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1. INTRODUÇÃO

2.7. Processo judicial digital

2.7.1. Processo judicial: instrumento para resolução de conflitos

As relações humanas sempre foram marcadas por conflitos das mais diversas ordens. O conflito geralmente se manifesta no momento em que o interesse de duas ou mais pessoas por um mesmo objeto (seja um bem, ou um determinado direito) torna-se inconciliável. Fatalmente, uma das partes envolvidas na disputa não poderá satisfazer a sua pretensão em relação ao objeto, o que gerará insatisfação tanto para o próprio indivíduo, quanto para a sociedade. Isso é inevitável, posto que enquanto os bens, direitos e liberdades são limitados, as pretensões humanas são ilimitadas.

Nessas circunstâncias, ganha importância o princípio latino ubi societas ibi jus – não há sociedade sem Direito. O convívio em sociedade depende, entre outros fatores, da imposição de um conjunto de normas e regras de conduta a toda uma comunidade. “O homem, como animal político, vê na agregação organizada uma das mais eficazes formas de solução de seus problemas. Daí a concepção de Estado.” (CORREIA, 2009, p. 43).

No entanto, o Estado nem sempre esteve presente como agente pacificador das relações humanas. No decorrer da História, as formas de resolução de conflitos passaram por vários estágios de maturação, num percurso que vai da autotutela à jurisdição.

Nas fases primitivas da civilização dos povos, inexistia um Estado suficientemente forte para superar os ímpetos individualistas dos homens e impor o direito acima da vontade dos particulares: por isso, não só inexistia um órgão estatal que, com soberania e autoridade, garantisse o cumprimento do direito, como ainda não havia sequer as leis (normas gerais e abstratas impostas pelo Estado aos particulares. [...] (DINAMARCO, 2010, p. 27)

Sem o Estado até mesmo a repressão dos atos criminosos se fazia mediante o regime de vingança privada. Os conflitos eram resolvidos basicamente por meio da autotutela (ou autodefesa). Nesse regime, um dos sujeitos simplesmente garantia a posse do bem ou o exercício do direito por meio da utilização da força, subjugando o outro,

mais fraco. Para Dinamarco (2010, p. 27) “São fundamentalmente dois os traços característicos da autotutela: a) ausência de juiz distinto das partes; b) imposição da decisão por uma das partes à outra”. Na autotutela prevalecia a relação interesse x força, em detrimento da relação interesse x razão (CLEMENTINO, 2007).

Na autocomposição – formulação posterior e um pouco mais sofisticada que a autodefesa – as partes passaram a realizar concessões na tentativa de resolver o conflito. As principais formas de autocomposição, que ainda existe residualmente no direito contemporâneo, são: desistência (quando um dos sujeitos renuncia à pretensão); submissão (o sujeito deixa de resistir à investida da outra parte); e transação (os sujeitos realizam concessões recíprocas).

Na realidade das civilizações primitivas, a autotutela e a autocomposição operavam-se exclusivamente com base na manifestação de força física, ou política dos envolvidos na contenda. Não existia lide (noção válida para os conflitos de interesse sujeitos à apreciação do Estado-Jurisdição), mas apenas conflitos, enquanto controvérsias de fundo sociológico (CORREIA, 2009). Esses dois sistemas eram claramente desvantajosos por raramente darem espaço à promoção de soluções realmente justas.

Quando pouco a pouco, os indivíduos foram se apercebendo dos males desse sistema, eles começaram a preferir, ao invés da solução parcial dos seus conflitos (parcial = por ato das próprias partes), uma solução amigável e imparcial através de árbitros, pessoas de sua confiança mútua em que as partes se louvam para que resolvam os conflitos. (DINAMARCO, 2010, p. 27)

Inicialmente essa função de árbitro foi confiada aos sacerdotes, que, reconhecidos por sua ligação com o sagrado, eram considerados pessoas mais capazes de garantir soluções adequadas aos conflitos (soluções em consonância com a vontade dos deuses). Assim, a figura do juiz surge antes mesmo da do legislador. (DINAMARCO, 2010).

