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A grande produção química inorgânica arrancou na França e na Inglaterra e foi nestes dois países, dos anos 20 aos anos 50 do século XIX, que se desenvolveram e aperfeiçoaram algumas das suas estruturas tecnológicas mais fundamentais. Esta evolução respondia à crescente demanda por produtos químicos que funcionavam como matérias base nas indústrias dos têxteis (branqueamento químico), do sabão e do vidro, num primeiro momento, e depois também por influência da produção de adubos. O seu ponto de partida eram reações provocadas entre substâncias sob condições por vezes muito extremas de energia, e o seu objetivo, a colocação no mercado, em termos concorrenciais, tanto dos mesmos produtos químicos que eram obtidos anteriormente pela aplicação de métodos de extração e purificação de materiais naturais, como de outros novos, mais vantajosos, que podiam substituir os anteriores.

Dos produtos com maior procura e que justificaram uma alteração de paradigma tecnológico, há que referir em primeiro lugar a soda, um material constituído por carbonato de sódio, sulfureto de cálcio e hidróxido de sódio em proporções variáveis. A soda fabricada pelo processo Leblanc – basicamente carbonato de sódio, quando refinada – é uma soda sintética ou artificial: soda “factícia” segundo designação da época em oposição ao “natrão”, como era conhecido o material natural importado do Egipto ou a “barrilha”, a soda obtida pela combustão de plantas costeiras mediterrânicas.

Na primeira fase do seu fabrico, que envolvia a formação do intermediário sulfato de sódio, a soda Leblanc requeria como matéria- prima (para além do sal marinho) o ácido sulfúrico, logo este produto era também um exemplo representativo da indústria química em crescente desenvolvimento na Europa nesse período temporal, pois a expansão na produção da soda “artificial” induziu a expansão do próprio ácido sulfúrico. Estas duas indústrias tenderam a organizar-se localmente também: posto que este problema não se colocasse tanto com o sal, como os elevados custos do transporte do ácido sulfúrico pesavam consideravelmente na economia de todo o processo, procurava-se que a produção do ácido se realizasse no mesmo lugar onde se obtinha a soda. O aproveitamento do ácido clorídrico, produto involuntário da mesma etapa do processo Leblanc que originava o sulfato de sódio, para o fabrico do cloreto de cálcio (mais precisamente, hipoclorito de cálcio, produto extensamente aplicado no branqueamento de tecidos de linho e algodão e no fabrico de

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papel), introduziu novo fator integrador dos fabricos, a lógica de aproveitamento de subprodutos, no desenvolvimento de uma rede de dependências anunciadora de um verdadeiro complexo fabril.

Figura 1 - Forno de chama para sulfato de sódio. Na extremidade esquerda, a

lareira e na parte central, a câmara de calcinação; na extremidade direita, a caldeira onde se podiam atingir temperaturas da ordem dos 650ºC e onde se fazia a carga do sal. Na extremidade inferior da abóbada, visível o funil para a introdução do ácido sulfúrico (Cf. STOHMANN et al., pp.695 – 698).

Figura 2 – Instalação para obtenção de ácido clorídrico e também de ácido nítrico.

À esquerda, corte do forno segundo o eixo dos cilindros A A em ferro fundido para a decomposição do sal marinho, ou do nitrato de sódio, pelo ácido sulfúrico. À direita, corte transversal dos mesmos fornos. Nos garrafões C C fazia-se a condensação do cloreto de hidrogénio (Cf. PELOUZE; FREMY, 1855, Pl.11, pp.10-11).

A matriz tecnológica de fabricos interligados de que se fala – produção de carbonato de sódio (soda bruta e refinada), de sulfato de sódio, produção de ácidos inorgânicos, em particular, o ácido sulfúrico, e de sais deles derivados, estes últimos de uso mais restrito, do que os três primeiros, mas alguns especialmente interessantes, como o cloreto de cálcio ou o cloreto de bário, devido ao facto do seu fabrico reduzir o custo ambiental das produções principais, como a da soda – era a que estava, em meados do século XIX, presente nas fábricas dos grandes industriais de produtos químicos inorgânicos de base, em França, na Bélgica e na Grã- Bretanha.

