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1. AUTOR(IA): UMA QUESTÃO LITERÁRIA E HISTÓRICA

1.5 A autoria segundo Michel Foucault

1.5.1 O problema do nome de autor

O problema da autoria literária apontado por Michel Foucault não se reduz à discussão dos conceitos de obra e escrita. Há outras questões que tornam a noção de autor e a de autoria muito labirínticas, como o nome. Um nome de autor, pela perspectiva foucaultiana, é um elemento que funciona no interior de um determinado discurso como um nome próprio, embora não possa ser considerado totalmente igual a ele. Em sua conferência, o pesquisador alude às pesquisas de Searle a respeito dos questionamentos em torno do nome próprio, e avalia que um nome de autor possui quase as mesmas dificuldades elencadas por Searle.

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Essencialmente, um nome busca fazer referência a um indivíduo no mundo, todavia ele não consegue realizar essa empresa de modo puro e simples. O fato de uma pessoa chamar-se João da Silva não indica que todas as pessoas conheçam aquele indivíduo como João da Silva. Embora um nome não seja autoevidente em sua capacidade de referenciar uma pessoa, quando identifica esse indivíduo ele é bem mais forte do que simplesmente um indicativo:

O nome próprio (e da mesma forma, o nome de autor) tem outras funções além das indicativas. Ele é mais do que uma indicação, um gesto, um dedo apontado para alguém; em certa medida, é o equivalente a uma descrição. Quando se diz “Aristóteles”, emprega-se uma palavra que é equivalente a uma descrição ou a uma série de descrições definidas, do gênero de: “O autor das Analíticas” ou: “O fundador da ontologia”. (FOUCAULT, 2001, p. 272).

Indispensável citar o fato de que a corrente filosófica conhecida como Nominalismo já apontava disparidades entre um conceito e sua nomeação. Os nominalistas “Consideravam que a função referencial pura e simples não era suficiente para determinar a significação de um termo ou proposição” (SOARES, 2013, p. 78). Para eles, a função referencial seria advinda de estímulos externos à pessoa, assim as qualidades que atribuímos a um determinado objeto ou nome seriam reações de nossa consciência.

O pensamento de Foucault encontra-se exatamente na mesma linha de raciocínio dos nominalistas, pois tanto o nome de autor, quanto o nome próprio funcionam mais como uma descrição do ser nomeado, descrição que não existe por si mesma, mas é construída. Esse aspecto da construção fica bem visível na especificidade do nome de autor em relação ao nome próprio comum.

Pierre Dupont é um nome que se refere a uma pessoa, possivelmente francesa, que viveu em alguma época anterior à conferência de Michel Foucault. Qualquer coisa que, com o tempo, viesse a se descobrir a respeito de Pierre Dupont, não faria com que esse nome deixasse de se referir à mesma pessoa e não alteraria de maneira substancial a visão que as pessoas teriam acerca dele.

O mesmo não se pode dizer acerca de um nome de autor. Tendo em vista que um nome de autor costumeiramente está relacionado a suas obras, a descoberta de qualquer coisa relacionada à autoria delas pode modificar potencialmente o jeito como o público encara esse nome. O caso de Shakespeare é paradigmático. Se for descoberto que os Sonetos, tradicionalmente atribuídos a Shakespeare, não foram produzidos por ele e sim por outro indivíduo, ocorrerá uma mudança no estatuto desse nome, diminuindo um pouco sua força. De modo análogo, se fosse descoberto que obras menores, antes atribuídas a outros autores,

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tivessem sido escritas por ele, uma mudança de outra ordem ocorreria. Segundo Foucault, tais modificações ocorrem porque um nome de autor não é simplesmente um elemento em um discurso, pois ele

[...] exerce um certo papel em relação ao discurso: assegura uma função classificatória; tal nome permite reagrupar um certo número de textos, delimitá-los, deles excluir alguns, opô-los a outros. [...] o fato de que vários textos tenham sido colocados sob um mesmo nome indica que se estabelecia entre eles uma relação de homogeneidade, ou de filiação, ou de autenticação de uns pelos outros, ou de explicação recíproca, ou de utilização concomitante (FOUCAULT, 2001, p. 273).

Por conseguinte, um nome de autor é uma construção envolvendo um determinado nome com uma gama de textos, apesar de que nem sempre essa relação mostre-se efetivamente clara. Difícil não pensar em várias obras que foram atribuídas a autores, em determinadas épocas, somente pela sua unidade estilística sem que hoje se tenha certeza dessas autorias. No Brasil, o caso Tomás Antônio Gonzaga é o mais exemplar. Outro grande exemplo é o já citado41 fato envolvendo a tragédia Octávia. Tradicionalmente atribuída a Sêneca, descobriu-se que a tragédia não havia sido escrita por ele, e mesmo assim ela ainda integra suas obras completas. O caso de Sêneca nos leva a colocar uma hipótese acerca da conferência de Foucault. De fato, o peso dado ao nome Shakespeare seria muito alterado se fosse provado que várias obras atribuídas a ele na verdade tivessem sido escritas por outra pessoa, mas até que ponto essa construção da autoria literária é efetivamente verdade? Sêneca, muito embora pertença ao cânone ocidental, não tem todo o prestígio que Shakespeare tem. Sêneca não é tão popular entre a massa como o dramaturgo inglês e, por conseguinte, a descoberta de que uma de suas tragédias fora escrita por outra pessoa não alteraria de modo impactante a relação que as pessoas têm com esse nome.

Essas afirmações são complicadas de serem feitas, principalmente por envolverem nomes tão distantes no tempo e envolvidos em tantas polêmicas, principalmente no caso de Shakespeare em que já se duvida de sua existência. Evidentemente, não pomos em dúvida a afirmação de Foucault, o que consideramos é que a relação existente entre obra e nome de autor só seria realmente alterada, quando tanto autor, quanto obra estiverem estabelecidos num patamar canônico e o superarem, isto é, serem reconhecidos não somente pela academia, mas pelo público em geral.

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