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O problema da aplicação da lei moral

Capítulo II – A parte doutrinal da filosofia prática de Kant

II.I. O problema da aplicação da lei moral

Nesta seção tratarei do problema da aplicação da lei moral. Aplicar a lei moral nada mais é do que fazer com que a máxima (interna) da ação submeta-se efetivamente à legislação da razão pura prática, ou que a ação (externa) esteja em conformidade com a letra da lei. Esta é uma tarefa completamente diferente da de provar que a lei moral é real (que efetivamente coage). É diferente porque, a prova da realidade da lei, garante tão-somente que a fórmula dessa lei tem autoridade para impor objetivamente uma obrigação à vontade, mas não garante que a vontade (arbítrio) seja, de fato, subjetivamente determinada pela lei. Quer dizer, o sentimento moral de respeito prova tão-somente que há um conceito (lei prática pura) capaz de estabelecer uma conexão sintética (obrigação) com a vontade, uma vez que tal conceito inspira respeito, mas não assegura que esse respeito seja suficiente para submeter a vontade (ou melhor, o arbítrio) à essa lei. Vale lembrar

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que esse sentimento não expressa um princípio (lei) para a determinação da vontade. Antes sim, ele é o único motivo (subjetivo) para uma livre submissão da vontade à lei (objetiva). Em vista disso, a minha pretensão aqui se resume a expor os contornos da dificuldade e do método elaborado por Kant para aplicar a lei moral na Doutrina do método da segunda Crítica e, em seguida, baseando-me em A religião nos limites da simples razão (1793), explicar porque a lei moral não pode ser imediatamente aplicada às ações particulares (e ao arbítrio).

A doutrina do método da razão prática é diferente daquela da razão especulativa, uma vez que não fornece um modo de proceder para obter um conhecimento científico baseado em leis práticas puras. Em vez disso, de acordo com Kant, por doutrina do método da razão prática, deve- se entender “o modo como se pode proporcionar às leis da razão prática pura acesso ao ânimo [Gemüt] humano, influência sobre as máximas dos mesmos, isto é, como se pode fazer a razão objetivamente prática também subjetivamente prática” (Kant, 1788: A 269). Embora o filósofo afirme que tais leis “têm de ser representadas como os autênticos motivos das ações” (idem), ele está ciente que

Tem de parecer totalmente improvável a qualquer um que, mesmo subjetivamente, aquela apresentação da virtude89 possa ter mais poder sobre o ânimo humano e fornecer um motivo de longe mais forte para efetuar mesmo aquela legalidade das ações e produzir resoluções mais vigorosas que façam preferir a lei, por puro respeito a ela, a qualquer outra consideração, mais do que todas as seduções que alguma vez possam exercer-se a partir de miragens de deleites e de tudo aquilo que se queira computar como felicidade, ou também mais do que todas as ameaças de dor e de males (Kant, 1788: A 270).

89 Kant parece empregar aqui o conceito de virtude no sentido de moralidade, representada em um lei prática. Note- se que virtude é a “disposição moral [Gesinnung] em luta” (Kant, 1788: A 151). Este conceito mostrar-se-á central na doutrina kantiana dos costumes, porque virtude “é a coisa mais elevada que uma razão prática finita pode conseguir” (Kant, 1788: A 58).

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Por isso, Kant entende ser necessário empregar, “para colocar pela primeira vez nos trilhos do moralmente-bom um ânimo inculto ou mesmo degradado, algumas instruções preparatórias [vorbereitenden Anleitungen]” (Kant, 1788: A 271). Tais instruções constituiriam um mecanismo (Maschinenwerk) para atrair (locken) o ânimo humano para o moralmente-bom ou “por seu próprio proveito ou [atemorizando-o] pelo dano” (idem). Mas, o filósofo adverte que esse mecanismo tem de ser provisório, e tão logo “estas andandeiras [Gängelband] tenham produzido algum efeito, o motivo [Bewegungsgrund] moral puro tem que ser integralmente levado à alma [Seele]” (idem). Isto porque, apenas esse motivo é capaz de “[conferir] ao ânimo uma força, [...] de libertar-se de todo o apego sensível” (idem).

É interessante destacar que, segundo o filósofo, pode ser provado, “por observações que cada um pode fazer, que esta propriedade de nosso ânimo, esta receptividade de um interesse moral puro90 e, por conseguinte, a força motriz [bewegende Kraft] da representação pura da virtude, se for transposta convenientemente ao coração humano [menschliche Herz], é o motivo mais poderoso e [...] o único motivo [Triebfeder] para o bem” (Kant, 1788: A 272). Contudo, continua ele, “se essas observações provam somente a efetividade de um tal sentimento e não um melhoramento moral levado a cabo através dele, isto não prejudica [...] o único método de, mediante uma simples representação pura do dever, tornar subjetivamente práticas as leis objetivamente práticas da razão pura” (idem). Do aduzido pode-se inferir que, apenas porque há uma receptividade do ânimo, cuja afecção por conceitos é um sentimento moral de respeito, a lei

90 Receptividade para um interesse moral puro é o sentimento moral (enquanto propriedade do ânimo de sermos afetados por conceitos, que são leis práticas puras). Quanto ao conceito de interesse moral, um trecho da Analítica da razão prática é bastante elucidativo. Nesse trecho, lê-se: “do conceito de motivo surge o de interesse, que jamais pode ser atribuído senão a um ser dotado de razão e significa um motivo da vontade, na medida em que este é representado pela razão. Visto que numa vontade moralmente boa a própria lei tem que ser o motivo, o interesse moral é um interesse não sensorial pura da simples razão prática” (Kant, 1788: A 141).

