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Para entender de forma mais clara as práticas escolares em relação ao ensino de produção textual, considero relevante fazer uma breve descrição histórica, com o objetivo de estabelecer relações entre as diferentes visões sobre os objetos de ensino e sobre as concepções de língua/linguagem que foram se configurando, ao longo do tempo. Tal panorama é apropriado para que se tenha conhecimento de como se dava o tratamento do

31 ensino-aprendizagem, em tempos mais remotos, e como se chegou a uma tendência interacionista, atualmente.

De acordo com Santos (2007, p. 12), no Brasil, as bases do processo de escolarização passam a ser definidas de forma mais contundente nos anos 20 do século passado. Neste período, os currículos da educação formal tinham como maior destaque o ensino das normas gramaticais, e somente os cânones e clássicos literários eram tidos como modelos de bons textos. A prática pedagógica era mais voltada para a memorização de regras do que para o ato de escrita. Santos (2007, p. 13) afirma que um dos objetivos, naquela época, era o de garantir o zelo pela cultura e pela norma culta da língua. Nessa perspectiva, “o texto é visto como um conjunto de unidades linguísticas (palavras, frases, períodos) através do qual se pode expressar claramente um pensamento” (SANTOS, 2007, p. 15). Nas palavras de Travaglia (2009, p. 21), naquela época, acreditava-se que a expressão se construía no interior da mente, sendo sua exteriorização apenas uma tradução. Dessa forma, a escrita era vista como um ato individual, “que não é afetado pelo outro nem pelas circunstâncias que constituem a situação social em que a enunciação acontece” (TRAVAGLIA, 2009, p. 21). Tal visão tradicional do ensino concebe a língua como algo passível de ser sintetizado, por meio de práticas que priorizam conjugações verbais e classificações de nomes, fazendo da linguagem algo cristalizado, homogêneo e possível de ser vislumbrado por meio de taxonomias. Sendo assim, o ensino da escrita deveria se iniciar pela apresentação da gramática, cujo domínio conduziria à produção de bons textos escritos (SANTOS, 2007, p. 13). Travaglia (2009, p. 22) afirma que “para essa concepção, o modo como o texto, que se usa em cada situação de interação comunicativa está constituído não depende em nada de para quem se fala, em que situação se fala (onde, como, quando), para que se fala”.

Com o passar do tempo, a educação começa a ser encarada como fator de desenvolvimento, cabendo ao Estado a tarefa de organizá-la. Segundo Santos (2007, p. 14), as Propostas Curriculares, elaboradas a partir dos anos 70, evidenciam a concepção de que escrever é, antes de tudo, uma questão de conhecimento linguístico com atenção focalizada no vocabulário e na sintaxe. Dessa forma, o desenvolvimento da escrita continua sendo visto como resultado da prática de imitação de modelos de boa escrita. A escola utilizava os cânones literários, por representarem melhor o padrão da língua culta, como verdadeiros objetos escolares para o ensino da composição, como eram chamados os textos escritos pelos alunos. De acordo com Buzen (2006, p. 142), “fazer composição significava escrever a partir

32 de figura ou títulos dados, tendo como base os textos-modelo apresentados pelo professor”. No entanto, as redações escolares eram escritas de modo espontâneo, sem planejamento e sem revisão, com a única finalidade de se fazer um treinamento dos códigos linguísticos ou de se escrever para ser avaliado, tendo como único interlocutor o professor. Até esse período, a produção escrita, vista independentemente de práticas sociais, é concebida como comunicação de pensamentos, para o que seria imprescindível a criatividade. À escola caberia o ensino de escrita, capacitando o aluno para criar e organizar ideias de forma criativa, dominar as normas gramaticais e ter acesso a modelos de textos que serviriam como um “estímulo para escrever” (BUZEN, 2006 p. 144). Com estes parâmetros, caberia ao aluno, imitar os modelos, apropriar-se de suas estruturas linguísticas e, a partir disso, tornar- se um bom escritor. Nessa concepção, a língua era vista como um código que contém uma mensagem e que precisa ser decodificado pelo receptor. Como afirma Buzen (2006, p. 145), “nessa direção, produzir um texto é submeter uma mensagem a uma codificação, o que é, em certo sentido, uma visão bastante reducionista da própria interação verbal, seja escrita ou oral, pois observa a língua de forma monológica e a-histórica”.

