• Nenhum resultado encontrado

2. CAPÍTULO II: Análise de Cartão Postal

2.4. A produção de Cartão postal

No primeiro item deste capítulo foi feita uma breve apresentação do longa-metragem

Cartão Postal, destacando resumidamente sua forma de financiamento e detalhando sua sinopse.

Neste subitem será abordado com mais detalhes a estrutura de produção do filme levando em conta os aspectos que envolvem a produção audiovisual nas periferias e os procedimentos que caracterizam a “nova cena do cinema brasileiro” e sua articulação em rede. As informações e dados aqui contidos foram coletados principalmente através de depoimentos fornecidos por Josinaldo Medeiros e em sites e documentos on line a respeito do filme.

Um aspecto importante que foi destacado no primeiro capítulo a respeito da produção independente do cenário contemporâneo de produções brasileiras é a questão do financiamento dos

filmes. Os jovens realizadores estariam buscando fontes alternativas ao financiamento público, fugindo da burocracia dos editais e leis de incentivo. Essa característica é especialmente levada em conta por Marcelo Ikeda ao falar do cinema de garagem e pode ser detectada no caso específico de

Cartão Postal, que segundo Josinaldo não recebeu nenhum tipo de investimento público15.

Como principal fonte de renda o longa recebeu um patrocínio da Unimed, a maior empresa de plano de saúde do Brasil. A porta de entrada desse recurso deu-se através do cineclube Beco do Rato, que segundo Josinaldo havia se desenvolvido suficientemente a ponto de surgirem pessoas interessadas em apoiar o projeto com recursos financeiros. Dentre o público regular do cineclube havia um jovem rapaz, que Josinaldo não nomeia, que trabalhava na Unimed e informou aos organizadores que se o projeto do cineclube fosse apresentado para a empresa havia chances de ela conceder um apoio financeiro. Josinaldo marcou uma reunião com a equipe que selecionava os projetos para apoio e apresentou o cineclube. No entanto, o orçamento apresentado por Josinaldo era referente a um período extenso de manutenção do Beco do Rato, superando os 100 mil reais, que não foi aprovado pela Unimed. A justificativa foi que, acima desse valor, o único patrocínio concedido era ao Fluminense, o time de futebol carioca. A própria empresa indicou que se houvesse algo menor a ser apoiado eles teriam interesse. Josinaldo logo apresentou o projeto de Cartão

Postal e conseguiu “carta branca” da empresa que patrocinou o projeto de forma direta, com o valor

de 50 mil reais que com as deduções de impostos rendeu cerca de 38 mil reais.

Essa verba foi a única fonte de patrocínio direto para o longa. Na cartela de logos inicial a Unimed entra com a chancela de apresentação. Como realização estão o Cidadela, Fora do Eixo, Clube de Cinema e a DF5. Os apoiadores culturais foram os cineclubes Mate com Angu e Beco do Rato; Toesa Service, Maico Luz e Filmes, Centro de Artes Calouste Gulbenkian, Restaurante Sabor e Mar, The Haze Inn e Cinema Nosso.

Os dois cineclubes que constam como apoiadores têm ligação direta com o coletivo Cidadela. O Beco do Rato é um dos projetos do Cidadela e o Mate com Angu é um projeto parceiro, como visto anetriormente. A empresa Toesa Service, que presta serviços de resgate e socorristas para eventos, entrou como apoio por disponibilizar a ambulância utilizada em uma das cenas iniciais do filme. Maico Luz e Filmes disponibilizou equipamentos para serem utilizados nas gravações. O restaurante Sabor e Mar forneceu refeições para a equipe e atores e o hotel The Haze Inn entrou com as hospedagens.

Centro de Artes Calouste Gulbenkian e o Cinema Nosso16 são instituições que atuam no

Rio de Janeiro em diversos segmentos da cultura. Foram importantes para a realização do longa em diversos aspectos, desde terem seus espaços utilizados como estúdio, locação e local de ensaios e testes de elenco. Muitos atores do filme também frequentavam aulas de atuação oferecidas pelo Cinema Nosso, assim como o espaço, que tem como metas não só formar profissionais, mas também viabilizar as produções autorais, disponibilizou equipamentos e mão de obra para a realização do filme.

O filme contou com um orçamento baixíssimo e foi viabilizado em grande parte através de apoios em algumas áreas como figurino, cenografia, alimentação e hospedagem, como afirma Josinaldo em depoimento, além de investimento de recursos pessoais da equipe. A respeito de investimento público direto Josinaldo afirma não ter havido nenhum. No entanto, essa questão do financiamento público se mostra mais complexa, pois embora possa não ter havido nenhum investimento diretamente no filme, algumas instituições e projetos que são a base da produção do filme são financiadas por lei de incentivo e editais, como é o caso do Beco do Rato e do Cinemaneiro. Então, indiretamente há o envolvimento de dinheiro público na realização do filme.