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moral pode se tornar subjetivamente prática. Mas, para Kant, “apenas se podem exigir provas dessa receptividade” (Kant, 1788: A 272) e não dos seus resultados (um melhoramento moral, por exemplo). Pois, um melhoramento moral pressupõe que essa receptividade já tenha sido posta em prática, o que não parece ser o caso de um ânimo inculto ou degradado. Logo, é necessário primeiro conduzir aquela representação pura da virtude (moralidade) ao coração humano, para então esperar que a força motriz dessa representação produza uma disposição moral.91 O método da razão prática visa justamente esse fim, uma vez que ele seria um “método da fundação e da cultura de autênticas disposições morais [moralischer Gesinnungen]” (idem).

Após ter descrito outros métodos de educação moral e ter concluído que são contraproducentes (Cf. Kant, 1788: A 280), Kant sugere que em um método da razão prática devem constar dois exercícios (Übungen). O primeiro exercício visaria “tornar o ajuizamento [Beurteilung] segundo leis morais uma ocupação [Beschäftigung] natural, que acompanhe todas as nossas próprias ações livres bem como a observação das ações livres de outros, e como que [gleichsam] torná-lo um hábito [Gewohnheit] e aguçá-lo” (Kant, 1788: A 284). Esse exercício, segundo o filósofo, “tem de produzir aos poucos um certo interesse, inclusive pela lei da [razão prática], por conseguinte por ações moralmente boas” (Kant, 1788: A 285). O segundo exercício, por sua vez, deveria “tornar perceptível em exemplos, na apresentação viva da disposição moral [moralischen Gesinnung], a pureza da vontade, inicialmente apenas como sua perfeição negativa, na medida em que numa ação como dever não entra como fundamento determinante absolutamente nenhum motivo das inclinações” (Kant, 1788: A 286). Por meio desse exercício, Kant acredita que “o aprendiz é [...] mantido atento à consciência de sua liberdade” (idem). Quer

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dizer, o filósofo pensa que, ao manter o aprendiz consciente da “independência das inclinações e das circunstâncias do acaso [Glücksumständen], e [...] da possibilidade de bastar-se a si mesmo” (Kant, 1788: A 287), as leis práticas puras encontrariam “um acesso mais fácil pelo respeito por

nós mesmos na consciência de nossa liberdade” (idem).

O método descrito acima, todavia, não é visto como definitivo por Kant, uma vez que afirma que a sua intenção foi apenas esboçar um tal método (Cf. Kant, 1788: A 272), elencar as “máximas mais gerais da doutrina do método acerca de uma cultura e exercícios morais” (Kant, 1788: A 288), e que se limitou apenas aos traços fundamentais desse método. Penso que essa ressalva do filósofo é uma forma de reconhecimento da inviabilidade de a lei moral ser imediatamente aplicada, pois ele dá a entender que um método satisfatório requer “determinações particulares para cada espécie [de dever]” (idem). Parece correto interpretar que a demanda por “determinações particulares” é um indicativo de que a aplicação da lei moral em vista da moralidade (conformidade das máximas com a fórmula da lei) é diferente daquela em vista da legalidade (conformidade das ações com a fórmula da lei). No primeiro caso ocorreria uma aplicação interna e, no segundo, uma aplicação meramente externa dessa lei. O que, por sua vez, pressupõe duas espécies distintas de deveres.

O prefácio à primeira edição da Religião, a meu ver, ajuda a entender e a encontrar um caminho para eliminar a dificuldade que envolve a aplicação da lei moral. Naquela obra, o filósofo afirma que, “embora a moral não precise, em prol de si própria, de nenhuma representação de fim que tivesse de preceder a determinação da vontade, pode ser que mesmo assim tenha uma referência necessária a um tal fim, a saber, não como fundamento, mas como às necessárias conseqüências das máximas que são adotadas em conformidade com as leis” (Kant,

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1793: BA V-VI). Essa referência necessária às conseqüências da determinação da vontade é importante, pois, segundo Kant,

Sem qualquer relação de fim, não pode ocorrer no homem nenhuma determinação da vontade [Wille], já que tal determinação não pode dar-se sem algum efeito, cuja representação tem de se poder admitir, se não como fundamento de determinação do arbítrio [Willkür] e como fim prévio no propósito [Absicht], decerto com conseqüência da determinação do arbítrio em ordem a um fim (finis in consequentiam veniens); sem este, um arbítrio que não acrescente no pensamento à ação intentada algum objeto determinado objetiva ou subjetivamente (objeto que ele tem ou deveria ter), sabe por ventura como, mas não em que direção [wohin] tem de agir, não pode bastar-se a si mesmo (Kant, 1793: BA VI).