Em contraposição a essas práticas de escolarização que não consideravam a natureza dialógica e interativa da linguagem e que, praticamente, anulavam as atividades comunicativas existentes na sociedade, surgiram discussões, nas décadas de 80 e 90, em torno de novas possibilidades do ensino do texto escrito nas escolas. Inicialmente, a escrita passa a não ser vista somente como produto final, mas como um processo. Nessa época, segundo Reinaldo (2003, p. 93), pesquisas sociocognitivistas despontam, considerando que duas ordens de fatores acontecem paralelamente ao ato de escrever: “os fatores sociais (representados pela práticas da realidade social que cerca o indivíduo) e os fatores cognitivos (conhecimento do mundo, da língua e do tipo de texto)”. Ainda com base em Reinaldo (2003, pp. 93-94), o estágio inicial (estágio A), que antecede o ato de escrever, envolve processos mentais influenciados pela vivência, conhecimentos de textos e suas formas de circulação, ligação com instituições sociais, concepções de mundo, parâmetros de textualização do escritor e o monitor (que funciona como um componente cognitivo responsável pelo controle do ato de escrever como um todo, promovendo a interação entre o planejamento e as metas estabelecidas pelo texto). O estágio seguinte (estágio B) é o momento em que se dá a própria produção do texto. Reinaldo (2003, p. 94) afirma que, nesse estágio, há avanços e recuos e que “o desafio de expressar, através da língua, os fatos/realidade, muitas vezes modifica os focos de atenção. É nesse processo que o escritor inexperiente se perde e não sabe mais como

33 voltar ao tema inicial”. Nessa abordagem, concebe-se a produção de textos como uma atividade recursiva, que se volta constantemente ao estágio inicial, avança-se, revisa-se o texto várias vezes, para só depois dar esta tarefa por encerrada. Sendo assim, essa perspectiva traz contribuições importantes para o ensino: a reflexão sobre a necessidade de se providenciarem situações que favoreçam o desenvolvimento das potencialidades cognitivas do aprendiz, ampliando seu conhecimento de mundo e dos diversos textos e a compreensão do ato de escrever como um processo de monitoração que envolve várias revisões (REINALDO, 2003, p. 94). Contudo, ainda conforme a autora, os pressupostos sociognitivistas têm sido considerados impróprios para explicar o complexo processo de produção de textos, por estarem centrados em “esquemas abstratos, pré-construídos, logicamente organizados, de armazenamento e estruturação do conhecimento do indivíduo” (REINALDO, 2003, p. 95).

Surgem, então, discussões acerca de teorias que preconizam o texto, no âmbito escolar, como eventos que não acontecem dissociados das práticas sociais e das interações exigidas por elas. Como mostra Reinaldo (2003, p. 95), “com base nessa nova visão do ensino-aprendizagem da escrita, surgiu a ideia de apropriação da linguagem e das práticas sociais a partir de um percurso do social para o individual, sempre mediado pelo signo e pelo outro”. Travaglia (2009, p.23) afirma que, sob esse prisma, “a linguagem é um lugar de interação humana, de interação comunicativa pela produção de sentido entre interlocutores, em uma dada situação de comunicação e em um contexto sócio-histórico e ideológico”.

Assim, o procedimento didático para lidar com a escrita passa a ter um paradigma sociointeracionista, ou seja, centrado na interação, levando-se em conta elementos sociais, culturais e históricos dos envolvidos na produção textual. Em suma, a concepção interacionista da linguagem se define, segundo Koch (2002), como

Aquela que encara a linguagem como atividade, como forma de ação, ação interindividual finalisticamente orientada; como lugar de interação que possibilita aos membros de uma sociedade a prática dos mais diversos tipos de atos, que vão exigir dos semelhante reações e/ou comportamentos, levando ao estabelecimento de vínculos e compromissos anteriormente inexistentes. Para a realização deste trabalho, serão trabalhadas a leitura e a produção de textos, na sala de aula, sob os olhares da concepção interacionista da linguagem, pois é ela que possibilita o diálogo (entre o professor, o aluno e o texto) e a interação dentro da sala de aula (KOCH, 2002, p. 9).

34 Garcez (1998, pp. 38-39), baseada nos estudos de Calkins (1983), afirma que se aprende melhor quando há um envolvimento orientado por informações oportunas, dadas por especialistas por meio de conferências3. Nessa perspectiva dialógica, as opiniões dos professores e colegas, como leitores do texto do aluno, passam a contribuir para o aperfeiçoamento da escrita. Assim, compartilhando seus textos com os outros, os aprendizes passam a se perceber como autores que selecionam e incorporam informações primordiais e avançam em ideias para a construção do sentido do texto. Além disso, os alunos têm a oportunidade se constituírem como leitores de seus próprios textos, já que, no momento da revisão, possivelmente, serão capazes de se afastarem de seus papéis de escritores e de visualizarem o que necessita ser aprimorado para que ocorra uma efetiva situação de comunicação, visando à compreensão de seu possível público-alvo, à substituição, ao acréscimo ou subtração de elementos, entre outros aspectos necessários à construção do sentido do texto e da adequação ao gênero. Dessa forma, o que antes era percebido como “erro” passa a ser considerado como uma tentativa de novas estruturas e como uma oportunidade de aprendizagem no processo da escrita.

