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2. ENCONTROS TEÓRICOS E EPISTEMOLÓGICOS

2.2 O Construcionismo Social: pressupostos epistemológicos e aproximações

2.2.2 Dos novos estudos da linguagem em Psicologia

2.2.2.1 Produção de sentidos e posicionamentos: aproximações conceituais

crianças, compreendendo que tais conceitos encontram-se interligados a outros, motivo pelo qual os consideramos dada sua importância para o processo de análise que pretendemos.

Conforme referimos, na perspectiva do Construcionismo, a Psicologia Social Discursiva busca compreender o processo de produção de sentidos através da linguagem em uso, esta compreendida como prática social.

De acordo com esta proposta, o sentido é descrito como uma construção social, um fenômeno sociolingüístico, na medida em que é o uso da linguagem que alimenta as práticas sociais que geram sentidos. Trata-se de um empreendimento coletivo-interativo, por meio do qual “as pessoas, na dinâmica das relações sociais, historicamente datadas e culturalmente localizadas, constroem os termos a partir dos quais compreendem e lidam com as situações e fenômenos à sua volta” (SPINK e MEDRADO, 2004, p.41). Segundo assinalam estes autores, produzir sentido ou “dar sentido ao mundo” configura-se numa poderosa e inevitável força na vida em sociedade, fazendo parte da nossa condição humana.

Nesse entendimento, a produção de sentidos é compreendida por Spink e Medrado (2004) como uma prática social, dialógica, circunscrita a condições de produção, ou seja, às construções históricas bem como ao contexto social e interacional que envolve a situação, os interlocutores presentes e presentificados, o espaço e o tempo. Reiteram os autores que construir sentidos não é uma atividade solitária, mas conversacional.

No estudo da produção de sentidos, faz-se necessário considerar a linguagem em ação ou práticas discursivas23, posto que estas remetem aos momentos ativos do uso da linguagem, em que as pessoas produzem sentidos sobre o mundo e posicionam-se neste mundo. De acordo com Potter e Wetherell (1987), as práticas discursivas envolvem os termos, descrições, figuras de linguagem, lugares-comuns utilizados para construir versões das ações, eventos e outros fenômenos que estão à nossa volta.

As práticas discursivas, conforme explicitado por Iñiguez (2004), situam-se dentre as correntes voltadas ao estudo da linguagem, sendo definidas por este autor como maneiras pelas quais as pessoas, por meio da linguagem em uso, descrevem, explicam e também se posicionam em relações sociais cotidianas.

Neste entendimento, o conceito de posicionamento, proposto por Davies e Harré (1997), mostra-se igualmente relevante. Tal conceito remete às posições assumidas pelas pessoas nas suas interações, de forma intencional ou não. Envolve uma dimensão reflexiva - como a pessoa se posiciona -, e uma dimensão relacional,

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As práticas discursivas, termo foucaultiano que, na perspectiva em foco, diferem do discurso - entendido como construções mais estáveis, institucionalizadas ao longo do tempo. Práticas discursivas dizem respeito aos momentos de ordem, mas também de desordem, de ressignificação ou ruptura.

ou seja, como a pessoa é posicionada e posiciona o outro durante o processo interativo.

Trata-se de um conceito dinâmico - que se contrapõe à idéia de ‘papel social’, de caráter fixo e estruturado -, sendo definido por seus autores como fluidos e contextuais. Entende-se que as pessoas ocupariam posições várias como parte do processo de interação. Esta flexibilidade das posições parte também do reconhecimento de que as pessoas estariam sempre em processo de mudança em suas formas de pensar e agir, o que as levaria a assumir posições múltiplas ou mesmo contraditórias, as quais podem ou não ser intencionais. As posições seriam discursivamente construídas, isto é, seriam negociáveis entre as pessoas envolvidas na interação pela linguagem em uso. No dizer dos seus autores, a posição é “o que é criado dentro, na e por meio da fala” (DAVIES E HARRÉ, 1997, p. 14).

Conforme os referidos autores, os diversos posicionamentos corresponderiam às diversas maneiras como as pessoas, pela linguagem em uso, produzem sentidos sobre a ‘realidade’ à sua volta. Ratificam que é por meio da linguagem que as pessoas não apenas percebem e descrevem o mundo, mas posicionam-se em relação a este mundo. Acrescentam que tais descrições seriam geradas a partir da posição do que compreendemos que somos. Mas as posições também envolveriam a maneira como nos vemos posicionados pelo outro. Exemplificam que, quando alguém se autoposiciona como membro de um determinado grupo, o sentimento de pertencimento remeteria a um posicionamento relacionado a este grupo, legitimando-o ou contestando-o. Ademais, dependem da experiência em comum com este outro, das histórias que fizerem sentido para ambos.

Discorrendo sobre o conceito de posicionamento, Oliveira, Guanaes e Costa (2004) afirmam que as pessoas estão sempre envolvidas em atividades discursivas nas quais se posicionam e são posicionadas, sendo que as formas que esses posicionamentos assumem vão diferir a partir das situações da interação. Desse modo, embora a probabilidade de múltiplos posicionamentos exista, nem todas as pessoas podem assumir qualquer posição, pois, “é a interação situada e suas peculiaridades que definem o jogo de posições que se estabelece entre os participantes em um dado episódio social” (p. 77).

Conforme sintetizam as autoras, “ao falar ou agir a partir de uma determinada posição, uma pessoa trará para a situação presente, para o momento da interação, 60

sua história particular, que é a história de alguém envolvido em muitas posições” (p. 76).

Esta compreensão de que na interação entre as pessoas – nas narrativas e argumentos trazidos nos diálogos – desenvolve-se a dinâmica da produção de sentidos, remete à noção bakhtiniana de interanimação dialógica, ou seja, o processo desencadeado numa conversação em que os enunciados de alguém são endereçados a outro alguém, numa ação mútua e contínua.

