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2. CRIME DE LESA HUMANIDADE, JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO E DEMOCRACIA: O

3.2 O STF COMO PROTAGONISTA NA MATÉRIA: O ENTENDIMENTO DA CORTE

3.2.3 Processo nº. 1.270/DF: a extradição concedida

Julgado no dia 12 de dezembro de 2017, o processo de extradição nº. 1.270/DF envolveu o pedido extradicional do Sr. Gonzalo Sanchez pelo Governo Argentino em razão da prática de “crimes de lesa-humanidade”, entre os anos de 1976 e 1983 (último período de intervenção política militar no país), época em que este mantinha vínculo com a Marinha da Argentina, atuando na Escola Mecânica da Armada. Consta o processo de quatro volumes, com 1.008 páginas ao todo.

Conforme a inicial que o extraditando cometeu crime contra a humanidade ao participar de violentas repressões aos considerados subversivos a política de governo oficial, tendo participado de ações conhecidas como o “voo da morte”, com tortura, homicídio e desaparecimento de pessoas, assim, com fundamento no artigo IV do Tratado de Extradição firmado entre o Brasil e a Argentina, promulgado pelo Decreto nº. 62.979, de 11 de julho de 1968 o Governo Argentino fez a solicitação da extradição ao Brasil. Inicialmente, o Governo Argentino solicitou a decretação da prisão preventiva requerendo, por conseguinte, a imediata detenção e extradição.

COM RELAÇÃO ÀS CAUSAS N° 14.217/03; 18.918/03 e 17.534/08 do registro neste Juizado Nacional no Criminal e Correcional Federal n° 12, a meu cargo, Secretaria n° 23, a cargo do Dr. Pablo Yadarola, AO SÓ EFEITO DE REQUERER SUA EXTRADIÇÃO, às autoridades da República Federativa do Brasil por considerá-lo "prima facie" criminalmente responsável dos crimes de imposição de tormentos cometidos em forma reiterada, privação ilegal da liberdade agravada por ter sido cometida por um funcionário público com abuso de suas funções e por ter-se cometido com violência e ameaças em forma reiterada; por imposição de tormentos com resultado de morte e por tentativa de privação ilegal da liberdade cometida por um funcionário público com abuso de suas funções; todos eles em caráter de partícipe necessário (artigos 42, 45,55,144 bis inciso1 ° e último parágrafo e 144 ter primeiro e último parágrafos do C.P. segundo o texto da lei 14.616), todos os quais concorrem materialmente entre si (em relação à causa n014.217/03); e privação ilegítima da liberdade agravada cometida com abuso de suas funções, com as agravantes correspondentes à comissão com violência ou ameaças em caráter de partícipe necessário, segundo o disposto de acordo com os artigos 144 bis, inciso 1 ° e último parágrafo, segundo texto da lei 14.616 (em relação à causa n018.918/03) e por considerá-lo "prima facie" penalmente responsável do delito de privação ilegal de liberdade agravada, por ter sido cometida por funcionário público e sem as

89 O ministro Teori Zavaski morreu em decorrência de uma queda de avião no dia 19 de janeiro de 2017. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/01/1951405-aeronautica-encerra-investigacao-sobre-morte-de-teori-resultado-sera-divulgado-dia-22.shtml. Acesso em 18 jul. 2018.

formalidades estabelecidas pela lei, em caráter de partícipe necessário, segundo o previsto pelo artigo 144 bis primeiro parágrafo com o agravante do último parágrafo que remete à aos incisos 1 e 5 do art.142 do Código Penal, segundo o texto da lei 14.616 (em relação à causa nº. 17.534/08). (STF, Ext. nº. 1270, 2017, p. 257/258)90.

Em 07 de fevereiro de 2013, a polícia federal cumpriu a ordem de prisão, recolhendo o Sr. Gonzalo Sanchez. O mesmo foi interrogado perante o juízo da 7ª vara federal criminal da seção judiciária do Rio de Janeiro/RJ, tendo negado os crimes que lhe foram imputados, informando que, desde o ano de 2003 residia no Brasil, com mulher e filhos brasileiros. A defesa técnica, por meio da Defensoria Pública, foi apresentada, manifestando-se pela improcedência do pedido, alegando a prescrição dos crimes imputados, bem como a naturalização do mesmo diante da existência de filho brasileiro, aduzindo também o excesso de prazo da prisão preventiva decretada. De outro lado, a Procuradoria-Geral da República opinou favoravelmente pelo pedido de extradição no tocante aos crimes de sequestro, informando que este crime atendia ao princípio da dupla punibilidade.