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As fábricas de Kuhlmann1, em Lille, Loos e La Madeleine, assim como

a de Chauny, anexa à importante manufatureira de espelhos de Saint Gobain, são referências de eficiência e inovação. Identicamente, a fabricação do industrial escocês Charles Tennant, com produções anuais de ácido sulfúrico superiores a oito mil toneladas, serve de exemplo, como se pode depreender do excerto do Relatório sobre as

Artes Químicas na Exposição Universal de Paris de 1855, redigido

pelo químico português Júlio Máximo de Oliveira Pimentel (1809 – 1884):

“Na exposição de Mr. Tennant via-se toda a série de espécimes, desde a matéria prima até ao produto puro. As pirites de Inglaterra, de Irlanda e de Escócia, que lhe fornecem boa parte do enxofre para produção do ácido sulfúrico; o nitrato de soda do Perú, que lhe dá o ácido nítrico; o ácido sulfúrico, o sulfato de soda, o carvão, a soda bruta, a soda refinada, e os cristais de soda. Para fazer uma ideia aproximada da importância da sua fabricação, basta saber que ele produz acima de oito milhões de quilogramas de ácido; que tem para esse efeito vinte aparelhos de ácido sulfúrico, e que consome para mais de seiscentos mil quilogramas de carvão por dia. O que faz com que os seus produtos sejam mais baratos do que os das outras fábricas situadas fora de Inglaterra, é que tem o carvão por baixo preço, o enxofre mais barato do que o da Sicília, o sal e o nitrato de soda pelo mínimo preço, imenso consumo, e finalmente todos os elementos de uma fabricação económica, como não se encontram fora da Grã-Bretanha”.2

Diferentemente do que era solicitado no que dizia respeito ao ácido sulfúrico de Nordhausen, ou ácido «fumante», obtido por combustão de pirites e empregue com grande sucesso na tinturaria para a dissolução do anil, a concentração exigida para o ácido sulfúrico no fabrico da soda era baixa, não ultrapassando os 60º Bé (≈ 78% em H2SO4)3.

1 Frédéric Kuhlmann (1803 – 1881) iniciou a sua atividade na indústria química, com uma pequena unidade de produção de ácido sulfúrico pelo processo de câmaras em Loos, perto de Lille, em 1825. Antes disso, terá estudado no laboratório do químico Nicholas Vauquelin, quando este era responsável pela cadeira de Química Aplicada na Faculdade de Lille (Cf. AFTALION, 1991, p.32). 2 Cf. PIMENTEL, 1857 b, p. 582. Charles Tennant (1823 - 1906) industrial escocês e o fundador da Tharsis Company liderou várias empresas fabricantes de produtos químicos inorgânicos de base e de metais, nomeadamente explorando a patente de Henderson de obtenção de cobre a partir das cinzas das pirites ustuladas (Cf. CHECKLAND, 1967).

3 Utilizado para especificar o “ácido de câmaras”, o Grau Baumé foi substituído pela designação em % de H2SO4 (ou % MHS), à medida que se conseguiam ácidos com concentrações superiores a 93%. Segundo a Encyclopedia of Chemical Technology, de KIRK-OTHMER, este valor de composição quantitativa é o limite de aplicabilidade da escala Bé, porque a partir dele, a densidade do material não é mais apenas função da concentração desta substância na mistura em questão,

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Mas a produção industrial de soda não foi o único fator de desenvolvimento da indústria do ácido sulfúrico. Para além da crescente aplicação no campo da indústria têxtil, a criação de uma indústria de adubos químicos, os “superfosfatos”, foi outra das grandes causas para o aumento da importância do ácido sulfúrico como produto base na indústria, a ponto de ser tomado como indicador do estado económico das nações. Neste último caso, como no da soda, não era necessário o ácido sulfúrico concentrado, pelo que acima de tudo foi a tecnologia do ácido obtido pelo processo das câmaras de chumbo que respondeu a esta extraordinária demanda por produtos químicos inorgânicos de base.

Figura 3 – Plano geral de uma antiga instalação de ácido sulfúrico pelo processo de

câmaras de chumbo, obtido a partir da combustão de enxofre elementar. De assinalar secções importantes da instalação: à esquerda, parte inferior, os fornos para o enxofre. À direita, as torres de Glover e de Gay-Lussac. Ao centro, as câmaras e tambores de chumbo (Cf. LUNGE; NAVILLE, 1879, p. 211).