Os enunciados - expressões, palavras que se constituem em elos numa corrente de outros enunciados – são orientados por vozes, termo que, na perspectiva bakhtiniana diz respeito às negociações que se processam entre as pessoas presentes ou que são presentificadas no diálogo ou mesmo presentes numa mesma pessoa. No dizer de Bakhtin (1997), o enunciado é o ponto de partida para a compreensão da dialogia, ou da interanimação dialógica, compreendida como “entrelaçamento das vozes”. Quando as múltiplas vozes se confrontam, os sentidos são construídos. Daí que a compreensão dos sentidos remete sempre a um confronto entre muitas vozes.

Discorrendo sobre a importância da pesquisa com crianças, Algebaile (2003) observa que, na perspectiva bakhtiniana, nenhum falante é o primeiro a falar sobre o tópico do seu enunciado, pois tal enunciado está sempre habitado por outras vozes. Assim as vozes dos adultos estarão também presentificadas nas vozes das crianças, não como reprodução, mas como ressignificação que implica permanências, mas também rupturas. Defende a autora que a criança está sempre pronta a (re)criar o mundo enquanto o conhece, a ressignificar sentidos dominantes, produzindo sentidos, utilizando-se de formas de falar próprias de seu contexto e de seu tempo.

Esclarece Bakhtin (1997) que não há limite temporal no processo de interanimação dialógica. No entender do autor, tal processo acontece na interface de três tempos: o tempo longo, que é o tempo histórico, dos discursos construídos ao longo do tempo e ainda vigentes - os conteúdos históricos que antecedem à existência de uma pessoa, mas se presentificam em normas, conceitos, convenções, que se reproduzem socialmente alimentando os sentidos produzidos no presente; o tempo vivido, que é o tempo da socialização, onde se situam o afeto, as narrativas, a memória, onde os conteúdos históricos são ressignificados nas experiências vivenciadas no curso da existência da pessoa; e o tempo curto, o 61

tempo presente, do aqui-agora, da interanimação dialógica onde, no dizer de Spink e Medrado (2004), “as possibilidades de combinação das vozes, ativadas pela memória cultural do tempo longo ou pela memória afetiva do tempo vivido, se fazem presentes” (p. 53) e no qual é possível compreender o processo de produção de sentidos e os jogos de posicionamento.

Esta dimensão temporal se faz particularmente importante para as investigações com crianças, possibilitando compreender o processo de construção de sentidos pelas mesmas na interface destes tempos. Os sentidos, portanto, são sempre contextualizados, situados historicamente e atualizados na interanimação dialógica.

Complementam Spink e Medrado (2004) que é no processo de interanimação dialógica que ocorre o posicionar-se, havendo sempre a possibilidade de ressignificações - de nós mesmos, dos outros e das circunstâncias em que nos encontramos. Posicionar-se é navegar nas múltiplas narrativas com que entramos em contato e que se articulam na linguagem em uso.

Acrescentam Davies e Harré (1997) que:

Posicionar-se possibilita pensar-nos como sujeitos com escolhas, localizando- nos nas conversações de acordo com as formas de narrativas com que temos familiaridade e trazendo para estas narrativas nossas histórias subjetivamente vividas a partir das quais apreendemos metáforas, imagens, personagens e enredos (p. 52).

Neste entendimento, a narrativa emerge como mais um elemento importante a considerar tendo em vista a proposta deste estudo. Brockmeir e Harré (2003) explicitam uma compreensão de narrativa em consonância com a postura crítica promovida pelo giro lingüístico, considerando-a na condição de um tipo de prática discursiva de caráter contextualizado, aberto, flexível, fluido e transitório. Narrativas assumem as formas da situação em que ocorrem.

De acordo com os mencionados autores, tal noção, inspirada na produção de Bruner (1997), tem sido utilizada em investigações sobre os modos pelos quais organizamos nossas experiências de vida, considerando que “é sobretudo através da narrativa que compreendemos os textos e contextos mais amplos, diferenciados e mais complexos de nossa experiência” (BROCKMEIR; HARRÉ, 2003, p.526).

Desse modo, prosseguem os autores, o termo narrativa tem sido generalizado para denominar a comunicação sobre eventos da vida tais como uma situação 62

complicada, uma angústia, uma intenção, um sonho. Trata-se assim de versões do cotidiano das pessoas, são descrições e argumentações de acordo com os contextos nos quais se inserem, envolvendo cenários, personagens e tramas. Advertem os autores que, ainda que concebida como versões, as narrativas não se configuram como invenções individuais nem descrições objetivas, antes devem ser ouvidas como articulações de pontos de vista de vozes situadas - no sentido bakhtiniano já exposto.

Esta noção de narrativa busca levar em conta as múltiplas possibilidades de versões diferentes acerca das complexidades da vida humana. Argumentam ainda Brockmeir e Harré (2003) que viver implica construir sentidos sobre o que experienciamos, sendo que evidenciamos o modo como lidamos com nossas tensões e dificuldades da vida narrando ou conversando, dando contornos aos nossos medos, dúvidas, desejos, intenções. Por tal motivo, a questão não está em perceber as narrativas como fins em si mesmas, mas considerá-las articuladas às condições e contextos nos quais as pessoas, narrando suas experiências, posicionam-se e constroem sentidos.

Entendendo, portanto, a criança como pessoa ativa e produtiva nos contextos dos quais faz parte, que se posiciona nas relações cotidianas e que produz sentidos pela linguagem em uso - ou, mais precisamente, em suas narrativas - nossa tarefa investigativa consistiu em conversar com crianças de modo a compreender que sentidos elas vêm construindo e como se posicionam nas suas relações familiares conflituosas.