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3 A CHEGADA DAS TEORIAS RACIAIS NO BRASIL

3.3 O processo de vulgarização da ciência

No século XIX, surgiu uma nomenclatura nova para uma interessante figura já existente no contexto nacional, o vulgarizador. Este tinha o papel de transformar a linguagem técnica e científica em uma linguagem acessível ao público leigo. De acordo com Moema de Rezende Vergara, “o termo ‘vulgarização científica’ designava especificamente a ação de falar de ciência para os leigos”, sendo a tradução uma das expressões da vulgarização. (VERGARA, 2008, p. 137)

Ainda segundo a autora, o termo vulgarização começou a ser utilizado, no Brasil, por volta do ano de 1870, provavelmente, oriundo de livros franceses, especialmente pela obra Astronomia popular, de Camille Flammarion (1842-1925), vulgarizador francês que se tornou bastante conhecido nacionalmente.

Retomando a análise dos conceitos propostos pelo dicionário de Caldas Aulete, observa-se o conceito de vulgarizar:

tornar notório ou mui conhecido; propagar, vulgar, divulgar; pôr ao alcance, ao conhecimento de muitos ou de todos; popularizar: Vulgarizar a ciência. ǁ Tornar comum. ǁ Abandalhar. ǁ Traduzir em vulgar. ǁ Tornar-se vulgar, tornar-se mui conhecido; popularizar-se: Esta xácara é das que menos vulgarizaram. (Garrett.). (AULETE, 1881, p. 1900)

Vulgarizar, portanto, seria tornar algo público, acessível, sinônimo de propagar, divulgar e popularizar. Apesar dos sinônimos que parecem expressar melhor a ideia para a atualidade, o termo mais utilizado no período era, de fato, vulgarização. Vale pontuar que, apesar do caráter negativo que a palavra vulgarizar carrega atualmente, a conotação “traduzir em vulgar”, para a época, não era interpretada de tal forma, referindo-se sempre às significações como “divulgar, vulgarizar, fazer público, tornar conhecido pela palavra ou por escrito”. (AULETE, 1881, p. 1900)

Desse modo, vulgarizar a ciência, no fim do século XIX, no Brasil, pode ser entendida como sua publicização, colocando-a a disposição de todos ou, pelo menos, de grande parcela da população.

Sobre a forma pela qual se procederia a vulgarização, especialmente na década de 1870, observa-se a ênfase dada aos meios escritos de divulgação. Vários jornais foram criados contendo em seus títulos ou subtítulos a palavra ciência e, na medida em que apresentavam

fatos do cotidiano, dedicavam seções a divulgações científicas, demonstrando a predileção nacional sobre o cientificismo nesse período.55

Além dos jornais, pode-se citar como outra forma de vulgarização escrita da ciência, a difusão por meio dos periódicos. Alguns destes traziam essa proposta como o foco de sua produção, como O Vulgarizador, periódico ilustrado científico-literário que se destinava, indistintamente, a todas as pessoas, na busca de um pensamento verdadeiramente brasileiro.

A Revista Brazileira foi um dos primeiros exemplares que se dedicou à promoção da vulgarização científica, contudo, ao contrário do O Vulgarizador, tinha como destinatário o público letrado e além do destaque dado à ciência, possuía forte caráter literário. (VERGARA, 2003, p. 126)

Em outra publicação da Revista Brazileira, o pesquisador Louis Couty discorre sobre a importância e a necessidade de se implantar estudos experimentais no Brasil, viabilizando o desenvolvimento do cientificismo nacional e, por conseguinte, solucionando os problemas locais. Para o autor, mostrava-se imprescindível difundir para a sociedade leiga os avanços científicos alcançados no país, principalmente, para que esta apoiasse o processo de modernização nacional. Para concretizar seu ideal, o médico propunha o enaltecimento das descobertas científicas europeias na imprensa brasileira, para que os meios de comunicação europeus também divulgassem a cientificidade local. (COUTY, 1879, p. 219)

Outro exemplo de instrumento de difusão do saber científico foi o periódico “Archivos do Museu Nacional”. (GUALTIERI, 2003, p. 58) A revista foi iniciada no ano de 1876, período no qual o Museu estava sob a responsabilidade de Ladislau Netto, teórico que acreditava que os trabalhos realizados no âmbito do Museu precisavam ser divulgados tanto no Brasil, quanto no estrangeiro, sendo o periódico um instrumento que possibilitaria que o país se inserisse na rota civilizatória, conforme se observa no Relatório Ministerial referente ao ano de 1881:

Continua-se este estabelecimento a prestar à ciência valiosos subsídios, [...] como vulgarizador de conhecimentos úteis, já por meio de sua revista trimestral, já pelos cursos noturnos em que o pessoal docente torna públicos os resultados que realiza ou expõe os princípios das ciências que professa. (BRASIL, 1882)

