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1. OS CAIPIRAS DE LOBATO

1.2. PROBLEMA VITAL e a ressurreição do Jeca sob um outro prisma

O Jeca não é assim: está assim.

(Monteiro Lobato)

Em 1918, a meio caminho entre o primeiro caipira de Velha Praga e Urupês e o acontecimento da Semana de Arte Moderna (de 1922), reaparece no cenário literário paulista a figura do caipira lobatiano. Intitulado de Jeca Tatu: a ressurreição38, corresponde a uma

segunda personificação do Jeca de Monteiro Lobato, desta vez ao revés da primeira, embora com os mesmos preconceitos ideológicos. É um momento de renovação literária, esboçada desde o advento da República e acentuada depois da primeira grande guerra (1914-1918) e que, a partir do Modernismo, alcançaria foros de “nova”.

Isso porque o Modernismo da primeira fase39 se ateve a um projeto estético,

“propondo uma radical mudança na concepção de obra de arte, vista não mais como mímese, mas como objeto de qualidade e de relativa autonomia”40. Por outro lado, inserindo-se em um

projeto de conhecimento e interpretação da realidade nacional, procurou abalar uma visão do país que abrangia toda a produção cultural anterior à sua atividade:

(...) assumindo a modernidade dos procedimentos expressionais o Modernismo rompeu a linguagem bacharelesca, artificial e idealizante que espelhava, na literatura passadista de 1880-1920, a consciência ideológica da oligarquia rural instalada no poder, a gerir estruturas esclerosadas que em breve, graças às transformações provocadas pela imigração, pelo surto industrial, pela urbanização (enfim, pelo desenvolvimento do país) iriam estalar e desaparecer em parte.41

Indo buscar nas vanguardas européias sua concepção artística, os modernistas, num processo antropofágico, degustaram o que de mais substancioso continham esses movimentos: a fragmentação da linguagem, o popular e o grotesco como contraponto ao falso academicismo vigente e a recusa à idealização do real. Com isso tentaram revolucionar a estética passadista e acadêmica do período. É claro que todos esses padrões estéticos oriundos

38 Em 1924 Monteiro Lobato publica esse conto com o título de Jeca Tatuzinho. Em 1927, já com o título atual,

é adaptado para o “Almanaque Biotônico Fontoura”.

39 A crítica costuma dividir o movimento modernista em duas distintas fases: a primeira (de 1922 até 1930)

com um projeto mais estético e centrado na atualização das estruturas propostas pela classe dominante; a segunda (que compreende o período de 1930 a 1945) com um projeto ideológico preocupado em discutir as funções do escritor e da literatura. Nesse segundo momento, o Modernismo extravasa os quadros burgueses, derivando em posições extremamente esquerdizantes, de denúncia aos males sociais, ou em posturas conservadoras e de direita ou francamente reacionárias, como o integralismo, por exemplo. (Ver LAFETÁ, João Luiz. Op.cit.)

40 Idem, p.21.

da Europa sofreram aqui conotações diferentes em decorrência de momentos históricos diferenciados. Ou seja, se aqui deslumbrava-se um futuro promissor, calcado numa sociedade burguesa e capitalista, já na Europa, destruída pela guerra, se assistia a um período inverso: o do fim de um processo hegemônico mundial que se arrastara por séculos, mas que agora “mudara de mãos”42.

Essa impotência européia mundial foi transfigurada pelas vanguardas de início de 1920 que assumiram o caráter pessimista em que vivia a Europa. Daí a estética fragmentada de um mundo fragmentado, a estética do caos e da linguagem em crise. No Modernismo brasileiro, entretanto, esses fatores ideológicos são escoimados a ponto de assumirem aqui uma ressonância mais otimista e de classe definidas.

Os movimentos de vanguarda europeus encontraram ressonância, no país, porque o Brasil assistia a um período de alterações sociais importantes, promovidas pelo surto de industrialização. Configurada principalmente nos anos de guerra, porém aqui estabelecida muito antes, possibilitaria a urbanização acelerada e conseqüentemente o surgimento de mão- de-obra mais qualificada, se atentarmos para os imigrantes europeus, mais tecnicamente preparados que a mão-de-obra nacional, de cidades como São Paulo e Rio de Janeiro43. É

certo que não se pode, entretanto, achar que transformações no sistema de produção datam dessa época. Surgem com a abolição da escravidão e com o advento do trabalho assalariado. Apesar de não afastar do poder as oligarquias, a burguesia se encontra em franco processo de ascensão; cresce também o proletariado. Data igualmente dessa época o surgimento, em 1922, do Partido Comunista Brasileiro.

