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1 A CONSTITUIÇÃO DA COMUNIDADE ESCRAVA

2.1 Procedência e demografia da comunidade escrava

Nesta seção analisaremos os escravos de nossa amostragem a partir de suas origens, mostrando o grande número de crioulos de um lado e, de outro, o pequeno grupo de africanos. Além disso, faremos uma análise demográfica da comunidade escrava observada a partir dos inventários utilizados para este trabalho.

A historiografia sobre a escravidão nos Campos Gerais já demonstrou que a grande maioria dos cativos da região, no início do século XIX, era crioula, ou seja, nascida no Brasil. A documentação utilizada pelos pesquisadores para chegar a essa conclusão são basicamente as Listas Nominativas de Habitantes, também utilizadas neste trabalho. Para realizar análises sobre a procedência dos escravos, esse tipo de documentação é bastante rica uma vez que a naturalidade era um item obrigatório a ser preenchido, tanto dos cativos como dos senhores e dos demais membros da família; mas, mesmo com a obrigatoriedade, muitas vezes essa informação não aparece.

Com os dados sobre escravos e senhores extraídos dos inventários foi possível, portanto, realizar o cruzamento com as informações das Listas Nominativas, que trazem o provável local de nascimento do escravo, ou seja, se era de Castro, de Minas Gerais, de Benguela, de Angola, ajudando-nos a definir a origem de cada um dos cativos de nossa amostra.

Antes de partimos para análises mais detalhadas, apresentaremos alguns números encontrados em nossa documentação. Como já foi informado no primeiro capítulo, o número total de escravos é de 314 pessoas. Para 299 delas conseguimos obter dados sobre o sexo e para 255 delas sobre a idade90. Com relação à procedência, através dos inventários obtivemos informações para 206 cativos, mas, a partir de um cruzamento com os dados encontrados nas Listas Nominativas de Habitantes, aumentamos esse número para 262 indivíduos. Sendo assim, temos para nossa amostra 52 cativos com a origem indefinida, 46 africanos e 216 crioulos, sendo que para esse último número foram acrescentadas 22 crianças com oito anos ou menos que não tiveram sua origem informada, mas que, provavelmente, eram nascidas no Brasil, devido sua pouca idade.

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Há quinze escravos pertencentes a Francisco Xavier da Silva que constam em seu inventário como residentes em Sorocaba e a única informação que temos é que eram “quinze escravos novos”, não existindo referência ao sexo.

Independentemente dos 52 escravos cuja origem é ignorada, os dados de nossa amostra corroboram o que a historiografia já vinha demonstrando; a maioria era, sem dúvida, constituída por crioulos. Esses últimos representam 82,4% dos escravos para os quais identificamos a origem, sendo que essa percentagem certamente aumentaria se soubéssemos a procedência dos outros 52.

Horácio Gutiérrez, analisando a Lista Nominativa de Habitantes de 1804 para Castro, encontrou 891 crioulos e 148 africanos, o que percentualmente significa 85,7% e 14,2%, respectivamente91. A percentagem de africanos está próxima da encontrada para nossa amostra: 17,6%, também levando em conta apenas os cativos que encontramos informações quanto à origem. Se esta pesquisa não revelou uma alteração do quadro já proposto pela historiografia, não se pode, por outro lado, deixar de se destacar certas particularidades que marcaram a minoria de africanos.

Em artigo recente, Carlos Lima já chamou atenção para o problema decorrente da existência de escravos africanos em Castro92. O autor alerta para a necessidade de se estudar a posse de escravos após a proibição do tráfico, em 1831. Através de Listas Nominativas de Habitantes datadas entre 1824 e 1835, ele acompanha o crescimento da comunidade escrava de Castro, dando especial atenção aos africanos. O que ele percebeu foi um aumento no número destes últimos em todas as faixas de tamanho das unidades escravistas locais, comparando 1824 e 183593. Segundo o autor, a proibição do tráfico em 1831 fez com que aumentasse a oferta de africanos, o que facilitou a compra destes últimos também para os senhores de Castro94. Além disso, os escravos vindos da África eram mais baratos do que os crioulos sendo que, a partir de 1830, as mulheres africanas eram as preferidas entre os senhores castrenses, o que demonstra que a reprodução endógena era um de seus projetos.