Um ponto interessante a respeito da produção que vale destacar é a escolha de Zezé Antônio para o papel principal. Segundo Josinaldo, Zezé participou das oficinas do Cinemaneiro em 2004 e desde então se interessou pela atuação e passou a atuar em diversos curtas produzidos pelo Núcleo do Produção do Cinemaneiro. O papel do líder Beiço em Cartão Postal foi pensado para Zezé desde o roteiro, por esse ser uma figura forte dentro da comunidade da Maré e parceiro de Josinaldo e dos outros integrantes da equipe. Zezé também seguiu o caminho da profissionalização e continua trabalhando como ator fazendo figuração na TV e atuando em filmes independentes, como informa Josinaldo. Além de encarnar o líder Beiço, Zezé também interpreta o personagem principal do curta-metragem que abre o filme.

Como foi dito no início deste capítulo, a narrativa de Cartão Postal compreende a história central do líder Beiço e outras histórias coadjuvantes introduzidas ao longo do filme por dois curtas-

metragens e um videoclipe. A escolha de compor o filme dessa maneira acarretou em um tempo longo de produção e está diretamente ligada ao fato de os realizadores terem vindo do contexto de intensa produção de curtas-metragens, disparado pela sua participação em oficinas de inclusão audiovisual. Esse fato pode ser compreendido através da entrevista com os realizadores feita na ocasião de lançamento do filme, disponibilizada como material de divulgação para a campanha de lançamento:

1. Quando e como foi concebido o filme Cartão Postal?

A parte principal gravamos em meados de 2007, o prólogo em dezembro de 2005 e o curta do final em 2010. Durante alguns anos, o Núcleo de Produção Cinemaneiro se dedicou ao processo de experimentação audiovisual dos participantes, sempre no formato de curta duração. Com a oportunidade de um orçamento (R$ 40.000,00)17 o

longa Cartão Postal foi pensado como uma forma de colocarmos em prática tudo que vínhamos experimentando em pedaços, nos curtas anteriores.

2. Como as histórias foram desenvolvidas? Houve roteiro, escolha de tema ou simplesmente os jovens saíram gravando o que queriam?

Seguimos os conceitos básicos de organização de uma produção, com os departamentos bem definidos, mas como somos parceiros antes de sermos profissionais, a colaboração foi a tônica do processo. Existia uma escaleta da parte principal e os curtas tiveram seus roteiros mais definidos. O encaixe dos curtas ao corpo principal aconteceu em paralelo à montagem/edição do filme, a partir de algumas necessidades encontradas e de algum planejamento prévio, dentro do espírito temporal e atemporal (sim, os dois ao mesmo tempo) que carrega o filme. 18

Observa-se um traço do processo de profissionalização que se sucedeu à participação de Josinaldo e Wagner nas oficinas do Cinemaneiro. Os dois, juntamente com outros ex-alunos que compunham o Núcleo de Produção Cinemaneiro, formaram a equipe base de Cartão Postal, que funcionaria como um grande projeto coletivo organizado e gerido colaborativamente por esse grupo de jovens cineastas de periferia formados em oficinas de inclusão audiovisual. Essa análise leva a perceber que, como já se havia observado no primeiro capítulo, embora Cartão Postal seja um filme em certa medida comunitário está distante de poder ser entendido como um filme amador, visto que todo o contexto que o envolve está permeado por iniciativas que pautam o audiovisual para além de seu potencial de entretenimento. Como, por exemplo, o esforço de exibir o filme para públicos além da comunidade envolvida na própria produção. Quanto aos filmes amadores a

circulação em geral é caseira e restrita aos bairros e vizinhanças onde os filmes são produzidos. O filme distancia-se, inclusive, do conceito de cinema de bordas quando leva-se em conta que uma das principais características desse seria a tendência para a sátira ou paródia do modelo de cinema institucional. Cartão Postal, ainda que tenha contado com poucos recursos financeiros foge das representações caricatas.

A noção de seguir “os conceitos básicos de organização de uma produção” também revela o profissionalismo no discurso dos realizadores, sem deixar de levar em conta uma certa flexibilidade dessa estrutura na medida em que os envolvidos estão conectados por laços afetivos. Essa cumplicidade entre o grupo que o discurso dos realizadores sugere parece ser algo que influencia justamente na opção de fazer uma única obra audiovisual composta por vários filmes, numa escolha estética que faz jus à busca de experimentalismo a qual se referem. Parece haver um certo desapego com a necessidade de fazer um filme formalmente simples em prol da possibilidade de se experimentar ao máximo as possibilidades da linguagem audiovisual durante o processo de fazê-lo.

No próximo subitem serão tratado com mais atenção a narrativa do filme e seus traços estéticos, levando em conta justamente essa perspectiva de experimentalismo que envolveu a produção e como se observa essa escolha no resultado final, na obra que é levada ao público. Para essa análise levaremos em conta também os aspectos que envolvem o universo simbólico da periferia e os elementos presentes no filme que evocam traços identitários desse universo.