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Quando se trata de um conceito universal de humanidade logo vem à mente a ideia do homem abstrato, ou seja, a ideia de um conceito de humanidade que deveria abranger todos os homens. Nesse sentido, como é entendido geralmente, não deveria haver descrição de cor, sexo, idade ou de um padrão fixo de constituição corporal53. É acerca dessa humanidade que os filósofos durante séculos escreveram seus tratados e se o conceito é assim entendido, então

todos os homens devem ser considerados como iguais no que se refere ao conceito, daí que

uma teoria ética, por exemplo, deveria contar todos como agentes morais, desde que essa teoria se baseasse no homem universal e buscasse postular um padrão ético não discriminatório arbitrário. Essa é a concepção aceite54.

Se o exemplo for Kant, trata-se do filósofo da autonomia e da exaltação da boa vontade, um célebre representante da filosofia moral que se preocupava com a questão de os homens não serem tratados como meros meios, senão sempre como fins em si mesmos. A capacidade da razão era, segundo Kant, a condição necessária e suficiente para que uma pessoa pudesse ser considerada membro da humanidade. Entretanto, como lemos:

Os negros da África não possuem, por natureza, nenhum sentimento que se eleve acima do ridículo. O senhor Hume desafia qualquer um a citar um único exemplo em que um negro tenha mostrado talentos, e afirma: dentre os milhões de pretos, que foram deportados de seus países, não obstante muitos deles tenham sido postos em liberdade, não se encontrou um único sequer que apresentasse algo grandioso na arte ou na ciência, ou em qualquer outra aptidão; já entre os brancos constantemente arrojam-se aqueles que, saídos da plebe mais baixa, adquirem no mundo certo prestigio, por força de dons excelentes. Tão essencial é a diferença entre essas raças humanas, que parece ser tão grande em relação às capacidades mentais quanto à diferença das cores. A religião do fetiche, tão difundida entre eles, talvez seja uma espécie de idolatria, que se aprofunda tanto no ridículo quanto parece possível à natureza humana. (…) Os negros são muito vaidosos, mas a sua própria maneira, e tão matraqueadores, que se deve dispersá-los a pauladas. (KANT, 1993, pp. 75-76 - grifo meu)

Dessa leitura, pode-se inferir que quando Kant escrevia seus textos filosóficos não era ao homem abstrato que se referia, mas, ao homem segundo o paradigma ao qual ele se filiava,

53 Aqui, bem entendido, refiro-me ao padrão corporal de visão, audição, possuir dois braços e duas pernas e que

estes sejam plenamente funcionais, etc.

54

Claramente estou assumindo um conceito de conceito que está de acordo com a Teoria Clássica que é aquela usada na grande maioria dos casos da tradição da filosofia ocidental. Como a define Margolis e Laurence: “A maioria dos conceitos (especialmente conceitos lexicais) são representações mentais estruturadas que codificam um conjunto de condições necessárias e suficientes para a sua aplicação, se possível, em termos sensoriais ou perceptuais.” (MARGOLIS & LAURENCE, 1999, p. 10) (“Most concepts (esp. lexical concepts) are structured mental representations that encode a set of necessary and sufficient conditions for their application, if possible, in sensory or perceptual terms.”)

o homem branco. Vê-se, portanto, que a diferença que Kant atribui a negros e brancos é uma diferença de essência, o que faz com que seu conceito de homem não possa ser atribuído aos negros, porque sua essência não é a mesma atribuída aos brancos. Trata-se, então, de analisar a ideia de humanidade, a partir de um paradigma específico representado pelos conceitos que são construídos55. Ali se encontra uma descrição de humanidade que ao esclarecer a quem se refere, ao mesmo tempo, exclui aqueles que não correspondem à descrição.

O pensamento de Kant parece muito próximo à taxonomia definida pelo naturalista sueco Carl Linnaeus na edição de 1767 de seu Systema Naturae56:

homo sapiens europaeus: branco, sério, forte;

homo sapiens asiaticus: amarelo, melancólico, avaro; homo sapiens afer: negro, impassível, preguiçoso;

homo sapiens americanus: vermelho, mal-humorado, violento.

Dessa classificação, fica evidente que o conceito de cada uma das raças pressupõe que existe uma diferença de essência que define cada tipo enquanto pertencente àquela raça. A descrição é baseada em caracteres fenotípicos, a inferência de essência é parte de uma pressuposição ligada ao paradigma ao qual o cientista se filiava, como no caso de Kant.