O aumento na taxa de africanidade de Castro observada por Lima a partir de finais da década de 1820 pode ser notada em nosso corpo documental. Contudo, deve-se alertar que, nesse período, 30 dos 46 africanos pertenciam a um único senhor, Francisco Xavier da Silva. Esse proprietário se diferencia bastante dos demais inventariados e fazia parte de uma parcela menor de fazendeiros que tinham condições de adquirir um maior número de escravos, inclusive africanos. Como já foi dito no primeiro capítulo, Xavier da Silva

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GUTIÉRREZ, H. Crioulos e africanos...p. 170. 92

LIMA, C. A. M. Op. cit. 93

Ibidem, p. 6. 94

Sobre o aumento da oferta de africanos após a proibição do tráfico em 1831 ver: RODRIGUES, J. O

adquiriu a maioria deles entre 1825 e 1829 e, se levarmos em conta a consideração feita por Lima de que estes estavam com preços menores do que o dos crioulos quando da aproximação da proibição do tráfico, é bem provável que esse senhor os tenha adquirido justamente por este motivo, isto é, o menor preço.

Além de Xavier da Silva, outros nove proprietários possuíam africanos em suas propriedades, mas, nenhum com um número e uma participação tão expressiva quanto a daquele senhor. Ademais, 12 dos 16 africanos que pertenciam a estes nove senhores, tinham mais de 40 anos de idade, enquanto que entre os 30 pertencentes a Xavier da Silva apenas dois tinham mais de 50 anos de idade, o restante estava na faixa dos 20 anos, indicando que haviam sido comprados recentemente.

Tomando a comunidade escrava como um todo, sem distinção por procedência, mas apenas por faixa-etária, temos a seguinte pirâmide etária:

Figura 1 – Pirâmide etária da população escrava da amostra. Castro, 1800-1830.

Fonte: Inventários post-mortem de Castro, 1800-1830. Vara cível de Castro.

A larga base da pirâmide sugere um alto índice de natalidade entre os escravos, com a predominância de crianças com idade entre zero e nove anos. Era uma população propícia a gerar filhos uma vez que há também um número significativo de pessoas em idade fértil, entre 20 e 49 anos. Se levarmos em conta os cativos com 15 a 19 anos, que também já poderiam gerar filhos, essa parcela aumenta ainda mais.

Outra constatação que a pirâmide deixa clara é o equilíbrio entre os sexos, em praticamente todas as faixas-etárias, o que também facilitaria a reprodução natural. Considerando os escravos para os quais sabemos o sexo, temos uma ligeira predominância de homens, 156 pessoas do sexo masculino contra 143 mulheres, diferença mínima, que

permite uma comparação desta comunidade escrava com uma comunidade de homens livres, bastante estável demograficamente.

A pirâmide etária exposta acima é reflexo de uma comunidade escrava que vinha se reproduzindo internamente há um bom tempo e que por isso conseguiu esta estabilidade na população. E a reprodução natural interna à comunidade cativa também contribuiu para a “crioulização”, uma vez que o número de pessoas dessa condição nascidos na própria vila de Castro era bem maior do que o número de africanos ali chegados, forçando estes últimos a se adaptarem a certas regras e costumes já estabelecidas pelos crioulos. Vale lembrar também que os africanos acabavam escolhendo companheiras ou companheiros crioulos, já que estes apresentavam número bem maior, o que facilitava esse tipo de relacionamento exogâmico, como demonstraremos a seguir. Destas uniões resultavam filhos nascidos no Brasil, ou seja, mais crioulos para uma comunidade já predominantemente crioula.

Nas duas próximas seções foram feitas análises do grupo de crioulos e de africanos separadamente, para que certas questões que são peculiares a um determinado grupo pudessem ser investigadas em maiores detalhes. Veremos que as análises demográficas de cada um dos grupos revelam perfis populacionais bastante diferentes.