O trecho citado acima é muito elucidativo para a questão da aplicação da lei moral, pois indica que um princípio formal (como é o caso da lei moral), que não pressupõe um fim92 como objeto a ser alcançado, não é capaz de determinar a vontade. Uma lei formal, destituída de qualquer relação a um fim, não pode determinar a vontade, porque se trata de um princípio negativo que diz tão-somente o que não deve ser feito. Logo, ainda que se saiba como agir (segundo máximas universalizáveis), não há orientação alguma quanto à direção da ação, isto é, o

que deve ser feito.

É interessante notar que, na Fundamentação, o imperativo categórico já pressupõe um fim na sua segunda fórmula, a saber, a humanidade (e toda natureza racional) considerada como fim em si mesma (Cf. Kant, 1785: BA 66-70). Como esse fim constitui um princípio prático (e, ao menos na Fundamentação, todos os princípios práticos são formais, isto é, abstraem de toda

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matéria / objeto da vontade), trata-se de um fim destituído de matéria. Tendo em vista que todo fim subjetivo é um fim material, a humanidade (considerada como fim em si mesma) é um fim objetivo (que todos devem ter) e, principalmente, é “a condição suprema que limita todos os fins subjetivos” (Kant, 1785: BA 70). Em vista disso, fica claro que, naquela fórmula, o fim é concebido apenas negativamente, uma vez que o imperativo categórico exige apenas que a humanidade nunca seja tomada como meio para algo, mas sempre como fim. Sendo assim, esse fim objetivo pressuposto no imperativo categórico (lei moral) não é capaz de determinar (positivamente) a vontade.

Na segunda Crítica, Kant reconhece que “é inegável que todo o querer tenha de possuir também um objeto, por conseguinte, uma matéria” (Kant, 1788: A 60). Faz, no entanto, a ressalva de que essa matéria (que é um fim) não deve constituir “o fundamento determinante e a condição da máxima” (idem). Pois, caso isso ocorra, “a expectativa da existência do objeto seria a causa determinante do arbítrio”, o que não pode constituir uma regra necessária e universal. Na verdade, segundo o filósofo, “a matéria da máxima pode [...] permanecer, mas ela não tem de [muß] ser sua condição” (Kant, 1788: A 61). Disso ele infere que, “a simples forma de uma lei que limita [einschränkt] a matéria, tem de [muß] ser ao mesmo tempo uma razão [Grund] para acrescentar [hinzufügen] esta matéria à vontade, mas não para pressupô-la [sie voraussetzen]” (idem). Essa lei formal não visa eliminar toda a matéria da máxima, mas simplesmente a limitar. Penso que limitar a matéria significa submeter ao crivo da condição formal (prescrita pela lei moral) essa matéria, e que a matéria que permanece (após essa limitação) tem de ser algo permitido. Todavia, parece haver uma maneira de uma matéria (a felicidade, por exemplo) não apenas ser permita, mas tornar-se inclusive obrigatória, ou seja, um dever promover (befördern). Como se sabe, a

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convencido de que isso muda na medida em que “incluo na mesma a felicidade dos outros” (Kant, 1788: A 61). Neste sentido, uma lei de promover a felicidade dos outros resultaria “simplesmente do fato de que a forma da universalidade, que a razão necessita como condição para dar a uma máxima do amor de si [Selbstliebe] a validade objetiva de uma lei, torna-se o fundamento determinante da vontade” (idem). Quer dizer, segundo o filósofo, nesse caso não é “o objeto (a felicidade dos outros) o fundamento determinante e, sim, a simples forma legal, pela qual eu limitava minha máxima fundada sobre a inclinação para propiciar-lhe a universalidade de uma lei e, deste modo, torná-la adequada à razão prática pura, a partir de cuja limitação, então, e não a partir do acréscimo de um motivo exterior, o conceito de obrigação, de estender a máxima do meu amor de si também à felicidade dos outros, unicamente poderia surgir” (idem). Não há um acréscimo de algo exterior à própria máxima, mas tão-somente a aplicação da condição formal à matéria da máxima, a fim de torná-la universalizável. Embora esse raciocínio de Kant possa deixar dúvidas, parece-me que ele indica o caminho para aplicar a condição formal da vontade (lei moral).

Kant aparentemente estava ciente das dificuldades para aplicar imediatamente a condição formal da vontade às ações, uma vez que hesita em considerar aquele método de educação moral (exposto da doutrina do método da segunda Crítica) como satisfatório. Na verdade, de nada adianta um bom método de educação moral, se os princípios morais, que devem ser difundidos por meio dela, não são capazes de mover o agente em direção à moralidade. Penso que esse

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negativos, mas princípios positivos.93 Sendo assim, para que um método de educação moral seja eficiente, é necessário primeiro elaborar princípios de aplicação da condição formal da lei moral, o que pressupõe a determinação de fins (matérias) objetivos para a vontade. Do contrário, a vontade não pode bastar-se a si mesma (ou ao arbítrio), e as leis objetivamente práticas não se tornam subjetivamente práticas.

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