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2 O PROCESSO DE TRANSIÇÃO SUL-AFRICANO: DA

2.3 O PROCESSO DE DESCOLONIZAÇÃO DA ÁFRICA

A dominação europeia duraria até a Primeira Guerra Mundial, quando iniciava uma crise agravada na década de 1960. De acordo com Letícia Bicalho Canêdo265:

A corrida dos burgueses europeus – ingleses, franceses, holandeses e belgas – para adquirir colônias e formar grandes impérios coloniais teve início ao longo do século XIX. Na véspera da Primeira Grande Guerra (1914), o mundo estava, em sua quase totalidade, dominado, animado e

262 BRUNSCHWIG, 2013. 263 M`BOKOLO, 2009. 264 BOAHEN, 2010. p. 49. 265 CANÊDO, 1985. p. 5.

organizado pela Europa. No entanto, 30 anos depois, no fim da Segunda Guerra, já se podia

escutar o sopro ardente dos continentes

colonizados varrendo os dominadores e forçando a entrada no palco das relações internacionais daqueles que antes, como colônias, só figuravam no cenário como objetos. No final da década de 60, centenas de milhões de seres humanos, como resultado de uma ação coletiva e determinada de mudar o sistema de dominação, já haviam se tornado atores no processo de decisão de poder. E a história das relações internacionais passou a ser

influenciada pela emancipação dos povos

colonizados266.

A luta pela independência da dominação europeia fez surgir um novo sujeito histórico no cenário político: o Estado Nacional. De acordo com Canêdo267, “[...] resposta radical à colonização, forma de se atingir a identidade nacional (que é o conceito comum da tradição, da religião e da cultura), o Estado Nacional hoje se tornou uma questão”.

Contribuiu também para o processo de descolonização africana o fato das potências europeias terem saído em muitos casos enfraquecidas da Segunda Guerra Mundial268: a França foi derrotada pelos alemães, quebrando seu estigma de invencibilidade imperial e a Grã-Bretanha terminou a guerra empobrecida e esgotada, perdendo seu interesse em conservar um vasto império. De acordo com Mazrui e Wondji, “[...] cada qual à sua maneira, as novas superpotências iniciaram uma pressão junto aos primeiros colonizadores, os europeus, com o intuito de

266

A esse movimento de surgimento, ou ressurgimento, dos povos que constituíam os Estados antes da dominação europeia costuma-se dar o nome de descolonização. Ou seja, o fim dos impérios coloniais europeus e a (re) ascensão dos povos africanos (OLIVER, 1980). Porém, o processo de descolonização não é tão simples como o de colonização, nem o seu contrário, é algo muito mais profundo e enraizado, de modo que fica impossível separar a colonização da descolonização.

267

CANÊDO, op. cit., loc. cit.

268

Aqui cabe uma pertinente distinção sobre a primeira onda de descolonização vivenciada no mundo. O primeiro movimento de descolonização ocorreu no século dezoito na América. Este foi realizado pela própria população advinda da Europa e busca autonomia mercantil para a colônia. Já a descolonização do século vinte foi promovida pelos povos autóctones, os quais já estavam fixados naqueles territórios há milênios. Eles buscam enaltecer a cultura, as tradições e as crenças suprimidas pelos europeus (Ibidem).

conduzi-los a desmantelar os seus impérios”269. Isso porque as novas superpotências, isto é, os Estados Unidos e a União Soviética, possuíam seus próprios objetivos imperialistas para o pós-guerra270,271.

As próprias razões da Segunda Guerra Mundial possuíam reflexo e serviam de fundamento para a descolonização: a luta contra a tirania. Isso, com a organização dos africanos em oposição ao colonialismo e os resgaste de algumas práticas, como a guerrilha, marcaram o processo de independência dos países da África272.

De acordo com Muanamosi Matumona273:

As aventuras europeias em África não deixaram este continente e os seus povos intactos, pois, estes contactos [sic] tiveram um impacto significativo, tendo alterado profundamente a filosofia, a organização social, a religiosidade e a identidade do africano. Até hoje, as consequências deste encontro bem salientes. Entre estes factos [sic] protagonizados pelos europeus no espaço africano, destaca-se o colonialismo [...].