A câmara de chumbo foi uma modificação introduzida no antigo procedimento de combustão do enxofre, que se realizava debaixo de uma campânula de vidro, em presença de uma pequena quantidade de salitre. Os industriais John Roebuck e S. Garbett construíram em Birmingham a primeira, no ano de 1746. Tinha uma capacidade aproximada de 8 m3. A construção das câmaras progrediu muito

lentamente durante a segunda metade do século XVIII, apesar da redução nítida no preço do produto; como a procura de ácido estacionara, os industriais receavam os riscos que implicava o investimento de somas consideráveis nas instalações. Esta situação modificou-se com a grande demanda por ácido, provocada pela expansão do fabrico da soda (1810-1820). Como consequência, as

sendo que a relação de densidades para a mistura, entre aquela obtida pela escala Baumé, o ºBé, e a expressa em kgm-3 ou ρ, é estabelecida empiricamente pela expressão ºBé = Constante - (Constante/ρ), onde a constante assume o valor igual a 145 ou 144,3 conforme seja utilizada nos Estados Unidos ou em países europeus como a França ou a Alemanha.

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câmaras não só foram ampliadas como associadas em grupos. Em 1826, em França, a sua capacidade variava entre 600 a 1200 m3. O

título do ácido escoado das câmaras rondava os 50º - 52º Bé (≈ 63 a 66 % MHS). Durante as décadas de 40 e 50 do século XIX foram introduzidas duas inovações tecnológicas da maior importância, as “Gay-Lussac”, e as “Glover”, torres destinadas a recuperar os vapores nitrosos, reconduzindo-os ao ciclo de produção4. A combinação destes elementos generalizou-se rapidamente, e entre 1860 e 1870, o processo de fabrico do ácido sulfúrico adquiriu uma estrutura definitiva.

Paralelamente a estes aperfeiçoamentos, também foram realizadas ações importantes na fase da produção dos gases sulfurosos necessários para a posterior conversão em ácido sulfúrico, e que marcaram a tecnologia da produção deste ácido em toda a segunda metade do século XIX. Os problemas de mercado associados à hegemonia de preços do enxofre siciliano tinham induzido uma busca ativa por outras matérias-primas sulfuretadas que o pudessem substituir. O primeiro brevet para ustulação de pirites tinha sido obtido em 1818 por dois ingleses, Hill e Haddock, mas a situação resultara num impasse, tanto por não se conhecer aplicação para os resíduos da operação, quanto pelo teor demasiado baixo do enxofre nas pirites de que se dispunha na altura, que prejudicava a economia do processo. Foi Perret quem, em 1837, conseguiu explorar industrialmente o seu brevet de ustulação de pirites cupríferas, na fábrica de Saint-Fons, perto de Lyon. No primeiro ano de atividade, a instalação já tratava 2000 toneladas de matéria-prima.

Em 1840, quando o monopólio do enxofre siciliano foi levantado, os industriais ingleses começavam a explorar as pirites do País de Gales e da Irlanda, enviando os subprodutos, obtidos dos resíduos das ustulações, para as metalurgias. Ultrapassado o problema tecnológico da ustulação de pirites e do destino a dar aos resíduos da mesma, a partir de 1850 o uso destes minerais generalizou-se na Europa, mais rapidamente ainda, quando em 1860 se começaram a tratar as pirites oriundas da península ibérica.5

Em Inglaterra, no final da década de 70 do século XIX, 90% da fabricação do ácido pelo processo de câmaras era destinada às

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A “Gay-Lussac”, assim designada por ter sido concebida por Gay-Lussac (1778 – 1850), notável químico francês, em 1842 (Cf. BENSAUDE-VINCENT; STENGERS, 1996, p.236). A “Glover”, por ter sido inventada por John Glover que a apresentou em 1859. A torre de Glover complementava a de Gay-Lussac, e permitia ainda obter uma fração de ácido, que rondava os 60º Bé (≈78% MHS), o chamado “ácido de Glover”, mais concentrado do que aquele que se escoava das câmaras.