Apesar disso, na prática, a revista não podia ser considerada como um instrumento de vulgarização nos termos tratados no presente texto, mas sim, uma forma de divulgação

55Ildeu de Castro Moreira e Luisa Massarani analisaram o catálogo da Biblioteca Nacional e detectaram que ao

longo do século XIX foram criados aproximadamente 7000 periódicos, destes, quase 300 se relacionavam às ciências, possuíam “ciência” ou “científico” em seus títulos ou subtítulos, ou eram produzidos por instituições ou associações científicas. (MOREIRA; MASSARANI, 2002, p. 47)

científica, no qual se objetivava a difusão do saber entre os pares, principalmente, estrangeiros. (VERGARA, 2003, p. 158)

Nesse contexto, vale observar que, no período, até a imprensa que não tinha como temática específica os assuntos científicos, se dispunha a publicar temas relacionados à ciência. Como exemplo, cita-se a seção “Gazetilha”, do Jornal do Commercio, que publicava notícias ligadas a assuntos científicos, bem como enunciava as novas aquisições e as expedições científicas do Museu Nacional.

Em comentários sobre a conferência realizada pelo médico João Joaquim Pizarro no Museu Nacional, o Jornal do Commercio tratando sobre a vulgarização da ciência, afirmou que a divulgação científica representava tanto um ganho para a ciência, no que se refere à exposição das “verdades demonstradas”, quanto para o povo, já que possibilitava o aumento do seu “nível intelectual”, uma vez que não podia “[...] se entregar a estudos profundos que demandam sólidos preparos”. (CARULA, 2012, p. 58)

Observa-se, portanto, que aprioristicamente, um das principais justificativas da vulgarização científica seria, em tese, aumentar a intelectualidade do povo, mantendo a missão de fazer com que a pátria progrida. Além disso, também se identificava o papel desempenhado pela vulgarização da ciência de capilarizar o conhecimento científico àqueles que não se ocupavam profissionalmente dos estudos das ciências. Buscava-se, essencialmente, fazer o público em geral acreditar no fato de que o cientificismo seria importante para a sociedade, tendo como finalidade última o bem comum, como, por exemplo, possibilitando a melhoria da indústria nacional e, consequentemente, promover o progresso nacional. (VERGARA, 2003)

Conforme já evidenciado, a vulgarização científica tem como pressuposto a tradução, não no sentido de adequação de idioma, mas sim na transformação do discurso científico, marcado por termos, expressões e conceitos complexos, em uma linguagem simples e acessível ao público leigo5657. Contudo, Vergara ressalta também que nesse

56 Deve-se pontuar que a simplificação do conteúdo não era algo pacífico entre os autores do período, alguns

possuíam visão antagônica sobre o tema, defendendo que apesar da necessidade de se vulgarizar o conhecimento científico, a complexidade do saber não deveria ser minimizada, rechaçando a possibilidade de que nesse processo de vulgarização da ciência houvesse perda de conteúdo. Nesse sentido, observa-se passagem de artigo publicado na Revista Brazileira: “Enfim, em lugar de reduzir por meio da vulgarização os problemas científicos a seus termos mais simples, não seria preferível conservar-lhe a sua complexidade real?” (COUTY, 1879, p. 237) Para o autor, não seria necessário simplificar os conteúdos pois o leitor do periódico, e possivelmente o público frequentador dos cursos do Museu, tinha potencial intelectual suficiente para entender: “Os nossos artigos serão curtos, porque desejamos que sejam lidos; entretanto, não nos esquecendo de que escreveremos para homens instruídos, não procuraremos simplificar as questões e pô-las, conforme se diz, ao alcance de todos.” (COUTY, 1879, p. 238)

processo de tradução há relativa perda de significado do conteúdo científico, posto que não se consegue preservar de forma integral a semântica do discurso original, o que acaba dando à vulgarização científica o caráter criativo. (VERGARA, 2008, p. 139)

A autora alerta ainda que, ao contrário do que se pôde pensar inicialmente, a vulgarização científica não possuía caráter eminentemente educacional, em verdade, seu propósito, no Brasil do século XIX, era conseguir apoio da sociedade na realização de suas atividades de pesquisa, associando a ciência ao progresso para facilitar sua aceitação perante o público leigo e, com isso, conseguir prestígio social e apoio financeiro58. Confirmando tal concepção, observa-se trecho em que Couty, ao opinar favoravelmente à vulgarização científica, a definia como um tipo de propaganda e não como um instrumento educacional: “Quiseram meus amigos que eu começasse este trabalho declarando porque e como empreendemos realizar aqui a nova propaganda científica”. (COUTY, 1879, p. 215)