Constituído advogado, foi apresentada defesa em 26/08/2013 alegando a suspensão da prisão preventiva, bem como o decurso do prazo de cumprimento dos tipos penais atribuídos ao extraditando. O processo posto, primeiramente, na pauta da sessão da primeira turma, no dia 17 de agosto de 2015, teve o seu julgamento remarcado diante do requerimento de refúgio realizado pela Defensoria Pública. A prisão preventiva foi revogada, sendo indicado a utilização

de tornozeleira eletrônica (o alvará de soltura foi cumprido, em 06/05/2016)91. Em 26 de agosto

de 2016, o Comitê Nacional para os Refugiados – CONARE – indeferiu o pedido de extradição,

mantendo a decisão de extraditar mesmo após a interposição de recurso92. Após o desfecho do

julgamento do pedido de refúgio pelo CONARE, a suspensão do processo foi afastada.

O relator inicial do caso foi o ministro Marco Aurélio tendo, após a sessão de julgamento ficado vencido em seu voto, passando a ser o redator do acórdão e novo relator o ministro Roberto Barroso. Com base no que foi julgado no processo de Ext. nº. 1.362/DF (princípio da colegialidade) para o caso em tela ficou definido que os crimes de homicídios e tortura praticados pelo extraditando estariam prescritos, remanescendo o pedido de extradição apenas no tocante ao crime de sequestro, por ter natureza permanente.

O processo de extradição nº. 1.362/DF foi eleito como referência deste julgado, por abordar a modalidade da prescrição dos “crimes de lesa-humanidade”, no cenário jurídico

90Consta os autos processuais a tradução pública dos termos descritos a inicial.

91Conforme comunicação constate na fl. 691 do processo.

92O despacho que indeferiu o pedido de recursal foi publicado o Diário Oficial da União nº. 6, em 30 de março de 2017.

brasileiro, diante da ausência de anuência, por parte do Governo Brasileiro, à Convenção sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes Contra a Humanidade (ONU).

EMENTA: EXTRADIÇÃO. REGULARIDADE FORMAL. PRESCRITIBILIDADE

E ANISTIA DOS CRIMES COMETIDOS PELOEXTRADITANDO.

OBSERVÂNCIA DO QUE DECIDIDO PELOPLENÁRIO NA EXT 1362.

1. O requerimento da extradição formulado pelo Governo da Argentina em face de seu nacional preenche os requisitos formais do Tratado de Extradição, bem como o requisito da dupla tipicidade.

2. No julgamento da Ext 1.362, sob relatoria do Ministro Edson Fachin – cujo acórdão ainda não foi publicado –, o Supremo Tribunal Federal decidiu que os crimes contra a humanidade não são imprescritíveis, uma vez que o Brasil até hoje não subscreveu a Convenção da ONU sobre Crimes de Guerra.

3. O princípio da colegialidade impõe a observância das decisões tomadas pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, o que me leva adotar o entendimento firmado na mencionada Ext 1.362, embora tenha ficado vencido naquela ocasião. De modo que é forçoso reconhecera ocorrência de prescrição quanto aos crimes de homicídio e de tortura.

4. Por outro lado, considerado que o crime de sequestro é de natureza permanente, o que significa que a sua consumação se protrai no tempo, considera-se que sua consumação ocorre durante o tempo em que a pessoa sequestrada se encontra desaparecida, a menos, é claro, que os elementos dos autos permitam concluir que a vítima está morta. No presente caso, as vítimas continuam desaparecidas, o que afasta a ocorrência da prescrição. Precedente: Ext 1.150, Rel.ª Min.ª Cármen Lúcia. 5. O fato de possuir cônjuge brasileiro não impede o deferimento do pedido extradicional, nos termos da Súmula 421/STF.