Ou seja, o colonialismo forçou o africano a ter uma ideia sui generis sobre a sua nacionalidade e a sua cultura negro-africana. A implementação de ideais europeus suprimiu o mundo tradicional africano acarretando confrontos e consequências perceptíveis na atualidade. Por mais que se tivesse o movimento de descolonização e combate à tirania, o colonialismo ainda desafiava o estabelecimento de

269

MAZRUI, Ali A.; WONDJI, Cristophe. (ed.). História Geral da África,

VIII: África desde 1935. Brasília: UNESCO, 2010. p. 133. 270

M`BOKOLO, 2009.

271

Outro fator que contribuiu para o processo de descolonização do mundo foi a fundação da ONU, em 1945. Nas palavras de Mazrui e Wondji (Op. cit., loc. cit.): “À medida que a organização internacional se tornava mais autenticamente representativa de toda a humanidade, o colonialismo perdia pouco a pouco a sua legitimidade. Praticamente cada um dos Estados que se tornaram membros das Nações Unidas após a independência da Índia veio trazer a sua voz junto àquelas que protestavam contra os velhos sistemas imperiais. O Conselho Tutelar da ONU tornou-se, assim, um dos principais grupos de pressão contra o colonialismo em geral”.

272

MWEWA, Muleka. África e suas diásporas: olhares interdisciplinares. São Leopoldo: Nova Harmonia, 2008.

273

determinadas concepções, sendo a mais relevante a ideia de nação e reconciliação274.

Nesta senda, Ramón Grosfoguel275 salienta que o mundo, em especial a África, não foi completamente descolonizado, pois limitou a independência política e jurídica dos países, sem haver a libertação dos ideais de superioridade raciais implementados pelos colonizadores. Assim, faz-se necessário uma segunda descolonização que se aproxime da decolonialidade, abordando a heterarquia das multiplicidades raciais, étnicas, sexuais, epistêmicas, econômicas e de gênero que foram excluídas da primeira tentativa de descolonização.

Boaventura de Souza Santos corrobora com a obra de Grosfoguel e evidencia que, para haver a decolonialização, é necessário não só descolonizar o país, independê-lo política e juridicamente, mas vai além disso: tem que existir a emancipação dos campos não materiais, do pensamento dos colonizadores, para se romper com a relação de dominação colonial276.

Anibal Quijano277 elucida a distinção entre colonialidade e colonialismo:

A colonialidade é um conceito diferente, ainda que vinculado ao conceito de colonialismo. Este último se refere estritamente a uma estrutura de dominação e exploração, onde o controle da autoridade política, dos recursos de produção e trabalho de uma determinada população é realizado por sujeitos com identidade diferente e cuja sede também estão em outra jurisdição

territorial. Mas, nem sempre, nem

necessariamente, implica relações racistas de

274

MATUMONA.

275

GROSFOGUEL, Ramón. Descolonizando Los Universalismos

Occidentales: El Pluri-Versalismo Transmoderno Decolonial Desde Aimé

Césaire Hasta Los Zapatistas. In: CASTRO-GÓMEZ, Santiago;

GROSFOGUEL, Ramón (Ed.). El giro decolonial: Reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. 21. ed. Bogotá: Siglo del Hombre Editores, 2007, p. 63-78.

276

SANTOS, Boaventura de Souza. Refundación del Estado en América

Latina – Perspectivas desde una epistemología del Sur. 2010a. 277

QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del poder e clasificación social. In: CASTRO-GÓMEZ, Santiago; GROSFOGUEL, Ramón (ed.). El giro

decolonial: Reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo

poder. O colonialismo é, obviamente, mais antigo, embora nos últimos 500 anos a colonialidade provou[-se] ser mais profunda e duradoura.

Todavia, a colonialidade foi certamente

engendrada dentro do colonialismo, e, além disso,

sem ele não teria sido imposta na

intersubjetividade do mundo de modo tão enraizado e prolongado.278

Consubstancia os pensamentos expostos os ensinamentos de Walter Mignolo279, quem enfatiza que a descolonização tem que abarcar o nível imaterial, visto que, para se romper com a colonialidade, tem que se eliminar quaisquer vestígios da colonialidade do poder. Desta forma, a colonização e a descolonização da África ocorreram em um contexto conflituoso em muitos casos. Porém, como será abordado a seguir, o contexto sul-africano foi muito peculiar, necessitando uma análise mais detalhada.

2.4 A ÁFRICA DO SUL – NOÇÕES HISTÓRICAS, COLONIZAÇÃO,