Uma primeira característica dos Códigos justinianeus é aquela relativa às suas fontes de produção.
A sistematização levada a cabo pelos juristas com relação às fontes do direito romano levou à produção de listas destas, das quais aqui chamo a atenção para aquela apresentada nas Institutas justinianeias: leis, plebiscitos, senatus-consultos, constituições do príncipe, editos dos pretores, pareceres dos juristas, costume.54As primeiras quatro fontes foram decisões toma-
das direta ou indiretamente pelo povo, produto da potestas dele;55 tam-
bém a última, o costume reconduz à vontade do povo e é diverso das primeiras na medida em que é direito não escrito.56 Os editos são expres-
uma manifestação da vontade do povo, que elege o magistrado. Expri- mem um polo diverso com relação a todas estas, um outro princípio orde- nador, os pareceres dos juristas, que se fundam na sua peritia, prudentia, da qual deriva uma auctoritas que lhes é publicamente reconhecida e que, durante o Principado, será também reconhecida pelo príncipe, que a amplia com a sua própria auctoritas.58
Atrofiando-se o edito dos pretores, restam duas fontes: as normas esta- tuídas pelo povo, com as diversas formas derivadas, e a peritia, pruden-
tia, scientia do direito; tudo aquilo produzido por elas constitui, ademais,
duas grandes massas de textos normativos: leges e iura, ao lado das quais se apresentam os costumes.
Os Códigos fundam-se nesses dois princípios, nessas duas fontes do direito escrito: a norma estatuída pelo povo, que conferiu ao imperador sua potestas,59 com base na qual Justiniano aprova com constituições a
obra dos juristas; e a obra destes últimos. Preciso que individualizo a obra dos juristas não tanto com referência aos textos que foram utilizados (o
Codex utiliza leges, isto é, constituições; os Digesta e as Institutiones uti-
lizam iura, isto é, escritos dos juristas), mas com referência aos princípios que, dos códigos como tais, produzem este novo objeto; sustentam a vigência deles.
Em contraste com uma leitura que me parece fruto de concepções que se tornaram hegemônicas somente a partir do fim do século XIX, parece- -me importante sublinhar o papel dos juristas da época de Justiniano que integram as comissões que elaboram os códigos; papel que Justiniano foi levado a reconhecer.
Se, de fato, em 529, parece prevalente, em uma constituição de Justi- niano, a perspectiva segundo a qual in praesenti o Imperador é o único
conditor legis,60 embora já se faça referência nela ao reconhecimento que,
da competência legislativa do Imperador, é elaborada por juristas antigos, qualificados veteris iuris conditores (note-se a identidade do termo: con-
dere61), parece-me certo que, na Constituição Tanta,62 na qual se elogiam
os juristas envolvidos na composição dos Digestos, pretende colocar-se em uma linha de continuidade, com o reconhecimento dado, na abertura dos próprios Digestos, aos juristas antigos veteris iuris conditores. O
fragmento de Pompônio63 e os citados parágrafos da Constituição Tanta
devem ser lidos conjuntamente.
Os juristas de Justiniano adquiriram, de fato, novamente a alta com- petência que lhes consente não somente conhecer os textos dos seus anti- gos predecessores, ensiná-los e apresentá-los no tribunal, onde deveriam ser observados, mas superar o critério proposto pela chamada lei das citações, de confronto mecânico e quantitativo entre as opiniões dos juris- tas individualizados; eles são chamados a escolher quod aequius melius constitui o resultado da comparação, sem ter relação com maioria ou minoria, com o fato de a conclusão ser aquela de um jurista antigo de maior ou menor autoridade; eles devem, evidentemente, atuar graças a sua competência.64 É novamente ativa aquela discussão entre juristas,
vivos ou do passado, que tinha caracterizado a grande jurisprudência que tinha acompanhado o desenvolver-se do direito até o século III d.C., que leva a se buscar quod aequius melius, comparação do bonum et
aequum da definição do direito já citada (recorde-se que Pompônio tinha
sublinhado que o direito não pode estar coeso solidamente se não há juristas que, diariamente, o levam adiante em busca do melius). Desse reatualizado papel dos juristas, do qual eles são os primeiros autores, é prova aquilo que na Const. Tanta se diz qualificando os juristas da comis- são como huius operis conditores: fundadores desta obra, deste código.65
Condere é termo denso de significado, a começar pela fórmula ab Urbe condita (da fundação de Roma).66 Lembrei acima que Pompônio tinha
usado fundare; condere, relacionado aos juristas, encontramos em Gaio,67
e, depois, encontramos várias vezes usado nas constituições justinia- neias.68 A tecnicidade dessa expressão não pode ser colocada de lado ou
reduzida. Essa perspectiva envolve o inteiro sistema dos três códigos, reunido na sua unidade.69
Deo autore, deo adnuente70: augere indica o “aumentar” uma obra ou
coisa ou pessoa já em si em ato ou existente; com relação ao codificar, não substitui nem modifica a natureza e a responsabilidade da obra do imperador e dos juristas; enquanto a menção à divindade confirma aquele seu papel, no vértice do sistema, ao qual fiz referência inicialmente.