6. No exame de delibação próprio das decisões proferidas em processos de extradição, somente é possível a análise da legalidade extrínseca do pedido, sem o ingresso no mérito da procedência da acusação, da ordem de prisão instrutória ou executória. Isso não importa violação à ampla defesa, porque a extradição é procedimento de cooperação jurídica internacional, no qual se admitem como verdadeiras as alegações feitas pelo Estado requerente. Frise-se que o exercício da ampla defesa, quanto ao mérito, será exercido no processo crime a que será submetido o extraditando e não no procedimento de extradição.

7. Embora exista dispositivo do Tratado Específico que permite a extradição por todos os crimes, ainda que apenas um deles satisfaça as exigências previstas no Tratado, limito a viabilidade de entrega apenas quanto ao crime de sequestro. Isso porque, nos procedimentos de cooperação jurídica internacional, dos quais é espécie a Extradição, sempre é possível a limitação do objeto da cooperação.

8. Extradição deferida apenas quanto ao crime de sequestro condicionada a entrega ao Estado requerente aos seguintes compromissos formais: (i) detrair da pena que permaneceu preso preventivamente no Brasil; (ii) não aplicar pena de morte ou de prisão perpétua; e (iii)observar o limite máximo de 30 (trinta) anos de pena privativa de liberdade. (STF, Ext. nº. 1270, 2017, p. 815/816).

No dia 17 de outubro de 2017, na primeira turma, houve a primeira sessão para o julgamento do processo. Inicialmente o ministro Marco Aurélio, então relator, informou que o processo já havia entrado em duas pautas anteriores, contudo, diante do pedido de refúgio e do recurso administrativo quanto a concessão do mesmo, foi retirado. Após os esclarecimentos, o ministro expôs que para os atos atribuídos ao extraditando – “delito de tortura, com causa de aumento por ter sido cometido por agente público mediante sequestro, e ao de tortura com resultado morte, descritos, respectivamente, nos artigos 1º, § 4º, incisos I e III, e 1º, § 3º, da Lei

nº 9.455/1997” (STF, Ext. 1270, 2017, p. 824) – havia o requisito da dupla tipicidade sem, contudo, haver a atribuição da dupla punibilidade. Aduzindo que, em virtude dos efeitos da Lei de Anistia, os atos cometidos pelo extraditando, não seriam punidos no Brasil, sendo a anistia “o apagamento do passado em termos de glosa e responsabilidade de quem haja claudicado na arte de proceder. Anistia é definitiva virada de página, perdão em sentido maior, desapego a paixões que nem sempre contribuem para o almejado avanço cultural. Anistia é ato abrangente

de amor93” (STF, Ext. nº. 1270, 2017, p. 824-825).

Marco Aurélio registrou ainda que o reconhecimento da imprescritibilidade dos “crimes de lesa-humanidade” é uma matéria divergente entre a Argentina e o Brasil, não conhecendo, por sua vez os termos descritos no parecer da Procuradoria, considerando que a “circunstância de haver corpos desaparecidos é insuficiente a conduzir à conclusão de que as vítimas estejam vivas, inexistindo elementos concretos a validarem essa óptica” (ibidem p. 826), pontuando que o tipo penal de sequestro, preceituado no ordenamento brasileiro (Código Penal) diverge do que viria a ser o crime de desaparecimento forçado, nos termos da Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento Forçado de Pessoas, citando mais uma vez o seu posicionamento exposto na análise da Extradição nº. 974.

Quanto a impossibilidade de extradição diante da existência de um filho brasileiro, o ministro Marco Aurélio expôs que a existência superveniente de filho em solo brasileiro, não é condição impeditiva de expulsão decorrente de fato anterior. Encerrando seu voto, o ministro ponderou que, diante da impossibilidade, no Brasil, de punir os crimes atribuídos ao extraditando, por causa dos efeitos da Lei de Anistia (Lei nº 6.683/79), o pedido extradicional deveria ser negado.

Ato contínuo, o ministro Alexandre de Moraes pediu vista do processo, adiando o seu julgamento para uma sessão futura. Por conseguinte, houve a manifestação do Defensor Público Federal, Gustavo Zortéa da Silva.

No dia 12 de dezembro de 2017, em uma nova sessão perante a primeira turma, o ministro Alexandre de Moraes ao apresentar o seu voto, concordou com os termos já descritos e defendidos pelo ministro Marco Aurélio, considerando que, quanto ao crime de desaparecimento forçado, não tipificado no Brasil a época em que os atos ocorreram, não poderia ser observado o requisito da dupla tipicidade e, com relação aos demais crimes, mesmo que ocorresse a dupla tipificação, não seria possível conhecer da dupla punibilidade diante do decurso de mais de 30 anos.