É nesse contexto que se deve situar o Modernismo: um período, na verdade, de ascensão do capitalismo no Brasil. Isso porque “o escravismo fora extinto a menos de três décadas, o novo regime político não estava isento de crises que denunciavam a presença de graves contradições, que se aprofundavam agora. Em escala geral, assistia-se à crise geral do capitalismo. A Revolução de outubro e a consolidação subseqüente do poder soviético abalavam o mundo. No Brasil, que recebia os reflexos das gigantescas transformações em processo, as mudanças acompanhavam o que ocorria no exterior, mas refletiam também o avanço da produção capitalista e o avanço de maior participação da burguesia no poder”44. 42 Ver WEBER, João Hernesto. Caminhos do romance brasileiro. Op.cit., p.89.

43 Para informações mais precisas, ver SODRÉ, Nelson Werneck. História da literatura brasileira. 10.ed. Rio

de Janeiro: Graphia, 2002; CARONE, Edgard. Op.cit.; FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. 22.ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1987.

Daí acontecimentos como a Semana de Arte Moderna, a rebelião tenentista de Copacabana e a formação do Partido Comunista datarem de um mesmo ano. Todos são peças de um mesmo e amplíssimo mosaico, configurado pela ascensão burguesa que começava a esboçar acanhados passos.

Veja-se que é um período de grandes revoltas e de discussões apaixonadas no campo das idéias. A estrutura institucional se encontra gravemente abalada por movimentos de rebelião militar e pelo levante mais ou menos organizado da classe proletária. Esse clima de ameaça atinge também o campo das artes, e em especial o da literatura45.

É praticamente nesse momento que entra Lobato com a figura “ressuscitada” do Jeca Tatu. Se o Modernismo da primeira fase propunha-se uma revolução no campo estético46,

demolindo tabus e preconceitos, numa iconoclastia ferrenha e protegida pela aristocracia cafeeira e latifundiária47, o Jeca lobatiano, um pouco antes, propunha-se, em suma, uma

espécie de “pedido de desculpas” ao homem do campo (o caipira), incompreendido em Velha

Praga e Urupês.

A propósito de uma campanha nacionalista de saúde pública promovida por Lobato, em 1918 publica-se Jeca Tatu: a ressurreição48. É uma pequena história, composta de 18

pequenos capítulos que narram a saga do caipira doente pelo amarelão que, ouvindo a sapiência da ciência, transforma-se de um “moleirão” em um homem rico. É uma visão georgista49, evidentemente, mas que, de certa forma, já põe em xeque — ao contrário dos 45 Ver SODRÉ, Nelson Werneck. História da literatura brasileira. Op.cit.

46 É preciso entender projeto estético de uma maneira não dissociada de projeto ideológico. Ambos se

confundem em determinado momento, na medida em que ao se alterar o discurso e a maneira de ver determinado objeto, se altera, de certa forma, o modo de pensá-lo. Ou seja, o simples fato de revolucionar-se o campo estético vigente na literatura de um tempo acarreta numa mudança ideológica, pois é na e pela linguagem que nos expressamos. Essa dissociação feita entre projeto estético e ideológico funciona apenas de maneira a mostrar a diferença de pensamento, e de atitude, entre as duas fases do Modernismo. Para esse assunto ver LAFETÁ, João Luiz. Op.cit.

47 Para explicitar melhor a idéia explanada, cita-se um pequeno trecho de SODRÉ: Era uma ruptura com as

idéias vigentes, mas uma ruptura sob proteção das representações mais consagradas do regime, as mais austeras, as mais conservadoras. A burguesia brasileira, sempre conciliadora com o latifúndio, impulsionava a subversão das artes e a impulsionava. (SODRÉ, História da literatura brasileira, p.575)

A verdade é que essa primeira fase do Modernismo traz consigo um ranço: o patronato cafeeiro. É um paradoxo um movimento que se propõe a reformas estéticas de tamanha importância, se firmar justamente nas barbas dos coronéis do latifúndio brasileiro. O certo é que a semana foi um acontecimento de toda a alta sociedade paulista, uma movimentação da aristocracia.

