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2 CONTRIBUIÇÕES DE AUGUSTO BOAL E PAULO

2.3 Do espect-ator ao ator: repensando limites e possibilidades

2.4.2 Problematização

Uma educação problematizadora, focada na relação dialógica entre professor e aluno é a premissa de Paulo Freire, na sua busca pela construção do processo de humanização dos indivíduos. Esta reconhece os seres humanos como “seres que estão sendo, como seres inacabados, inconclusos em e com uma realidade de que, sendo histórica também, é igualmente inacabada” (Freire, 2014, p. 101-102). Por isso a relação entre aprender e ensinar deve acontecer constantemente através da práxis: “Para ser tem que estar sendo” (FREIRE, 2014, p.102).

O norte do caminhar na educação estaria em construir o melhor caminho, já que um futuro pré-determinado é sempre estacionário, reacionário e, portanto, não histórico, por não prever movimentos. Através de um processo problematizador o ponto de partida é sempre o próprio sujeito, a sua relação com o mundo e com a história passa a ser dinâmica e inconclusa. Freire considera que “a realidade não pode ser modificada, a não ser quando o homem descobre que é modificável e que ele pode fazê-lo” (Freire, 2005, p. 46) e por isso o futuro pode surgir como potencialmente revolucionário.

Na esteira da necessidade de localizar mecanismos eficazes para a construção de uma educação problematizadora, está a necessidade de, enquanto educador, perceber-se educando do seu educando. A importância de tal prática iria muito além de um discurso voltado para uma simples humildade ou prática socrática. Passa pela compreensão de que a realidade onde ambos estão inseridos precisaria ser reinterpretada conjuntamente, “permitindo que educador e educandos reflitam sobre tal situação em suas próprias re-admirações e na re-admiração dos outros; aprendendo a ler o mundo e expressar suas angústias, paixões, aflições, questões em palavras” (PARANHOS, 2009, p.28).

A educação que não contribui para que o indivíduo problematize a sua existência em relação à sociedade, acaba passando à margem das condições de opressão existentes, e intencionalmente ou não, moldam os indivíduos para que vivam verdades que não ajudaram a construir e que nem mesmo puderam questionar. A esta prática educacional, Freire dá o nome de educação bancária10.

Sua principal consequência é impedir que o sujeito seja agente da própria existência, tornando-se um mero espectador, que nem compreende tal condição:

A existência, porque humana, não pode ser muda, silenciosa, nem tampouco pode nutrir-se de falsas palavras, mas de palavras verdadeiras, com que os homens transformam o mundo. Existir, humanamente, é pronunciar o mundo, é modificá- lo. O mundo pronunciado, por sua vez, se volta problematizado aos sujeitos pronunciantes, a exigir deles novos pronunciar.

Não é no silêncio que os homens se fazem, mas na palavra, no trabalho, na ação-reflexão (FREIRE, 2014, p. 108, grifo do autor).

10 Paulo Freire considera que educação bancária é aquela pautada na mera

transmissão de informações, que são depositadas no aluno. E nela: a) o educador é o que educa; os educandos, os que são educados; b) o educador é o que sabe; os educandos, os que não sabem; c) o educador é o que pensa; os educandos, os pensados;

d) o educador é o que diz a palavra; os educandos, os que a escutam docilmente;

e) o educador é o que disciplina; os educandos, os disciplinados;

f) o educador é o que opta e prescreve sua opção; os educandos, os que seguem a prescrição;

g) o educador é o que atua; os educandos, os que têm a ilusão de que atuam, na atuação do educador

h) o educador escolhe o conteúdo programático; os educandos, jamais ouvidos nessa escolha, se acomodam a ela;

i) o educador identifica a autoridade do saber com sua autoridade funcional, que opõe antagonicamente à liberdade dos educandos; estes devem adaptar- se às determinações daquele;

j) o educador, finalmente, é o sujeito do processo; os educandos, meros objetos (FREIRE, 2014, p. 82-83).

Conforme já discutimos, “os homens […] porque são consciência de si e, assim, consciência do mundo, porque são um ‘corpo consciente’, vivem uma relação dialética entre os condicionamentos e sua liberdade” (Freire, 2014, p.125). Essa relação do sujeito com ele mesmo e com o mundo torna a elaboração do seu olhar crítico uma das tarefas mais difíceis do processo educacional em parte, pois as práticas narrativas em sala de aula colocam o professor como sujeito da ação. Nesse fazer, o peso daquilo que é tratado encontra-se nas palavras e não na construção das formas, na análise das estruturas por onde essas formas possam existir. Nessa lógica, ao aluno caberia acumular aquelas palavras, sem que a criticidade seja de fato construída por ele, mas torna-se mais uma das tantas sentenças que precisam ser ordenadas de alguma forma que façam sentido aos olhos e ouvidos do professor.

Quando buscamos práticas voltadas ao ensino, Freire traz uma interessante contribuição quando nos convida a elaborar um pensar sobre educação em que se tornam indissociáveis a ação e a reflexão. Diz-nos o educador que a palavra sem ação é inautêntica, sob as quais o mundo permanece o mesmo, pois elas não têm compromisso com a transformação.

Sem dialogar com o sujeito, a educação formal passa à margem de suas intenções. Compõe-se como um emaranhado de palavras sem um sentido passível de ser internalizado pelo indivíduo, já que este não participa do processo de compreensão de sua importância e elaboração dentro da sua realidade histórica.

Segundo Freire (2014), palavra sem ação e reflexão é oca, ação sem palavra é mero ativismo. Em ambos casos se produzem formas inautênticas de existir. É fundamental perceber que não se pode prescrever aos sujeitos palavras transformadoras, mas propor que a transformação parta da existência do diálogo.

Por isso, a práxis, esse pronunciar, nunca é para alguém. Não pode ser um privilégio, um ato feito para, mas por indivíduos. Assim, o primeiro grande movimento na educação é o de oportunizar o diálogo, o encontro daqueles que querem dizer e fazer. É o ponto de partida para quebrar as amarras desumanizantes que encarceram indivíduos e fragmentam a sociedade.

Educar implica a profusão de conhecimentos que estão presentes no seu fazer: o conhecimento elaborado pelo processo científico - que se liga a elementos culturais, políticos, presentes no currículo; que recebe o olhar individual de cada professor - a partir das estratégias estabelecidas e da sua interpretação e seleção; mas que também deve dar o devido

mérito ao conhecimento prévio construído pelo estudante, sua forma particular de enxergar o mundo e mesmo a importância que dá ao processo proposto pela escola. Sua visão torna-se um filtro diante daquele conhecimento apresentado, que foi criado e adaptado.

Por isso “a educação autêntica não se faz de A para B ou de A sobre B, mas de A com B, mediatizados pelo mundo” (FREIRE, 2014, p.116). Mundo este que precisa causar espanto, que pode impressionar que causa dúvidas e anseios e cobra perguntas – mais do que respostas.