mais sensível às intempéries e as conseqüências da guerra.

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Acervo Hermann Stöer. Carta de H.M. Cerwinsk, Berlim, 11/12/1947 67

Segundo notícia do Correio do Povo, a Organização Agrícola e Alimentar da ONU estudava a formação de um "Banco Alimentar" para comprar víveres para a distribuição em caso de carência. Como salvar o mundo da

fome. In: Correio do Povo. Porto Alegre, Domingo, 08/09/1946, p. 01

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Segundo os estudos do Professor Rein, fisiolólogo de Goettingen, era necessário um aumento nas cotas de albumina e gordura na alimentação da população. Esta somente seria adquirida se as autoridades proibissem o abate de gado leiteiro e dos galináceos, porque com isso esgotar-se-ia a última fonte de albumina de grande valor. Além disso, Rein reprovava a transformação das pastagens em campos agrícolas, recomendava a exploração da pesca marítima, defendia a cultura da aveia e solicitava uma moratória de créditos para a importação de gêneros de primeira necessidade. Folha Dominical. Sonntagsblatt der Riograndense

Synode. São Leopoldo: Rotermund, Ano 62, Nº 07, 15/02/1948, p. 01-02

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Foto Acervo Benno Mentz: Ração diária dos alemães no pós-guerra.

O testemunho de Cerwinski mostra que nem todas as pessoas foram atingidas pela guerra da mesma forma. Havia pessoas com recursos financeiros disponíveis para utilizar em casos de emergência. Entretanto, a falta de produtos para consumir no mercado mantinha estes capitais disponíveis imobilizados. As dificuldades de fluxo monetário no pós-guerra eram fruto do desmantelamento do sistema burocrático da Alemanha, assim como das restrições impostas pelos governos de ocupação à fuga de capitais que pudessem ajudar na recuperação do país.70

Estas dificuldades prejudicaram as possibilidades de ajuda financeira que as instituições de socorro à Europa procuravam dar aos alemães. As transferências de capital eram inconstantes e dependiam da boa vontade dos governos de onde estes recursos provinham.71 A evasão de reservas monetárias do Brasil para países europeus também significaria a redução das reservas internas disponíveis para o investimento no setor produtivo do país que ainda sofria influências do processo de industrialização do Estado Novo. A SEF enfrentou muitos problemas com a remessa de divisas para pagar o frete das mercadorias à empresa de navegação sueca que fazia o transporte. A liberação das remessas junto ao Banco do Brasil teve de contar com a intervenção das autoridades governamentais para que pudese ocorrer.

A atuação dos organismos internacionais foi de fundamental importância para resolver o problema da falta de medicamentos existente no país. A SEF realizou uma campanha, na qual solicitava aos médicos e famacêuticos que doassem medicamentos de uso cotidiano assim

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A rendição incondicional da Alemanha fez com que o Estado Alemão deixasse de existir. Tendo desaparecido o Estado, a capitulação deixa um vazio total: já não há Estado, nem governo, nem exército, nem autoridade. REMOND, R., Op. Cit., p.131

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como: laxantes, folhas de chá de sene, água , óleo de rícino, óleo de parafina, emetina em ampolas de 0,03 gramas, óleo de fígado de bacalhau, pepsina, glicose em ampolas, óleo de oliva, insulina, preparados de hormônios masculino e feminino.72 Estas doações eram remetidas para hospitais, campos de refugiados, lares de crianças, aos funcionários de saúde pública, médicos e pessoas privadas.73

As cartas aqui utilizadas são uma amostra do grande acervo de testemunhos que se encontram no Brasil a respeito da Segunda Guerra Mundial e, em especial, da situação do pós-guerra na Alemanha. Temos conhecimento de que o Acervo Benno Mentz, onde se encontra a maior parte da documentação de cunho burocrático relativa à SEF, possuí em torno de 5.000 cartas manuscritas em alemão gótico. Tais documentos são uma rica fonte de informações ainda inexploradas, que permitem que os historiadores brasileiros se debrussem sobre diversas temáticas relativas ao cotidiano da Segunda Guerra Mundial.

A análise destas cartas do acervo particular do P. Hermann Stöer, que guardam esta memória espontânea, permite perceber que a memória escrita, apesar de se constituir numa construção discursiva, pode, com recursos teórico-metodológicos adequados, proporcionar uma análise comparativa minuciosa e meticulosa que contribui para enriquecer nosso fazer histórico. As cartas fornecem informações inéditas que foram, pelos mais diversos motivos, desconsideradas por outras práticas historiográficas.

Voltar-se ao passado da memória social e histórica dos conflitos armados que ocorreram exige uma crítica as nossas próprias construções discursivas a seu respeito. Se estivermos dispostos a fazê-la, qualificaremos nossos instrumentos de análise crítica e enriqueceremos nosso olhar em relação ao presente. Um olhar que está mais qualificado a desvendar as armadilhas da memória oficial, está mais apto a propor novas alternativas de verdade histórica que contribuam com soluções palpáveis para os conflitos armados que ainda despontam em pleno séc. XXI.

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Acervo Benno Mentz .Carta de Balduíno Rambo para Antônio Köhler de Santa Cruz , 29/09/1946. 72

Acervo Benno Mentz. Folheto avulso. 73

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