48 Essa pequena história teve um interessante destino. Adotada, em 1927, por Candido Fontoura para

propaganda de seus preparados medicinais contra a malária e a opilação, foi espalhada pelo país em edições que ultrapassaram milhões de exemplares. Com o nome de Jeca Tatuzinho, por causa do caráter didático que apresenta e do tamanho das edições distribuídas, essa história tornou o Jeca Tatu a construção de identidade mais consolidada e difundida da literatura brasileira, ficando, até praticamente os dias de hoje, no imaginário popular brasileiro.

49 Para entender o georgismo ler Comunismo ou georgismo. In: LOBATO, Monteiro. Prefácios e entrevistas

primeiros artigos — as estruturas agrárias e, conseqüentemente, políticas da nação.

Vejamos, contudo, que o modo de pensar e construir — embora a visão ainda seja a mesma, externa à realidade do caboclo paulista — o caipira sofre significativas alterações, não na forma, porém no conteúdo. Como foi visto, Urupês e Velha Praga são textos de caráter menos didático, e por isso mesmo mais rebuscados, ao passo que a segunda construção do Jeca é de caráter mais didático, com um texto menos rebuscado. Basta, para isso, observarmos o tom de “historinha” que assume desde o início (Jeca Tatu era um pobre

caboclo que morava no mato, numa casinha de sapé. Vivia na maior pobreza, em companhia da mulher, muito magra e feia, e de vários filhinhos pálidos e tristes.50).

É uma construção ainda alegórica do caipira, com características ainda semelhantes ao Jeca da primeira fase (Que grandessíssimo preguiçoso!, Alem

de vadio, bêbado..., Que criatura imprestável! Não serve nem para tirar berne de cachorro..., Alem de preguiçoso, bêbado, e alem de bêbado, idiota, era o que todos diziam.). Não há aqui, a exemplo do

primeiro estereótipo, uma observação mais aguçada do modo de vida sócio-econômico-cultural do caboclo paulista, como a fez Antonio Candido51,

muito menos uma visão menos classista. O que há de novo é a consciência do escritor, pintando o caipira

como um homem abandonado e jogado às traças (O Jeca não é assim: está assim) por leis, organizadas obviamente pelo poder público, que privilegiam os latifúndios em detrimento do homem do campo, do camponês.

Não se trata de um texto de cunho marxista, nem tampouco laudatório à revolução soviética de 1917. Trata-se de um texto meramente didático, muito mais ficcional do que propriamente “realista”. Atentando para esse fato, constata-se que tal texto é de caráter menos experimental que os primeiros52, na medida em que aqueles, além de estarem inserindo 50 LOBATO, Monteiro. Jeca Tatu: a ressurreição. In: Mr Slang e o Brasil e Problema vital & Mundo da lua e

Miscelânea (Obras completas, vol. 5). 13.ed. São Paulo: Brasiliense, 1972, p.170.

51 CANDIDO, Antonio. Parceiros do Rio Bonito. Op.cit. 52 Velha Praga e Urupês.

Ilustração 3: Capa da 30ª edição de Jeca Tatuzinho, feita pelo Biotônico Fontoura, em homenagem aos 30 milhões de exem- plares distribuídos gratuitamente (1961)

Monteiro Lobato no ramo literário, o que já os tornam de certa forma experimentais, calcavam-se numa visão distorcida proveniente de “estudos” acerca do caipira. Já este texto53

foge dessa armadilha, formulando seu discurso no campo literário, com um linguajar simples, urbano e, aparentemente, despretensioso.

É a consciência da situação do caipira submetido às políticas nacionais que o abandonam e o enxotam de um lado para outro como um pobre coitado. É igualmente, de certa forma, a consciência dum primitivismo brasileiro (já inerente, mas não bem assimilado nos textos da primeira fase) que se mistura à vida cotidiana ou é reminiscência viva de um passado recente. Nesse sentido, a criação nacionalista de Lobato se aproximaria dos ideais propostos pelos futuros modernistas, embora a eles não se alinhe. Ou seja, enquanto os modernistas revelam esse primitivismo, ainda latente na nação, com o intuito de exprimir um sentimento nacionalista laudatório ao que temos de mais autêntico e genuíno, Monteiro Lobato descortina esse elemento primitivo justamente para expor sentimento contrário ao dos modernistas. Isto é, mesmo sendo o elemento primitivo abordado tanto em Lobato quanto nos Modernistas, o é para diferenciados fins. Para aquele é uma forma de criticar o atraso cultural e o latente subdesenvolvimento brasileiro, já para estes uma maneira de valorizar as “genuínas riquezas nacionais”, formadoras da identidade e do caráter do povo brasileiro.