A questão crucial é que a partir desse pensamento advêm consequências ético- políticas. Baum, em seu minucioso estudo sobre a “origem” da raça caucasiana, afirma que tanto o racismo científico quanto o popular na Europa e na América (sic) tiveram sua ascensão no mesmo momento histórico em que os ideais de liberdade e igualdade eram exaltados pelo Iluminismo. Segundo o pensador:

O pensamento iluminista incluía, por um lado, o impulso para diferenciar, classificar e sistematizar os vários elementos do mundo natural. [...] Por outro lado, o iluminismo postula um ethos universalista e igualitário que tem reforçado lutas pela liberdade individual, a igualdade, a democracia e os direitos humanos universais. Surgiram tensões na medida em que a primeira tendência tem gerado esforços entre os seres humanos não só para dominar a natureza não-humana, mas também, sistematicamente, para diferenciar entre grupos de modo que racionalizasse a hierarquia, a desigualdade e a dominação entre grupos. (BAUM, 2006, p. 60)57

55 Dentro da perspectiva da Teoria da Teoria dos Conceitos, Susan Carey é esclarecedora: “Conceitos são os

componentes das crenças, ou seja, as proposições são representadas por estruturas de conceitos. Teorias são complexas estruturas mentais que consistem de um domínio mentalmente representado de fenômenos e princípios explicativos que são considerados por elas.” (In. MARGOLIS & LAURENCE, 1999, p.44) (“Concepts are the constituents of beliefs; that is, propositions are represented by structures of concepts. Theories are complex mental structures consisting of a mentally represented domain of phenomena and explanatory principles that account for them.”)

56 Ver: Baum, 2006, principalmente capítulo II.

57 “Enlightenment thought included, on the one hand, an impulse to differentiate, classify, and systematize the

various elements of the natural world. […] On the other hand, the Enlightenment postulated a universalistic and egalitarian ethos that has buttressed struggles for individual freedom, equality, democracy, and universal human rights. Tensions have arisen insofar as the first tendency has generated efforts among human beings

Penso que Charles Mills coloca, de forma clara, quando trata da teoria do contrato social a consequência dos pressupostos raciais contidos no pensamento da modernidade: “Politicamente, o contrato estabelece a sociedade e o governo, assim transformando os “homens” sem raça (raceless) participantes do estado de natureza em criaturas sociais que são politicamente obrigados a um estado neutro, tornando-os fundadores de um política racial [...]”(MILLS, 1999, p. 12)58. Como afirmei anteriormente, é o homem abstrato que está apresentado na teoria do contrato social. Mas, é ao homem branco que ela se refere, a quem confere direitos e deveres. Mills continua:

No contrato social, a metamorfose humana crucial é a do homem “natural” em homem “civil/político”, daquele que vive no estado de natureza para o cidadão da sociedade criada. Essa mudança pode ser mais ou menos extrema, dependendo do teórico envolvido. Para Rousseau essa transformação é dramática, nela criaturas animalescas de apetite e instinto tornam-se cidadãos obrigados pela justiça e leis auto-prescritas. Para Hobbes é uma questão um pouco mais tranquila, pessoas que miram primeiramente a si mesmas aprendem a limitar seu autointeresse para seu próprio bem. Mas em todos os casos o “estado de natureza” original, supostamente indica a condição de todos os homens, e a metamorfose social os afeta a todos do mesmo modo. (MILLS, 1999, p. 12)59

Entretanto, como deixa claro o filósofo, na prática o contrato social tomou a forma de um contrato racial, no qual as pressuposições teóricas de identidade racial estavam presentes:

[...] o Contrato Racial estabelece uma política racial, um estado racial, e um racial sistema jurídico, onde o status de brancos e não-brancos é claramente demarcado, seja pela lei ou pelo costume. E o propósito desse estado, por contraste com o estado neutro do contratualismo clássico, é, a propósito (inter alia), especificamente manter e reproduzir essa ordem racial, seguramente os privilégios e as vantagens da totalidade dos cidadãos brancos e manter a subordinação dos não-brancos. De modo correspondente, o “consentimento” esperado dos cidadão brancos é, em parte, conceitualizado como um consentimento, explícito ou tácito, à ordem racial, à supremacia branca, o que poderia ser chamado Branquidade (Whiteness). Na medida em que os fenotipicamente/genealogicamente e culturalmente classificados como brancos não conseguem fazer jus à responsabilidade cívica e política da branquidade, eles estão em abandono dos seus deveres como cidadãos. Desde o not only to dominate nonhuman nature but also systematically to differentiate among groups of people in ways that have rationalized hierarchy, inequality, and domination between groups.”

58

“Politically, the contract to establish society and the government, thereby transforming abstract raceless ‘men’ from denizens of the state of nature into social creatures who are politically obligated to a neutral state, becomes the founding of a racial polity […]”

59

“In the social contract, the crucial human metamorphosis is from ‘natural’ man to ‘civil/political’ man, from the resident of the state of nature to the citizen of the created society. This change can be more or less extreme, depending on the theorist involved. For Rousseau it is a dramatic transformation, by which animallike creatures of appetite and instinct become citizens bound by justice and self-prescribed laws. For Hobbes it is a somewhat more laid-back affair by which people who look out primarily for themselves learn to constrain their self-interest for their own good. But in all cases the original ‘state of nature’ supposedly indicates the condition of all men, and the social metamorphosis affects them all in the same way.”

início, então, a raça não é , de modo algum, um "adendo", um "desvio" dos ostensivos ideais racistas (raceless) ocidentais, mas sim um componente central da formação desses ideais. (MILLS, 1999, pp. 13-14)60

Mills não quer afirmar que os teóricos contratualistas (aí incluído Kant, sob a perspectiva do texto milliano) afirmaram a discriminação baseada no conceito de raça. Contudo, ele ressalta que esses pensadores viveram em um período em que o Contrato Racial era uma realidade e que não pensaram seriamente acerca desse problema real que contradizia os fundamentos de igualdade de suas teorias, embora a raça fosse uma categoria crucial de separação entre os indivíduos (chegando ao ponto de determinar hierarquias de humanidade)61.