2.4.2 |
Os objetivos da codificação
A justiça constitui o objetivo do direito indicado nas primeiras linhas dos Digestos.71 Para esse fim, torna certo o direito e, como agora indicado,
melhorá-lo constitui um objetivo declarado dos códigos;72 formar os juris-
tas constitui outro.73 Certeza e constante melhora do direito, finalidade
didática e formativa dos juristas emergem em momentos diversos dos acontecimentos históricos aos quais fiz menção; entrelaçam-se nos códi- gos justinianeus e determinam a sua elaboração. Assim também o aequare
libertatem, que agora se projeta em um horizonte mais vasto: da concordia ordinum àquela dos povos. A grande tensão entre as diversas partes do
império, entre parte ocidental “latina” e parte oriental “grega”, e a busca de consolidar a integração delas,74 a aspiração à incorporação dos povos
que migravam nos confins do Império ameaçando-os e a mediata renova- ção da concepção de um direito para todos os homens e todos os povos são outros três fatores que levam à codificação em idade tardo-antiga.
2.4.3 |
As características internas dos Códigos
2.4.3.1 |B
REVIDADECom relação ao muito abundante material de iura75 e de leges, os códigos
são compostos de poucos livros escritos, breves que “recolhem tudo, tendo reunido uma matéria vastíssima, tanto que resulta pobre a antiga multipli- cidade ‘de textos’ e, ao contrário, muito opulenta a nossa brevidade”.76
2.4.3.2 |
P
ALAVRAS qUE ESCULPEM A RELAÇÃO;
CONFIGURAÇÃOPRÉVIA DAS FATTISPEcIE E DOS SEUS EFEITOS
;
CONCRETUDEEssa “muito opulenta brevidade” incorpora formas expositivas diversas, linhas de raciocínio e discussões, aberturas problemáticas e normas esta- tuídas potestivamente, nas diversas formas lembradas acima de leis ou do edito, com os conexos comentários articulados; sem deixar de dar uma específica importância, quase de coroamento, às definições e às regras (D. 50, 16 e 17). Conjuntamente, deve-se dizer que a forma dos enunciados normativos desses códigos, de um lado, é portadora da herança do edito e do trabalho desenvolvido sobre ele, centrado no exame das palavras nele
escritas, que esculpem os elementos essenciais da relação; de outro lado, é portadora das casuísticas construções de fattispecie e previsões de conse- quências jurídicas guiadas por extensas relações harmônicas de um sistema aberto a colher qualquer matiz do concreto e articular-se da realidade. Os Digestos, apoiados no Código, formam o jurista e orientam a leitura do todo a partir da pré-compreensão dele, que deriva disso; com eles, consolida- -se a centralidade do método dos juristas, sinteticamente relembrado acima.
2.4.3.3 |
U
NIFICAÇÃO CONCEITUAL DE TODO O DIREITO,
COERêNCIAINTERNA DELE
,
PLURALIDADE DE CONJUNTOS DE NORMASTrata-se de códigos gerais, que, melhor dizendo, levam em consideração todo o direito público e privado (para repetir as palavras de Lívio com relação às XII Tábuas) e os apresentam em uma exposição unitária e (ten- dencialmente) sem contradições internas, enquanto os unificam concei- tualmente com a expressão ius Romanum commune. Os iura populi Romani (ius civile, ius gentium, ius naturale; ius fetiale; ius quod in sacris, in
sacerdotibus, in magistratibus consistit etc.) foram, nos passos da virada
de Constantino, e com o posterior desenvolvimento, designados unitaria- mente ao singular ius Romanum commune,77 enquanto unitário é o supor-
te dos códigos que os incluem. A unificação conceitual não anula, note-se bem, a pluralidade. A coerência interna, a ausência de antinomias, sempre cercada, não obstante de controvérsias, é explicitamente indicada como um pressuposto fundamental. A consonantia é a base e o produto da peri-
tia do intérprete.78 Encontramos o mesmo termo, fortalecido pela refe-
rência à unidade, também na Constituição de promulgação dos Digestos:
in unam consonantiam,79 e foi explicado que, dado o trabalho por con-
cluído, não se encontra entre os textos nenhuma contradição e também nenhuma repetição.80
2.4.3.4 |
A
EXTENSÃO TEMPORAL DO SISTEMA“Todo o curso das leis que descende da fundação da cidade de Roma e dos tempos de Rômulo”, “todo o direito antigo, impreciso por quase 1.400 anos e por nós purificado”, inclui também as contribuições da “antiga sabedoria já à época dificilmente cognoscível mesmo aos próprios homens
mais eruditos”,81 foi “todo ordenado de modo que nada possa ser deixado
da mencionada decisiva realização”82 que, em verdade, seleciona aquilo
que caducou e caiu. E não se considera somente a origo, e o processus; não se preocupa somente de “dispor leis ótimas para a nossa época, mas também para qualquer época, tanto presente quanto futura”,83 em vista
