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2 PERCURSO METODOLÓGICO: POR UMA CLÍNICA DA ATIVIDADE

2.4 PRODUÇÃO DE CONHECIMENTO SOBRE O TRABALHO

No que tange a produção de conhecimento sobre o trabalho, Clot (2010) recomenda que como pesquisador ―somos aquele que nada – ou quase nada – sabe acerca do trabalho, de qualquer modo, o trabalho desse operador, aquele que também nada conhece da linguagem‖ 8 (CLOT, 2010, p. 136). Dessa forma, o pesquisador deve abordar esse trabalhador como legítimo estrangeiro no que concerne o desenvolvimento do seu trabalho a quem o trabalhador deve ensinar. Clot (2010) adverte ainda que não se deve impor uma ordem segundo as suas necessidades e interesses, visto que do contrário pode-se prejudicar o curso do desenvolvimento e a reelaboração do trabalhador.

Clot (2010, 2007) destaca também a potência do diálogo afirmando que o enunciado, assim como a atividade, sempre é endereçado a algo ou a alguém e supõe ao menos três destinatários nessa situação de pesquisa: o próprio sujeito, o outro (implícito e explícito) e ao pesquisador. Segundo ele, a partir de Bakhtine, ―qualquer diálogo inclui uma dramaticidade intrínseca, desenrola-se em um teatro em que se confronta uma pluralidade de vozes, bem além daqueles dos atores‖ (CLOT, 2010, p. 133). Nesse sentido, o diálogo é sempre polifônico e, em última análise, sempre anunciará a relação que o sujeito tem consigo mesmo e com os outros. Na Clínica da Atividade, quando da experimentação dialógica com os trabalhadores, a última palavra nunca é dita, ou seja, a produção de conhecimento sempre é inacabada, considerando que o desenvolvimento da atividade segue seu curso independente da situação de pesquisa.

A renovação metodológica que Clot propõe se refere ao fato de introduzir uma experiência dialógica, na qual o trabalhador é confrontado com a própria imagem em vídeo, em que se mostra sua atividade na presença do pesquisador. A partir disso, o profissional é impelido a discorrer sobre o seu trabalho ao mesmo tempo em que o assiste. Esse é o primeiro momento, denominado de autoconfrontação simples. No segundo momento, o mesmo trabalhador assiste ao mesmo vídeo na presença de um colega-par, que já se confrontou antes,

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No sentido de ―linguagem do trabalhador‖, ou seja, ―linguagem dos ferroviários‖, ―linguagem da cimenteira‖ e, no caso em tela, ―linguagem das profissionais do CR‖ .

e do pesquisador, ao que se chama de autoconfrontação cruzada. Essas estratégias buscam levar o trabalhador a se interrogar sobre o que eles fazem e como fazem. Ao começar a descrever de modo detalhado os gestos, os modos e os procedimentos, em um dado momento, são manifestadas outras dimensões da atividade que transbordam as descrições, visto que há operações na atividade que a mera descrição não alcança (CLOT, 2010).

[...] a autoconfrontação cruzada visa, sobretudo, contaminar a atividade comum, não para submetê-la a cânones que não são os seus, mas para liberá- la de tudo que é convencional, necrosado, amaneirado, amorfo, de tudo que freia sua evolução. De fato, ‗sobra sempre um excedente de humanidade não realizado‘, escreve Bakhtine. Um diálogo a desenvolver. (CLOT, 2010, p. 258).

Essas estratégias conduzem o trabalhador a ir além de uma mera reflexão ou descrição sobre a sua atividade, visa transformar, portanto, as situações de trabalho, alterando o seu status para que o trabalhador possa ampliar o seu poder de agir. Daí decorre a inovação metodológica da Clínica da Atividade que mais do que um método de investigação, torna-se meio para agir, produzindo um instrumento para ação dos trabalhadores.

Como mencionado anteriormente, as inúmeras intercorrências no campo de investigação impossibilitaram o uso da metodologia nos moldes propostos pela Clínica da Atividade no que tange a utilização da autoconfrontação cruzada e se aproxima mais do método de ―instruções ao sósia‖. Além disso, o estudo se apropriou dos temas, conceitos e atitudes centrais9 da perspectiva da Clínica da Atividade, tanto do ponto de vista da condução da produção de dados quanto do ponto de vista das análises, propondo um arranjo metodológico que visa dar conta do problema e dos objetivos de pesquisa.

Foram realizados encontros de modo individual com as profissionais nos quais era proposta uma conversa, inicialmente, sem um itinerário previsto, nem esboços de conversa, embora inspirada pelo roteiro de entrevistas no que concernem os temas centrais dessa pesquisa. Além disso, foram introduzidos alguns recursos à luz da Clínica da Atividade, a exemplo de conduzir as profissionais, através do diálogo, a uma, confrontação com o seu trabalho. Tratou-se principalmente de suas respectivas abordagem na rua, a relação com a equipe, a estratégia da Redução de Danos, a relação com os usuários e com os campos de atuação, sobre a clínica etc., a fim de impulsionar o encontro das profissionais com os limites dessa descrição, o que as obrigaria a desvendar os enigmas do gênero e, por sua vez, o real da atividade.

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Além disso, no que tange a postura do pesquisador, buscou se posicionar como estrangeira da atividade tal como recomendado por Clot (2010), criando uma situação similar à experiência de ―instruções ao sósia‖ como descrito anteriormente.. Cabe ressaltar ainda que, no decorrer na conversa dialogada, cada profissional perseguiu um percurso muito particular quanto à análise da atividade, envolvendo-se a partir daí com as próprias histórias, revelando os embaraços e percepções inéditas sobre a própria atividade em que, muitas vezes, se surpreendiam com os próprios insights. Essas impressões na ocasião das entrevistas, depois confirmados com a análise das narrativas, indicam um alcance do arranjo metodológico proposto nesse estudo, propiciando, dessa forma, as condições de análise.

Nessa direção, afirma Clot (2010), a autoconfrontação cruzada na clínica da atividade instala os sujeitos em um paradoxo: sua atividade deve ser compreendida olhando para trás, mas só pode ser vivida olhando para frente. O vivido é nesse caso, vivo. Pode-se pensar que, também, nessa sequência, esse paradoxo é a mola propulsora da alternância funcional entre a atividade conversacional propriamente dita e a atividade de análise, cuja função se modifica no decorrer da interação (CLOT, 2010, p. 71-72).

As entrevistas ocorreram de acordo com a disponibilidade e preferência de local para cada profissional. Ou seja, algumas ocorreram no próprio CETAD, outras na UFBA ou ainda nas proximidades da residência da profissional, o que não parece ter produzido grandes diferenças no que tange a análise. Foi realizado um encontro com cada uma das profissionais, totalizando 663 minutos de entrevistas. Essas entrevistas foram, portanto, gravadas e posteriormente transcritas para fins de análise.

O uso de recursos como o gravador foi informado às participantes, bem como sobre o termo de consentimento livre e esclarecido e os respectivos cuidados éticos. Considera-se que a presente pesquisa investiga uma dimensão da externalidade pública da vida das pessoas no que concerne a sua conduta profissional, não existindo elementos que invadissem a sua intimidade pessoal ou outros ainda que as constrangessem em sua dignidade humana ao que as profissionais demonstraram, durante as entrevistas, tranquilidade e não hesitaram a responder nenhuma das perguntas. As profissionais são reguladas ainda pelos códigos de ética das suas respectivas categorias profissionais, o que também assegura o sigilo e conduta ética das profissionais. Analisa-se, nesse sentido, que foram extintas, no percurso dessa pesquisa, as potenciais questões éticas.