Dessa forma, é relevante afirmar que Monteiro Lobato adota a figura do Jeca Tatu para atacar as políticas brasileiras, sendo o “primitivo” um dos principais focos de ataque. Para o escritor, esse primitivismo é fruto de um atraso político e cultural já entranhado, historicamente, no subconsciente de nossa gente. Para Lobato, o primitivismo do Jeca é oriundo de políticas errôneas e predatórias que excluem o caipira e impedem o seu desenvolvimento. Esse atraso cultural é, para Lobato, responsável pela caracterização de seu modo de vida e pela formação de seu caráter, ou seja, em última instância, pela formação de sua própria identidade. Daí a visão antagônica à do Modernismo.

Perceba-se, contudo, que embora seja diferente o modo de ver e captar esse elemento primitivo, ambas as visões são de cunho nacionalista, embora com propósitos diferentes. Segundo Antonio Candido, “(...) o nacionalismo acentuado desta geração renovadora [a geração modernista], que deixa de lado o patriotismo ornamental de Bilac, Coelho Neto ou Rui Barbosa, para amar com veemência o exótico descoberto no próprio país pela sua curiosidade liberta das injunções acadêmicas”, faz com que “Um certo número de escritores

se aplique a mostrar como somos diferentes da Europa e como, por isso, devemos ver e exprimir diversamente as coisas”54. É o que, de certa forma, busca fazer Lobato, embora com

objetivo diverso, conforme anteriormente exposto.

Captando o exótico, o escritor desvenda, “liberto das injunções acadêmicas”, um outro país ainda não desvendado na literatura: o Brasil da endemia e da opilação, pobre e sem maquiagem que esconde o que tem de mais “fraco”. A nossa fraqueza é ressaltada também pelo exótico, ao contrário dos escritores modernistas que captavam o exótico para valorizar o que tínhamos de mais “puro” na cultura brasileira.

Sobre esta geração modernista é preciso, aliás, analisar alguns pontos cruciais antes de retomarmos o Jeca. Primeiramente, é notável frisar a importância dada à Semana de Arte Moderna, meramente episódica, e que vem sendo superestimada por muitos críticos que a estudam. É certo que o movimento rompeu radicalmente com o passado, e que esse radicalismo se deu por meio da galhofa, oriunda do bom-humor tomado como arma de luta como meio de demolição, na primeira fase55. Contudo, o movimento muitas vezes ficou

somente nisso, tornando-se muito difícil nesta prosa saber onde inicia a blague, onde principia a seriedade.

Essa radicalização, que seria ampla no nível da linguagem56, se amenizou nos anos 30,

tornando-se mais ideológica, no sentido de tentar desvendar as mazelas do país. Todavia, esse esforço de interpretar o Brasil já data de muito antes de 1922. O próprio Jeca lobatiano é um esforço de tentar desvendar a nação. A renovação interpretativa, a busca do conhecimento da realidade brasileira, ou seja, a busca por uma identidade nacional, por circunstâncias de necessidade, é anterior à Semana e tem um dos seus principais momentos no Romantismo, quando se pretendeu criar uma identidade para uma nação que surgia independente de Portugal57. O que alterou, no Modernismo, foi o foco dessa busca incansável de identidade. Se 54 CANDIDO, Antonio. Literatura e cultura de 1900 a 1945. Op.cit., p.121.

55 Ver Memórias Sentimentais de João Miramar e Serafim Ponte Grande (1923 e 1933 respectivamente), de

Oswald de Andrade e Macunaíma (1928), de Mário de Andrade.

56 Cita-se, a exemplo ilustrativo, um trecho extraído de SODRÉ: O mais importante da ruptura com que o

Modernismo radicaliza sua revolução está precisamente na linguagem: nenhuma revolução literária se prova revolução sem mudar a linguagem. Já não digo mudar o tom, o metro, a imagem, a sintaxe e o vocabulário, mas alterar tudo isso e transformar, antes de mais nada, a relação de distância entre povo e poesia. Essa distância se torna menor. (SODRÉ. Op.cit., p.582)

57 Veja o que diz Alencar em seu “relato pessoal em forma de carta” Como e porque sou romancista. Porto

Alegre: Mercado Aberto, 1998, p.65:

no Romantismo a preocupação era emancipar-se culturalmente de Portugal, sem contudo perder o contato com a Europa, no Modernismo essa preocupação não mais existia, pois Portugal não exercia mais nenhum tipo de influência sócio-econômico-cultural sobre o Brasil.