O conhecimento científico deveria, portanto, ser apresentado com ênfase nas suas possíveis aplicações na sociedade. Para tanto, era necessário apresentar, ao público não científico, as novidades do campo da ciência. Esse caráter utilitarista59 da ciência marcou a sociedade60 desde o início do século XVIII, e se prolongou durante todo o século XIX. Enxergar a ciência como algo útil à sociedade se relacionava também com o “despertar da preocupação com a realidade social brasileira”, uma vez que os letrados nacionais há algum tempo assimilavam os conhecimentos e as teorias da Europa, adaptando-os à realidade nacional na tentativa de promover o progresso nacional. (DIAS, 1968, p. 133)

57 Outro autor que compartilhava do pensamento de Couty era o médico Joaquim José Teixeira. Para o autor, a

vulgarização do conhecimento não poderia ser entendida para todos, pois muitas vezes a complexidade era tão grande que apenas a pequena parcela que possuía “inteligência cultivada” conseguiria compreendê-la. Em paralelo, sustentava que os assuntos mais simples deveriam ser apresentados a todos, conforme se oberva: “Sei bem que nem todos os pensamentos são para o geral do povo; pois muitos se encontram tão elevados e tão metafísicos, que só os alcança inteligência cultivada. Mas é certo que um grande número deles pode ser facilmente compreendido; e eu não vejo razão para excluir o povo do conhecimento das verdades que eles encerram. Tudo quanto tende a formar o coração na família ou na cidade, deve merecer a atenção do governo, e das pessoas que se interessam pelo progresso moral do nosso povo.” (TEIXEIRA, 1876, p. 100)

58 Ocorre que, apesar da vulgarização científica, a compreensão do púbico continuava reduzida. Para satirizar

essa condição o periódico A Bibliotheca dos Bonds editou um artigo fictício, no qual o Dr. Almondega teria sido convidado para uma exposição em uma conferência popular, ocasião onde ressaltou ser um lugar “[...] onde muito se aplaude e pouco se entende!”. Dessa forma, percebe-se que a vulgarização científica realizada era, de fato, pouco eficiente e, mesmo a elite letrada, não compreendia o conteúdo que era exposto em sua integralidade. (CARULA, 2012, p. 61)

59 Pode-se citar como exemplo a figura de José Bonifácio, que valorizava, em seus escritos, os estudos que

pudessem trazer resultados úteis à sociedade. (CARULA, 2012, p. 63)

60 Como marca do predomínio científico, a autora Maria Odila Leite da Silva Dias destaca a atração que a ciência

despertava nos estudantes formados em direito em Portugal na virada para o Oitocentos. A maioria se formava em, no mínimo, um ramo da ciência, indicando “a tendência pragmática de suas mentalidades”. (DIAS, 1968, p. 107)

Sobre referido utilitarismo, Vergara assevera que a ciência estava “comprometida com uma ampla difusão de suas descobertas; tanto para garantir o apoio do Estado, quanto para legitimar a prática científica na sociedade”. A autora afirma ainda que a exposição da utilidade do conhecimento científico, ao público leigo, seria uma forma de facilitar sua compreensão sobre os saberes e, assim, angariar seu apoio. Além disso, publicizar as aplicações práticas da ciência também funcionava como uma maneira de vincular a prática científica ao progresso do país, fazendo parte, portanto, do ofício do cientista. (VERGARA, 2003, p. 13)

Por conta de todo o exposto, o Brasil encontrava-se diante de um silogismo que consistia em: para alcançar o progresso o país precisava de pesquisas científicas; para fomentar o número de pesquisas era necessário ampliar o acesso de informações à população leiga; o público só poderia dominar tais conceitos se estivesse habilitado para tanto, o domínio da ciência pelos leigos seria possível por meio da vulgarização dos trabalhos científicos. Ou seja, somente através da vulgarização que se poderia “discutir e reconhecer os progressos” da ciência.

Os cursos, as conferências públicas e os escritos, caracterizavam-se, portanto, como formas de vulgarização científica. Contudo, esse projeto de vulgarização, da forma como foi desenvolvido, ao contrário do que se imaginava, não alcançou todos, mas tão somente uma pequena fração da população, a chamada elite letrada da sociedade. Desse modo, a vulgarização científica, nos termos observados no período, representava, em verdade, um projeto político que excluía a maior parte da população nacional e, ainda na parcela social alvo da vulgarização, algumas vezes seu objetivo não foi atingido.

Assim, pode-se concluir que a intenção dos letrados nacionais responsáveis pela vulgarização científica era difundir conhecimento científico para seus pares, a fim de comprovar a necessidade de educar e civilizar aqueles que estariam impedindo o progresso da nação, os verdadeiros bárbaros – negros, índios, brancos pobres e mulheres. Portanto, os instrumentos de vulgarização científica apresentavam projetos modernos civilizadores, mas que não atuavam de forma prática na sociedade, já que não se propunham civilizar diretamente os considerados bárbaros.