93Definição extraída do voto do ministro Marco Aurélio no julgamento do processo de Extradição nº. 974, sessão ocorrida no plenário do STF, no dia 06 de agosto de 2009.

Em seguida, o ministro Luis Roberto Barroso ao apresentar seu voto pontuou que o requisito da dupla tipicidade estaria presente no processo em tela considerando que as ações descritas pelo Governo Argentino encontravam correspondência penal no direito brasileiro.

Os crimes em razão dos quais foi requerida a extradição encontram correspondência nos art. 121 (homicídio), art. 149 (sequestro) e art. 129 (lesão corporal), todos do Código Penal. Quanto a este último, observo que, à época dos fatos, o crime de tortura não era tipificado em lei específica, de modo que as condutas narradas se amoldam ao tipo penal de lesão corporal. (STF, Ext. nº. 1270, 2017, p. 832).

Assim, no que tange ao requisito da dupla punibilidade, o ministro realizou uma análise em apartado dos crimes, pontuando que, com relação aos crimes de homicídio e tortura, ocorridos há mais de 30 anos, por terem natureza instantânea, já estariam prescritos. Todavia, no tocante ao crime de sequestro, com natureza permanente, desde que a pessoa não seja encontrada ou declarada morta, considera-se em execução. Citando a Extradição nº. 1.150, sob a relatoria da ministra Carmén Lúcia, o ministro Barroso, reconheceu a natureza permanente do crime de sequestro, aventando que o prazo prescricional iniciava-se no momento em que cessariam os efeitos permanentes do tipo, razão pela qual o crime de sequestro no processo em comento, não estava prescrito, devendo representar um motivo válido para que a extradição fosse deferida.

Quanto aos argumentos expostos pela defesa no tocante às condições pessoais do extraditando, o ministro Barroso aduziu que o fato de constituir endereço residencial fixo, trabalho e ter contraído família com mulher e filho brasileiros não representariam um óbice a concessão do pedido de extradição, nos termos da Súmula 421/STF.

Neste sentido, Barroso votou para que a extradição fosse deferida somente quanto ao crime de sequestro ficando o Estado requerente, na condição de cumprir os seguintes compromissos formais de: (a) detrair da pena o período que o extraditando permaneceu recolhido preventivamente no Brasil; (b) não aplicar pena de morte ou de prisão perpétua; e (c) observar o limite máximo de 30 (trinta) anos de pena privativa de liberdade.

Ato contínuo, a ministra Rosa Weber, votou considerando que o pedido de extradição deveria ser acatado apenas no tocante ao cometimento do crime de sequestro.

O próximo ministro a votar, Luiz Fux, destacou que a celeuma processual decorria sobre a descrição do crime de sequestro, aventando que “as vítimas respectivas encontram-se

desaparecidas até a data de hoje” (STF, Ext. nº. 1270, 2017, p.839) razão pela qual, em

conformidade com o disposto no art. 91 da Lei nº. 6.815/8094, votou pelo deferimento do pedido

94O Estatuto do Estrangeiro regido pela Lei nº 6.815, de 19 de agosto de 1980, foi revogado pela Lei nº 13.445, de 24 de maio de 2017 que instituiu a "Lei de Migração".

extradicional em decorrência do crime de sequestro, apontado com natureza permanente. Por maioria, em sessão da primeira turma do STF, os ministros deferiram o pedido de Extradição do Sr. Gonzalo Sanchez, requisitado pelo Governo Argentino, nos termos do voto proferido pelo ministro Luis Roberto Barroso, que passou a ser o redator do acórdão. Com uma análise processual bem sucinta, o acórdão foi constituído em 27 páginas.

No dia 27 de agosto de 2018, foi publicada uma decisão julgando a oposição dos Embargos de Declaração, nesta, os termos do acórdão foram mantidos. Em 14 de novembro de 2018, o Sr. Gonzalo Sanchez apresentou uma nova manifestação, com apreciação ainda pendente.

4. A ATUAÇÃO DO STF NA DEFESA DOS DIREITOS HUMANOS: DA DITADURA