Ainda na Antiguidade, os Estados ganharam força e passaram a invadir gradativamente a esfera de atuação privada. Nesse movimento, tomaram para si também a prerrogativa de ditar soluções para os conflitos. Essa atuação estatal mais incisiva já era comum em Roma, no século II aC:

Os cidadãos em conflito compareciam perante o pretor, comprometendo-se a aceitar o que viesse a ser decidido; e esse compromisso, necessário porque a mentalidade da época repudiava a ainda qualquer ingerência do Estado (ou de quem quer que fosse) nos negócios de alguém contra a vontade do interessado, recebia o nome de litiscontestatio. Em seguida, escolhiam um árbitro de sua confiança, o qual recebia do pretor o encargo de decidir a causa. O processo civil romano desenvolvia-se, assim, em dois estágios: perante o magistrado, ou pretor (in jure), e perante o árbitro, ou judex (apud judicem). (DINAMARCO, 2010, p. 28)

Esse sistema perdurou até o século II dC, quando as autoridades romanas passaram, elas mesmas, a nomear os árbitros para os conflitos, retirando a prerrogativa que antes era dos próprios cidadãos beligerantes. Nesse mesmo período surgiu a figura do legislador. Para que as partes se sujeitassem legitimamente às suas decisões, a autoridade pública passou a preestabelecer regras abstratas que servissem como critérios objetivos para os julgamentos. O objetivo era afastar a ocorrência de julgamentos subjetivos ou parciais (DINAMARCO, 2010).

No século III dC, ocorre mais uma evolução significativa: a mudança de eixo da justiça privada para a justiça pública. O Estado, já suficientemente fortalecido, passa a se impor mais veementemente perante os particulares. O pretor romano ganha poder, invade e suprime o campo de atuação dos árbitros, judex. Com isso, o Estado passa a conhecer diretamente do mérito das lides ditando decisões soberanas, resolutórias e imparciais para todos os casos. Para Dinamarco (2010, p. 29) “A atividade mediante a qual os juízes estatais examinam as pretensões e resolvem os conflitos dá-se o nome de jurisdição”.

A jurisdição é, ao mesmo tempo, um poder, uma função e uma atividade do Estado. Poder, porque é uma manifestação da capacidade de decidir e impor, imperativamente, a execução da decisão. Função, porque obriga a criação e manutenção de uma estrutura de órgãos que promovam a pacificação dos conflitos sociais mediante a aplicação do direito e observado o princípio do devido processo legal29. Atividade,

29 “A exigência de respeito ao Devidos Processo Legal (ou Princípio do Devido Processo legal) elevou-se

ao status de direito constitucionalmente assegurado, no ano de 1215, na Inglaterra, quando os nobres obrigaram o Rei João Sem-Terra a assinar a Magna Carta Inglesa, na qual se dispôs expressamente que os cidadãos ingleses seriam julgados em conformidade com a “lei da terra”. Trata-se de uma garantia que assegura o desenvolvimento processual de acordo com regras previamente estabelecidas. Portanova, entretanto alerta que a expressão per legem terrae (destaque-se que o latim era o idioma oficial dos meios cultos e intelectual e não o inglês, à época), que aparecia no art. 39 da Magna Carta consagrou a ideia do “devido Processo Legal”, contudo, esta expressão somente apareceu pela primeira vez na Quinta Emenda à Constituição americana, na primavera de 1789: “no person shall be [...] deprived of life, liberty or

pois se realiza por meio de uma série de atos praticados pelo juiz (representante do Estado). “O poder, a função e a atividade somente transparecem legitimamente através do processo devidamente estruturado (devido processo legal)” (DINAMARCO, 2010, p. 149). Em resumo, processo é o instrumento utilizado para o exercício do poder-dever de jurisdição pelo Estado.