5 As referências históricas sobre a evolução tecnológica do processo de câmaras de chumbo e da ustulação de pirites foram retiradas de DAUMAS, 1968 b, pp.620-626.

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indústrias da soda e dos superfosfatos. Os outros destinos incluíam a preparação de uma vasta gama de produtos como os ácidos sulfuroso, nítrico, fluorídrico, bórico, carbónico, crómico, oxálico, cítrico, tartárico, acético e esteárico; o fósforo, o iodo, o bromo; os sulfatos de potássio, de amónio, de bário, de cálcio, de alumínio. Empregava-se ainda nas metalurgias do cobre, do cobalto, do níquel, da platina e da prata; na estanhagem e na galvanização do ferro, na cloruração e no revestimento a prata, no fabrico do dicromato de potássio, dos éteres, da dextrina e do álcool, no tingimento com ruiva, em quase todos os corantes orgânicos, nos curtumes, na refinação dos óleos.

Outras aplicações exigiam o ácido mais concentrado, o “ácido de 66º Bé”. Eram elas, na indústria das matérias gordas, para a separação dos ácidos gordos por destilação e na refinação de óleos, na indústria de compostos orgânicos nitrados, no fabrico de explosivos, nas sulfonações da indústria dos corantes, entre outros exemplos. O termo “ácido de 66º Bé”, genérico, podia englobar uma faixa de composições que iam desde os 93 aos 99% em H2SO4 (ou 93/99%

MHS) e caracterizar três tipos de ácido concentrado, o de “66º ordinário” (93/94% MHS), o de “66º pleno” (97/98% MHS) e o ácido “puro” (99,5/99,8% MHS). As instalações fabris de ácido de câmaras incluíam normalmente um aparelho concentrador. Devido à sua marcha deficitária, os mais antigos, de vidro, produziam apenas, e irregularmente, o ácido “ordinário”.

Figura 4 - Exemplo de um aparelho concentrador (alambique em platina) do ácido

sulfúrico proveniente das câmaras de chumbo (Cf. LUNGE; NAVILLE, 1879, p.370).

Os destiladores de platina eram os equipamentos que melhor resolviam o problema da concentração final do ácido sulfúrico, mas a tecnologia de laminagem do metal em questão limitava a construção de grandes aparelhos. Os maiores exemplares pesavam entre 30 a 50 quilogramas, e tinham uma capacidade para 500-600 litros. Não obstante o seu elevado custo, que sobrecarregava em excesso o capital fixo das grandes fábricas de produtos químicos, havia vantagens na utilização destes alambiques, nomeadamente a

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produção diária (2000 a 3000 litros de ácido concentrado), a poupança no combustível e na mão de obra e a sua durabilidade. Até meados do século XIX não se vislumbrou forma de contornar o peso do investimento no concentrador de platina. Porém, na década de 60, começaram a aparecer tentativas de construção de aparelhos mistos, em que parte da platina era substituída por chumbo, aproveitando o facto do ácido sulfúrico não atacar este último metal senão em concentrações já muito próximas dos 100%. O primeiro concentrador desta geração bem sucedido foi o aparelho de Faure e Kessler.6

Figura 5 – Instalação de produção de ácido sulfúrico pelo processo das câmaras de

chumbo. Na parte inferior, abaixo do chão das câmaras, a bateria de fornos para combustão de pirites (Cf. LUNGE; NAVILLE, 1879, pp.406-407, Planche VII).

Para além das grandes produções de soda e ácido sulfúrico, outros químicos de base, como o sulfato de sódio, e o ácido clorídrico, por exemplo, tiveram igualmente um papel estruturante no desenvolvimento da grande produção química. Mas a indústria química do século XIX avançou muito para lá deste espectro consolidado, de base para outras indústrias, tendo-se especializado também no sector dos produtos de grande consumo. A nível internacional, a modernidade das indústrias químicas ultrapassava as inovações tecnológicas e aperfeiçoamento da indústria dos ácidos e sais inorgânicos, e fazia-se também sentir nas indústrias ligadas ao processamento das matérias gordas, fortemente afetadas pelo desenvolvimento da Química Orgânica. Entram nesta categoria novas indústrias, como a das velas esteáricas e a das velas de composição, e também antigas, como a dos óleos (alimentares e industriais) e a dos sabões.

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