Diante disso, é possível dizer que a maneira de ensinar produção de textos, na escola, não deve acontecer de maneira livre e espontânea, ou por meio de objetos escolares que não motivam em nada a vontade do aluno de escrever, como títulos e gravuras. Segundo Dolz e Schnewly (2004, p. 61), o ensino da escrita é algo que se constrói através de uma intervenção didática sistemática e planejada. De acordo com estes autores, deve-se ensinar a escrita por meio de gêneros, que se configuram como “megainstrumentos que fornecem um suporte para a atividade, nas situações de comunicação, e uma referência para os aprendizes” (DOLZ; SCHNEUWLY, 2004, pp.64-65 – grifo do autor).

Geraldi (1997, p. 137), observando que, nos textos escolares, havia “muita escrita e pouco texto”, afirma que para produzir um texto é preciso que:

a) se tenha o que dizer;

b) se tenha uma razão para dizer o que se tem a dizer;

c) o locutor se constitua como tal, enquanto sujeito que diz o que diz para quem diz; d) se escolham as estratégias para realizar (a), (b), (c) e (d).

3 Conferências são entendidas por Calkins (1983 apud Garcez 1998) como aqueles momentos em que o aluno conversa com o professor individualmente sobre seu próprio trabalho, explicando e esclarecendo a trajetória de seu pensamento e da sua elaboração, ouvindo sugestões ou comentários que o ajudam na solução de problemas.

35 Dessa forma, observa-se uma preocupação em sistematizar o ensino de produção textual. Para tanto, é necessário que os alunos saibam, entre outros aspectos: para quem, quando, sobre o quê e com que objetivo se escreve. Essas são as características que fazem o escritor se definir pelo gênero textual mais adequado à situação sociocomunicativa. O texto a ser construído deve ter finalidades específicas, conforme cada interlocutor, situação ou meio em que irá circular. Há que se observar também o propósito comunicativo, ou seja, o que se quer transmitir, utilizando uma linguagem adequada, levando-se em conta o conhecimento de mundo do provável leitor, para que haja a interação texto/leitor. Nas palavras de Antunes (2003),

Uma visão interacionista da escrita supõe, desse modo, encontro, parceria, envolvimento entre sujeitos, para que aconteça a comunhão das ideias, das informações e das intenções pretendidas. Assim, por essa visão se supõe que alguém selecionou alguma coisa a ser dita a um outro alguém, com quem pretendeu interagir, em vista de algum objetivo (ANTUNES, 2003, p.45 – grifos da autora).

Com a evolução da definição textual, entram em cena conceitos como multimodalidade e hipertexto, que constituem novas formas de interação. Desse modo, se antes a única modalidade considerada texto era a escrita, agora a ideia de texto se expande em outros modos de representação. De acordo com o que afirmam Rodrigues et al. (2012, p. 138),

A questão da multimodalidade, hoje cada vez mais presente nos textos, traz novas demandas para o professor de Língua Portuguesa. Sem esquecer a questão dos textos exclusivamente verbais, ou seja, da modalidade verbal dos textos, a multimodalidade precisa ser trabalhada em sala de aula tanto nas aulas de leitura/escuta quanto nas de produção textual.

Com efeito, muitos dos textos que circulam em nosso cotidiano compõem-se de mais de um material semiótico, além da escrita; contudo, é preciso levar em conta que mesmo os textos escritos têm natureza multimodal, considerando-se o tamanho de letra, as cores, etc. Podem-se exemplificar outros tipos de semioses, como fotos, imagens, infográficos e até mesmo os gestos, na modalidade oral.

36 Em que pesem as significativas diferenças teóricas entre os que se dedicam a pesquisas sobre o ensino de produção textual na escola, é possível perceber algumas convergências; entre elas, uma visão social do texto e uma prática de ensino exploratória, sistemática e consciente. Destaca-se, ainda, a preocupação em se pensar a materialidade textual como não exclusivamente verbal e voltar o olhar para as diversas representações textuais existentes. É possível notar, também, a busca por práticas que foquem o uso adequado da língua, conforme cada situação, e não a língua em si, como conjunto de regras. A linguagem tende, assim, a ser vista não como um objeto cristalizado, vitrificado nas páginas gramaticais, mas como um fenômeno em circulação e expansão sempre.

Diante do exposto, considero acertado afirmar que o desafio do professor em relação ao ensino de produção textual é grande, mas não insuperável. É possível pensar em uma prática pedagógica que possibilite a ampliação de práticas letradas, com vistas à formação de alunos conscientes de seu poder transformador da sociedade, por meio de produções textuais realmente significativas às práticas sociais. É possível, ainda, buscar estratégias que levem o aluno a desenvolver uma análise crítica de seu próprio texto, abrindo espaços para diálogos e questionamentos relevantes à construção do processo de escrita, além de conduzi- lo à percepção de que, para se produzir textos de vários gêneros, é necessário sistematizar as etapas que envolvem a escrita, a leitura, a revisão e a(s) reescrita(s).

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