Sob essa perspectiva, Monteiro Lobato aproxima-se ao grupo dos modernistas, pois, antes mesmo do surgimento de escritores como Mário e Oswald de Andrade, já pensava o Brasil desvencilhado dos ideais românticos. Tanto Lobato quanto os modernistas foram exemplos probantes de inconformismo cultural, pois tanto aquele quanto estes representam um esforço de penetrar mais fundo na realidade brasileira. Lobato, pela crítica que exerce às políticas brasileiras, poderia ser tido como um dos precursores da Semana, embora Velha

praga e Urupês não possam ser consideradas obras essencialmente modernistas.

Primeiramente por causa da linguagem adotada, calcada toda ela em norma culta padrão, que não dá direito de voz ao caboclo; depois, por causa da desvalorização do elemento exótico, posto em evidência pelo Modernismo. Veja, por exemplo, Macunaíma, de Mário de Andrade.

Mesmo Jeca Tatu: a ressurreição não traz essas qualidades, tão marcantes nos textos modernistas. Com uma linguagem relativamente próxima à adotada por seus livros infantis, Monteiro Lobato dialoga com seu público por meio de um linguajar simples e sofisticado, sem contudo deturpar as “normas gramaticais” de seu tempo, como faria Oswald, em

Memórias sentimentais de João Miramar e Serafim Ponte Grande, por exemplo58. Todavia,

seria equivocado afirmar não ser combatida, nessa segunda construção do caipira, a estética passadista. Pelo contrário, além de quebrar com a narrativa vigente, o texto ataca as estruturas nacionais, na medida em que condena as políticas brasileiras, tão preocupadas em formular suas leis baseadas nas da Europa, que deixam o caipira à margem da sociedade, na penumbra da civilização. É o que ocorre, de forma menos amadurecida e bem menos consciente, é claro, nos dois primeiros artigos.

Em Jeca Tatu: a ressurreição, o caipira é posto em evidência e toda a atmosfera que

grosseira do que o envolveram os cronistas e arrancando-o o ridículo que sobre ele projetam os restos embrutecidos da quase extinta raça.

Era preciso estilizar o indígena (tirá-lo da Ilíada, citando Lobato) e dar-lhe uma roupagem mais europeizada, para, com isso, conferir-lhe uma identidade com foros de nacional. Uma identidade forjada, é certo, mas que exprimisse o sentimento de uma elite nacional (escravocrata, como o próprio José de Alencar) que regia um país recém independente de Portugal. Nesse sentido, tanto Iracema quanto O Guarani foram de suma importância para o projeto da época. Ambos, afinal, pretendiam simbolizar a união entre o colonizador e o colonizado, fundamento da nova nação. (Para esse assunto, ver WEBER, João Hernesto. Caminhos do

Romance brasileiro: de A Moreninha a Os Guaianãs. Op.cit.)

58 A não ser a pontuação, que dava outro ritmo para a obra, e a acentuação, totalmente diferente da

perpassa a narrativa envolve o personagem. Ou seja, se nos artigos da primeira fase o ambiente é alheio ao caipira, não envolvendo-se este com aquele, no texto da segunda fase os dois se fundem, parecendo, por vezes, ser um só. É claro que essa simbiose entre homem e meio é rompida no momento em que chega o Doutor com os conhecimentos científicos da costa. A partir desse momento, na visão lobatiana, o Jeca se transforma em um forte e, graças à ciência, ascende socialmente.

Daí por diante, o caipira vence uma a uma as dificuldades e o ambiente se transforma segundo as suas necessidades e aspirações. Em suma, em Jeca Tatu: a ressurreição Lobato faz um pedido de desculpas formal ao caipira incompreendido quatro anos antes. Significativa mudança no modo de ver o caboclo, embora não menos preconceituoso, na medida em que o escritor o pinta sob a perspectiva de quem está de fora, ou seja, ainda sob o olhar do homem da cidade. Se em 1914 o caipira é fraco, agora pode ser um forte, desde que tenha condições para superar sua inanição. Todavia, mesmo se transformando num homem vencedor por meio do trabalho, visão que por si só parece não combater as políticas brasileiras, essa personificação do caipira não deixa de ser combativa às estruturas mentais da nação.