• Nenhum resultado encontrado

5. AS CARTAS DE ORIBELA

5.1 A PRODUÇÃO TEXTUAL NO COTIDIANO DO ALUNO

“O que é o saber, se disso a comunidade não se aproveita?” (ANTUNES, 2009, p. 65).

Como vimos no decorrer desta pesquisa, os nossos alunos, em sua maioria, ainda adentram a escola com a ideia de que precisam aprender a gramática para saber a língua portuguesa – como se não a soubessem - com vistas a uma ascensão social ou ao mercado de trabalho. Mas, ao mesmo tempo, se queixam de que esse aprendizado é difícil, e de que eles não sabem a língua que trazem para a escola. Os conteúdos que os alunos esperam trabalhar em sala de aula, normalmente, são vistos como algo essencial e necessário para se obter aprovação em exames de seleção ou entrevistas de emprego, mas não para uso em situações cotidianas, ou que façam parte da vida de qualquer cidadão, como, no nosso caso em específico, redigir uma carta.

Sobre as dificuldades que os alunos afirmam possuir no uso da língua nas situações não previstas por eles no ambiente escolar, encontramos eco em Rojo (2004, p. 1), quando afirma que: “A escolarização, no caso da sociedade brasileira, não leva à formação de leitores e produtores de textos proficientes e eficazes e, às vezes, chega mesmo a impedi-la. Ler continua sendo coisa das elites, nesse novo milênio”. Ou seja, muitas vezes, nossas escolas preocupam-se em trabalhar apenas as regras gramaticais ou dão maior importância ao estudo da norma culta da língua, e deixam de lado ou pouco fazem uso de práticas de leitura e escrita que verdadeiramente contribuam para a formação do sujeito crítico e apto a se desenvolver em sociedade.

Faz-se necessário que nós, professores, repensemos a nossa prática pedagógica, considerando a formação do cidadão como um todo e não apenas como mais uma pessoa que irá se inserir no mercado de trabalho. Nessa perspectiva, Matencio afirma que,

[...] o aluno deveria ser levado a trabalhar conscientemente com a língua(gem), em função de seus propósitos comunicativos e, para isso, seria preciso que tivesse clareza das possibilidades que as condições de produção, recepção e circulação de textos falados e escritos lhes proporcionam. É necessário, portanto, que o aluno tenha consciência das razões que o levam a escolher determinados recursos, em detrimento de outros, a selecionar uma certa configuração textual e não outra, enfim, a construir o texto de uma forma e não de outra (MATENCIO, 2004, p. 28-29).

Nesse contexto, é compreensível a surpresa dos alunos diante da produção textual solicitada nesta pesquisa, a Carta de Oribela. Acostumados a produzir na escola, quando

muito, textos argumentativos como os exigidos em concursos ou resenhas e resumos, logo imaginaram que seria solicitado um texto dissertativo, mais especificamente, uma resenha do filme exibido, Desmundo, e não um texto de outro gênero. Sem dúvida, a resenha é um dos gêneros textuais mais praticados entre os trabalhos acadêmicos, principalmente quando o objetivo é a avaliação de leitura. Nesse sentido, o ato de resenhar é uma ação de linguagem que, ao dar crédito ao trabalho desenvolvido por produtores de textos ou a obras de uma determinada área, visa a uma apresentação crítica de um determinado fato cultural – por exemplo, a publicação de um livro, o lançamento de um CD, DVD, filme ou peça teatral, um show, uma exposição etc. – servindo, dessa forma, como uma bússola ao leitor (FERRAZ, 2007).

Entretanto, ainda que a resenha e os textos argumentativos (redação de vestibular), de um modo geral, tenham uma grande importância na área acadêmica, outros gêneros textuais também são fundamentais para a formação do cidadão crítico e atuante em sociedade, afinal, no nosso dia a dia, fazemos bem mais do que produzir resenhas nas mais diversas situações de comunicação das quais participamos.

Segundo Marcuschi (2005), podemos dizer que o trabalho com gêneros textuais é uma extraordinária oportunidade de se lidar com a língua em seus mais diversos usos autênticos no dia-a-dia. Especificamente em relação à carta, texto produzido e analisado na presente pesquisa, afirma Bezerra (2005) que este gênero textual pode abranger um grande leque de discussões acerca de sua aplicabilidade no cotidiano. Embora seja um gênero comumente mais estudado nas séries iniciais, é de extrema importância para o aprendizado dos gêneros textuais dos alunos, como afirma Geraldi sobre a importância do ensino de carta na escola:

Em aula, os alunos poderão escrever cartas familiares, aprendendo também a preencher envelopes. Lembro perfeitamente que meus pais reclamavam que eu não sabia escrever uma carta para algum familiar distante, e, no entanto, estava no colégio. (GERALDI, 2006, p. 67)

Sendo assim, como então os alunos não conseguem redigir uma simples carta se estão na escola e, disso, subentende-se que são alfabetizados? É a partir desta reflexão do autor que eu, professora e pesquisadora, passei a analisar minha prática e questionar o que os estudantes estão aprendendo na escola no que se refere aos usos comunicativos da língua.

Embora Geraldi tenha se referido especificamente à carta enquanto texto escrito no meio familiar, é importante ressaltar que existem diversos tipos de carta, e que esse gênero textual, ao contrário do que muitos afirmam, não é ultrapassado ou fora de moda. Embora

façamos cada vez menos uso das cartas pessoais num modelo mais tradicional, ou seja, escritas à mão remetidas em envelopes através de empresas de envios de correspondências, ainda as utilizamos de forma importante no nosso cotidiano. Em nossa sociedade contemporânea, não é raro nos depararmos com cartas abertas de movimentos políticos, ou aquelas que divulgam os diversos grupos (literários, LGBT, categorias profissionais), por exemplo. Além disso, a carta coloca o estudante numa situação comunicativa mais concreta, ainda que se trate de uma situação fictícia como as que os alunos produziram. Portanto, o conhecimento desse gênero se faz atual, observando as adaptações necessárias às convenções da sociedade. Por mais que hoje a maioria das correspondências aconteça no mundo virtual, através de emails e redes sociais, e por isso mesmo, é preciso que os alunos conheçam os diferentes tipos de carta e como utilizá-los, a depender do objetivo que se pretende com eles.

O objetivo da produção do texto – seja no âmbito escolar, por necessidade social, ou, ainda, para passar o tempo e/ou por prazer– é nos fazer refletir sobre nós mesmos enquanto escritores, e para tal, todos os gêneros são importantes. De acordo com Bazerman,

É preciso considerar o que esperamos que resulte do nosso ato de escrever, o que pensamos daquelas pessoas que lerão nosso texto e terão que responder de certas maneiras para que nossas metas sejam alcançadas, quais recursos podemos identificar como disponíveis para o nosso uso, e o que pensamos de nossas próprias habilidades e poderes sociais [...]. Isto é, como percebemos e definimos nossos textos. (BAZERMAN, 2007, p. 48).

De posse destas habilidades e poderes sociais, os nossos estudantes serão capazes de atuar em sociedade de forma crítica e cidadã, e aí sim, nós, professores de língua portuguesa, teremos cumprido nosso papel principal: o de formar sujeitos pensantes, autônomos e livres para tomar suas decisões com sabedoria, consciência e responsabilidade.