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Processo Secundário e a Constituição do Eu

Para que o Eu possa advir, entra em cena o processo secundário, que é modo de funcionamento psíquico que rege o Eu.

Os produtos desse modo de funcionamento são as ideias ou representações ideativas, tornando o vivido nomeável e dizível. Para Aulagnier:

O que caracteriza o Eu é representar e se representar o existente [...] sob a forma de uma construção de ideias. Para o fazer, ele deve poder acrescentar à imagem de coisa, a imagem de palavra e investir esta última167.

Aulagnier faz uma distinção entre o processo primário e o secundário. A esse respeito, a autora entende que:

O primeiro objetivo do secundário é adequar o discurso que fala a realidade lógica do primário. O processo secundário reconhece o poder autônomo do discurso, não pode negar que ele é portador de significações [...]. O primário pressupõe o reconhecimento de um exterior, cuja presença e cuja separação não podem ser anuladas; o secundário exige o reconhecimento de um discurso portador de significações não arbitrárias, que o informa a respeito do novo postulado lógico o qual ele deverá considerar168.

A atividade dessa instância é regida pelo postulado da causalidade inteligível, isto é, compartilhada. O Eu, por meio do processo secundário, permite a produção de significações e um entendimento inteligível do que seja a realidade.

Assim, o postulado da causalidade inteligível rege o Eu, que atribui o vivido a uma causa que pode ser compartilhada no meio social. Essa causalidade inteligível não é necessariamente científica, ela é inteligível, porque é compartilhada num determinado meio. Dessa forma, o Eu é a instância responsável pela representação ideativa e pela atribuição do sentido. Assim, Violante interpreta:

167 AULAGNIER, Piera. Os destinos do prazer. Rio de Janeiro: Imago, 1985. p. 19.

168 AULAGNIER, Piera. A violência da interpretação: do pictograma ao enunciado. Tradução Maria Clara Pellegrino. Rio de Janeiro: Imago, 1979. p. 99.

68 O secundário é o modo de funcionamento psíquico do Eu ou instância enunciante. Devido à sua exigência de significação, por meio desse processo, o Eu atribuirá tudo aquilo que vive a uma causalidade inteligível. Este é o postulado que rege esta instância. [...] Os produtos desse modo de funcionamento são ideias ou representações ideativas e os enunciados169.

Aulagnier concebe o Eu como sendo antecipado, historicizado e estruturado pela linguagem. O Eu é antecipado por ser pré-investido e pré-enunciado pela libido materna de modo prevalente. É historicizado porque nasce imerso na história edipiana dos pais, isto é, o bebê nasce inserido na história edipiana dos pais, para depois formar sua própria história.

O Eu é estruturado pela linguagem, por ser uma instância que está diretamente vinculada aos discursos da mãe, do pai, e dos outros. Segundo a interpretação de Violante:

Para Aulagnier, o Eu é historicizado e estruturado pela linguagem. Historicizado porque nasce imerso na história edipiana dos pais e se constituirá em sua própria história edipiana por meio de uma dialética identificatória. É estruturado pela linguagem à medida que, mesmo antes de vir ao mundo, o bebê é pré-enunciado e pré-investido pela libido materna, de modo prevalente. Ao nascer, seu Eu vai se constituindo em um micro-meio familiar, ou seja, em um “meio psíquico ambiente” organizado pelo discurso e pelo desejo que une os pais e pelo desejo de cada um por este(a) filho(a).170

Vale ressaltar que Aulagnier apresenta diferenças entre sua noção de Eu e o ego freudiano. Em Diálogo com Piera Aulagnier, traduzido por Violante, quando Luis Hornstein a interroga sobre as diferenças apresentadas por ela, entre sua noção de Eu e o ego freudiano, a autora reconhece a influência de Lacan em relação à sua concepção, mas ressalta sua diferença com ele. Para Aulagnier, o Eu é também uma instância identificante:

Para mim, o Eu é uma instância que está diretamente vinculada à linguagem. Não há lugar na minha concepção metapsicológica para o conceito de ego-id indiferenciado. Nesse sentido, não se pode fazer uma equivalência entre a maneira como Freud se serve do conceito de ego e o que tenho definido como Eu. Define um conceito,

169 VIOLANTE, Maria Lucia Vieira. Piera Aulagnier: uma contribuição contemporânea à obra de Freud. São Paulo: Via Lettera, 2001. p. 39.

170 VIOLANTE, Maria Lucia Vieira. Piera Aulagnier: uma contribuição contemporânea à obra de Freud. São Paulo: Via Lettera, 2001. p. 43.

69 para mim fundamental, que é o Eu antecipado e não se pode falar de um ego antecipado no discurso materno. Nisto sou fiel (fiel não quer dizer que não o interprete à minha maneira) ao lugar que Lacan dá lugar ao discurso no nascimento dessa instância que chamo Eu e que se constitui desses primeiros enunciados identificantes construídos pela mãe171.

Com isso, Aulagnier discorda que o Eu esteja sempre alienado no desejo do Outro. Para a autora, o Eu tem duas dimensões: além da identificada, que está alienada ao desejo ou Outro; existe também a dimensão identificante, que é a parte agente do Eu autônomo, ou seja, é o Eu que não está condenado à palavra do Outro. Sobre esse aspecto, Violante interpreta que:

[...] à medida que o Eu é antecipado pelo desejo e pelo discurso maternos, não sendo jamais um indiferenciado do Id, o Eu não coincide com o ego freudiano, nem com o Eu lacaniano, uma vez que é constituído por duas dimensões: a identificada (provida pelo discurso materno) e a identificante (que não é produto passivo do discurso do Outro). As funções do Eu são: pensar e investir172.

Assim, para Aulagnier, como as funções do Eu são pensar e investir, a produção ideativa ocorre por meio do pensar; enquanto que a outra função do Eu, o investir, é investir libido no próprio Eu, em um outro Eu e na realidade.

De acordo com a interpretação de Violante, em A indissociabilidade entre as

dimensões psíquica e social na constituição psíquica do sujeito, a autora

compreende que, para Aulagnier, o Eu é estruturado pela linguagem porque se constitui num “micro-meio”, isto é, no meio familiar, servindo-lhe como um elo entre sua psique singular e o “meio psíquico ambiente” que o cerca. Violante interpreta:

O “micro-meio” é organizado pelo discurso e pelo desejo dos pais entre si e em relação à criança. Nesse meio familiar, Aulagnier sublinha como fatores importantes: o porta-voz, isto é, a mãe, o desejo do pai e a “linguagem fundamental”- a qual tem uma função identificatória173.

Em suma, para Aulagnier, a constituição do Eu depende da inserção do bebê

171 HORNSTEIN, Luis. Diálogo com Piera Aulagnier. In: VIOLANTE, Maria Lucia Vieira. (Org.).

Desejo e Identificação. São Paulo: Annablume, 2010. p. 63.

172 VIOLANTE, Maria Lucia Vieira. Piera Aulagnier: uma contribuição contemporânea à obra de Freud. São Paulo: Via Lettera, 2001. p. 39.

173 VIOLANTE, Maria Lucia Vieira. A indissociabilidade entre as dimensões psíquica e social na constituição psíquica do sujeito. Psicanálise Revista, São Paulo, v. 19, n. 1, 2010. p. 71.

70 em um “micro-meio” psíquico, organizado pelo discurso e pelo desejo do casal parental entre si e em relação à criança, e que deve funcionar como um elo intermediário entre a psique singular do bebê e esse meio familiar.

2.4 Os Momentos Fundamentais da dialética Identificatória na

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