do que, “porque as coisas divinas são perfeitíssimas, enquanto a condi- ção do direito humano sempre transcorre ao infinito e não há nela nada que possa estar fixo em perpétuo”,84 foram predispostos, como já indi-
cado, os instrumentos de ulterior desenvolvimento, segundo uma concep- ção aberta a sucessivas integrações que restam fundadas no principium
potissima pars.85
2.4.3.5 |
T
ENDêNCIA à UNIFICAÇÃO DO RESPEITO JURÍDICO AOSHOMENS E CENTRALIDADE DELES MESMOS
Os códigos justinianeus põem ao centro dessa relação harmônica os homens, individualizados na sua pluralidade,86 desenvolvendo, com a eli-
minação da diferença entre cidadãos e latinos e, posteriormente, daquela entre cidadãos e estrangeiros, a unificação do respeito jurídico com fun- damento neles (foi observado que, sendo a condição de estrangeiro que é feito prisioneiro de guerra a fonte primária da escravidão, com esta eli- minação se dá um passo à eliminação também desta última87). Este é
seguramente um dado fundamental.88 Ele não anula de modo abstrato as
diferenças entre as pessoas (por exemplo, aquelas que podem e aquelas que não podem, por motivo de idade, ou por outro motivo, tutelar sozi- nhas os próprios interesses), mas acompanha outras afirmações, como aquela de contrastar algumas diferenças presentes em costumes regionais, entre masculi et feminae.89 Os homens concretos, na sua unidade funda-
mental e nas suas diferenças, constituem o parâmetro que baseia a seleção do direito comprovado, experimentado, transmitido; unificado em torno a eles e “sistematizado”. A coerência geral do direito é em função dos homens. Não é a lógica das necessidades próprias da produção e/ou apro- priação e/ou circulação dos bens, ou da solução de controvérsias, ou da punição dos ilícitos, ou da cobrança dos tributos, ou da organização do
exército etc.; não é nenhum desses problemas em si, mas são os homens o polo por meio do qual todas as conexões relativas a todos esses proble- mas, nas suas múltiplas possíveis sistematizações presentes ou futuras, devem convergir e se constituir; são os homens a base do sistema e do modelo dos códigos justinianeus. Isso não exclui, evidentemente, nem erros nem falsidades; mas põe, ainda assim, uma ratio para uma contínua comprovação e para o, já lembrado, “cotidiano conduzir adiante o direito ao seu melhor”90 (a mesma iustitia é indicada dinamicamente como aqui-
lo que não é alcançado, mas que se deve perseguir de modo permanente, com “constante e perpétua vontade”91).
2.4.3.6 |
O
BRAS SISTEMáTICAS E PLURALIDADE DE ORDENSEXPOSITIVAS DE CONJUNTO
Os livros citados são ordenados segundo duas linhas expositivas, aquela das Institutas e aquela do Código de Justiniano e dos Digestos.
A primeira irradia a sua carga didática e simplificadora baseada em uma organização estática que reconduz todo o direito a poucos gêneros, constituídos por objetos substanciais, com relação aos quais as causas das situações deles são colocadas em segundo plano, como se refletisse a sua eficácia limitada ao âmbito do objeto substancial ao qual se referem (como é notório: direito e fonte do direito, e, depois, personae, res, actio-
nes; estes constituem os poucos gêneros nos quais se articula uma cons-
trução em que o já sublinhado primado das pessoas é traduzido na ordem da exposição,92 e nos quais, com referência às res, encontramos indivi-
dualizados os elementos do patrimônio, constituindo três gêneros, isto é, coisas que podem ser tocadas e direitos reais, direito à sucessão heredi- tária, obrigações, por sua vez divididos em espécies segundo aquele modelo piramidal tão desenvolvido em época moderna; construção na que, depois, cada gênero é caracterizado, tendencialmente, por próprios modos de aquisição ou de transferência/constituição ou de extinção [a
traditio de um lado para as coisas que podem ser tocadas e o contractus,
o delictum e a solutio de outro lado para as obrigações]; assim como por próprios contrapostos instrumentos de tutela [actiones in rem e actiones
A segunda linha expositiva, no Codex e nos Digestos, é inspirada naque- la do edito perpétuo, muito mais dinâmica no seu articular-se, prevalen- temente em torno aos atos daqueles que agem na cena do direito. Ela é muito mais completa, mas também menos fácil e comunicativa, e no seu âmbito já emergem também núcleos de possíveis separações (por exem- plo, o direito penal em D. 47-48; o direito relativo ao processo em D. 2-4). A sua menor compacidade deixa aos desenvolvimentos futuros mais aber- ta a possibilidade de produzir outras sequências, que não perdem, contu- do, o fundamento no princípio substancial do sistema já mencionado: a centralidade dos homens, de todos os homens, que nela é indicado expli- citamente como guia para todo o direito.94
2.4.4 |