A hipótese que proponho é que, como foi demonstrado no caso de Kant, não houve omissão, senão consentimento a partir de uma visão paradigmática acerca de quem poderia e quem não poderia ser signatário do contrato, porque nem todos cumpriam as condições necessárias e suficientes para caber no conceito de agente político e moral. O conceito de homem da modernidade de uma forma ou de outra era descritivo, não cabendo nessa descrição os não-brancos. De fato, Mills cita Kant e Locke como exemplos de como as categorias raciais estavam implícitas, ainda que não aparecessem explicitamente em seus tratados éticos e políticos62.

60 “[...] the Racial Contract establishes a racial polity, a racial state, and a racial juridical system, where the status

of whites and nonwhites is clearly demarcated, whether by law or custom. And the purpose of this state, by contrast with the neutral state of classic contractarianism, is, inter alia, specifically to maintain and reproduce this racial order, securing the privileges and advantages of the full white citizens and maintaining the subordination of nonwhites. Correspondingly, the ‘consent’ expected of the white citizens is in part conceptualized as a consent, whether explicit or tacit, to the racial order, to white supremacy, what could be called Whiteness. To the extent that those phenotypically/genealogically/culturally categorized as white fail to live up to the civic and political responsibilities of Whiteness, they are in dereliction of their duties as citizens. From the inception, then, race is in no way an ‘afterthought’, a ‘deviation’ from ostensibly raceless Western ideals, but rather a central shaping constituent of those ideals.”

61 Perspectiva semelhante é encontrada em Baum, 2006, pp. 63-64.

62 Ver Mills, 1999, pp. 67-70. Sobre o pensamento racial exposto por Kant e “esquecido” pela academia, ver:

Eze, 1997. Interessante também, nesse sentido, é o trabalho de Losurdo, 2010, no qual o pensador italiano demonstra o que ele chama de “contra-história do liberalismo”. Em toda a obra, vê-se que os ideais de liberdade e igualdade defendidos durante toda a modernidade por Locke, Mill, Tocqueville etc., tinham como pressuposto que a raça branca, de uma maneira ou de outra, era “naturalmente” superior aos negros, aos indígenas do novo mundo, aos coolies chineses e até mesmo, diz Losurdo, aos Irlandeses que eram considerados numa escala inferior da raça branca. Como ele afirma: “O padrão clássico, nos séculos XVII e XVIII, da grande cadeia do Ser torna-se aqui a grande cadeia da Cor, e isso exclui os povos exta-europeus do espaço sacro da civilização, relegando às suas margens boa parte do Ocidente.”(LOSURDO, 2010, p. 243). (“Il motivo classico, nel Sei e Settecento, della grande catena dell’Essere diviene qui la grande catena del Colore, ed esso esclude i popoli extra-europei dallo spazio sacro della civiltà, relegando ai suoi margini buona parte dell’Ocidente.”). Reconheço que existem algumas implicações que Losurdo desenvolve em seu trabalho entre a postura individual dos pensadores por ele citados e suas obras, considero essas implicações bastante problemáticas, contudo, reconheço também que seu trabalho é esclarecedor em outro sentido, como o que é citado aqui. Ver também Mann, 2005, onde o estudioso discute os problemas da relação etnia e poder, nas democracias contemporâneas e Baum, 2006.

A pressuposição que orienta esse capítulo é que a questão racial está implicada sempre que, na tradição da filosofia ocidental, tratou-se acerca do conceito de ser humano e, de maneira mais ou menos aguda, tem influenciado na própria concepção de direitos e deveres, bem como na de cidadania plena em nossas sociedades. Para que se possa fazer uma análise desse problema é importante que algumas questões sejam respondidas, de modo que fique claro qual é exatamente a problemática apontada e as possíveis soluções que posso apresentar. Ou seja, deve estar claro o que aqui entendo pelo conceito de raça e quais são as questões normativas que envolvem a discussão sobre identidade racial.

Entretanto, antes de tudo, cabe salientar que proponho a hipótese que se pense um conceito mais alargado de humanidade, na qual o tipo paradigmático não seja erigido como termo classificador fixo, senão, que possam estar inferidos no conceito todos aqueles que vivem nas coletividades e que fazem reivindicações de pertença plena a elas. A hipótese proposta, portanto, é que quando os conceitos são erigidos a partir de um paradigma, que descreve as condições necessárias e suficientes para instanciar as características que são descritas no conceito – e que dão sentido a ele – todos aqueles que não correspondem à descrição são colocados em segundo plano. A solução proposta é que não haja uma descrição fixa de características, senão, que o conceito possa abarcar as diversas singularidades que se apresentam no contexto social. Daí que a questão da raça não faria mais sentido, porque não há uma hierarquia de valores.