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4 AS LIBERDADES POSSÍVEIS: PROPOSIÇÃO DE CONVERGÊNCIA

4.1 Problemas ideológicos para a construção do argumento

Os discursos no meio jurídico tendem a uma pretensão de neutralidade ideológica, usualmente por força da defesa da cientificidade ou tecnicalidade77 tão

positivamente valorizadas ao longo da modernidade78. Isso se constitui um problema,

primeiro porque muitas vezes se dá de forma absolutamente não científica; segundo, porque certos objetos não podem ser tomados como se neutros fossem.

As relações que se estabelecem entre Estado, direito, sociedade e indivíduo (ou pessoa) não se dão, não se compreendem e não se comportam de forma neutra. As próprias concepções desses objetos não são neutras, porque se tratam de objetos culturais, afetados em sua própria conceituação pelas ideologias79

e pelas escolhas valorativas, que lhes atribuem sentido; e, também, afetados pelas escolhas políticas que privilegiam certos elementos axiológicos ou ideais.

Em verdade, a própria ciência é também uma atividade do meio cultural, é um processo de conhecimento que repetidamente se refaz, inclusive, tanto enquanto conceito quanto enquanto procedimento. Marques Neto (2001, p. 58) diz que o conhecimento científico se faz cultural e subjetivamente, também, pois “todo trabalho científico decorre de um processo de escolha, em que o pesquisador considera certos aspectos da realidade mais importantes do que outros”.

Sendo o sujeito-cientista condicionado, ele próprio, por fatores de ordem ideológica, o que se evidencia nas escolhas temáticas, na formulação dos problemas e em outras etapas da pesquisa, ainda assim deve buscar estabelecer e denotar um posicionamento crítico (MARQUES NETO, 2001, p. 60) que lhe permita um mínimo distanciamento para proceder à argumentação que pretende delinear ao longo da exposição dos resultados de sua pesquisa.

77 Significativo notar que a ciência hoje rompeu com alguns de seus elementos antes tão

caracterizadores. “A epistemologia contemporânea não mais considera como características do conhecimento a objetividade, a neutralidade, a clareza e a certeza. De fato, hoje se entende que a ciência é essencialmente provisória, composta de teorias e enunciados considerados verdadeiros até que se demonstre o contrário” (MACHADO SEGUNDO, 2008, p. 14).

78 “Para o positivismo, as teorias científicas não contêm, quer explícita, quer implicitamente, qualquer

traço de ideologia. (...) o positivismo, ao contrário do que supõem seus seguidores, é uma doutrina impregnada de juízos de valor e de forte carga ideológica que se traduz na crença de que a ciência é o único caminho eficaz para a solução dos problemas humanos” (MARQUES NETO, 2001, p. 56-57).

79 “A idéia de ‘ideologia’ é inseparável da idéia de poder e de dominação. É uma parte não destacável

Neste trabalho, além das questões de valoração das escolhas e objetos tomados, será necessário reconhecer que há no objeto (discurso da reconstrução do direito privado) uma carga ideológica, que critica a ideologia dominante oposta, e que se tornou dominante, ou ocupou um espaço de dominação bastante relevante, justamente por se apresentar como uma superação de ideias, sem dizer que se trata, também, de um corpo de ideias, igualmente fadado a ser superado num futuro eventual, seja por gradual e linear modificação discursiva, seja por, como querem alguns autores, por uma mudança disruptiva e paradigmática das ciências sociais.

Na política, a Modernidade se identifica com os valores de liberdade, igualdade, solidariedade e democracia, em torno dos quais foi erigido o Estado Moderno. As duas grandes ideologias que dividiram o mundo no século XX, liberalismo e socialismo, realizaram leituras diferentes destes mesmos valores, mas deles não se afastaram. São ambas, portanto, essencialmente modernas. (SARMENTO, 2006, p. 37).

A consciência da composição ideológica do objeto de estudo (discurso de reconstrução do direito privado), porém, não permite uma completa e indiscutível separação de seus elementos nem permite uma proposição argumentativa (discurso que se propõe a modificar a concepção limitada de autonomia privada, para reconhecer seu caráter fundamental) inteiramente pragmática e não valorativa.

Ainda, há uma impossibilidade ideológica de tratar de superação de binômios, quando os binômios constituem o foco das valorações ideológicas, uma vez que cada discurso pretende superar a dualidade com uma proposição de dominação de um elemento pelo outro, que lhe é diametralmente oposto.

Esse tipo de proposição faz permanecer viva a dualidade, o binômio, permanecendo a disputa sobre quem restará triunfante numa relação dialética de tese e antítese que somente formula sínteses pobres, pois não consegue sair do discurso de colonização de um pelo outro.

A convergência que se propõe, portanto, não é – nem poderia ser – de todo universal ou consensual. É plenamente possível que seja insatisfatória para um certo corpo de ideias diverso do que se apresentou nesse trabalho. O que se veio a buscar, por ora, foi o distanciamento possível das ideologias globalizantes, ainda que a partir de elementos delas extraídos, para utilizá-los de outro modo na formulação argumentativa pretendida.

Esse distanciamento se promove também em função de uma situação contemporânea de crise ou fadiga desses pensamentos ideológicos, que não mais satisfazem nem respondem os problemas que se apresentam na realidade, aos quais somente apresentam proposições ingênuas, dependentes de uma aplicação condicionada a ambientes herméticos, onde haja um triunfo total e completo de uma ideologia por outra.

Entretanto, nenhum distanciamento se dá nem mesmo nos termos delineados inicialmente pelo argumentador, até porque há discussões que não passam sem serem influenciadas por algum conjunto de ideias, senão por um, mas pelo menos pelo que vários conjuntos de ideias conseguiram estabelecer e firmar como legado para o debate democrático.

Também é útil ressaltar que não há paradigmas ideológicos propriamente ditos. Sarmento (2006, p. 4-5), faz essa consideração, indicando que mesmo quando utiliza a terminologia “paradigma” liberal, social e pós-social, não está a dizer pela existência de rupturas revolucionárias, mas de “evoluções gradualistas”, inspiradas na conhecida trajetória histórica dos direitos fundamentais na modernidade, dividida em duas fases, uma de Estado Liberal e outra de Estado Social.

A ideia de que a transição de uma época social para outra poderia ocorrer não intencionalmente e sem influência política, extrapolando todos os fóruns das decisões políticas, as linhas de conflito e as controvérsias partidárias, contradiz o autoentendimento democrático desta sociedade, da mesma forma que contradiz as convicções fundamentais de sua sociologia. (BECK, 2012, p. 14).

Dizer que a liberdade é fundamento do direito não significa dizer que tudo deve ser conservado conforme estava. Também não pode implicar na aceitação do chamado ideário liberal promotor das codificações oitocentistas. Liberdade não é, e não deve ser encarada como, o oposto de igualdade material.

A defesa do Estado como mediador das relações privadas, para dar às pessoas condições de igualdade material, não pode passar silente quanto ao papel do Estado também como promotor de desigualdades não isonômicas. Tampouco pode criar uma abstração conceitual de Estado que o torne imune ao poder econômico, político e social que o contorna ou até mesmo domina.