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168 produziriam modos de ser essencialistas para as suas personagens, arborizando e

Grandes Damas e a trinca de ases]

168 produziriam modos de ser essencialistas para as suas personagens, arborizando e

colmatando as multiplicidades. Com isso, Violeta se sente combalida com os corpos femininos representados através de estratégias de sedução - “é como se fosse um jogo, [...] usam isso como uma arma” (Violeta, notas de diário de campo, julho/2017) - jogos esses cuja tendência, ao olhar da Grande Dama, permite em suas partidas tão somente jogadores heterossexuais.

As aflições de Violeta foram pouco a pouco se dissolvendo quando ela se deparou com outras possibilidades quanto às representações de corpos, gêneros e sexualidades no Cinema de Retomada. Sentiu-se confortável com o casal de

Tatuagem dançando com os corpos colados, afirmou que o primeiro beijo dos

adolescentes em Hoje Eu Quero Voltar Sozinho “me passa uma calma...” e se revoltou com a cena de O Céu de Suely em que a responsabilidade de um filho recai tão somente nas costas da jovem mãe: “O homem é mais inconsequente, ele tem a liberdade

de ser mais inconsequente. Já a mulher, como ela vai arcar com a responsabilidade, precisa ser mais consciente” (Violeta, notas de diário de campo, agosto/2017). A imagem

quanto ao gênero dessa futura professora dialoga com Soares (2009) quando essa autora mostra que características postas como “juvenis” são fortemente atravessadas por gênero, de forma que atributos como “confusão, indefinição, irresponsabilidade, transgressão e impetuosidade” (SOARES, 2009, p. 105) são inerentes ao masculino.

E é por não se sentir contemplada pelas posições de sujeito dos filmes que consome que Violeta (re)cria seu próprio roteiro cinematográfico. Utiliza como mote uma memória que lhe causou tanto descontentamento quanto à imagem que possui sobre o próprio corpo. Assim como a memória de José Renato, o roteiro fabulado por Violeta é revelador quanto à imagem que essa Grande Dama possui em relação não só ao seu, mas aos corpos em geral. A diferença entre ambos é que Violeta depreende que o corpo não é apenas construído culturalmente, mas que também há uma gama de pedagogias interferindo, interpelando e pleiteando por essa construção.

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A cena do filme seria... acho que uma cena curta. Uns 20 minutos ao longo dessas fases da minha infância, de ficar magrinha, gordinha, e das pessoas criticando... “não, ela está muito magra”. Eu ainda lembro da cena do meu pai indo me apresentar para os meus tios do Rio de Janeiro, “não, ela está assim magrinha, mas é porque ela ficou doente, ela não é assim não”, como se estivesse justificando o porquê de eu estar magra. Nossa, essa cena me marcou muito. Acho que seria isso... Pensei numa atriz que poderia fazer... Não sei, mas uma atriz normal. Nem uma pessoa estupidamente bonita. Pessoa... com cara de “gente normal”, não hollwoodiana. [...] seria um filme que mostrasse isso, eu querendo ser vista como normal, mas passando essas fases. Até hoje em dia. A música para tocar na cena? Não sei... Alguma do Oasis?” (Violeta, notas de diário de campo, julho/2017)

A Grande Dama põe seu corpo em evidência no intuito de afrouxar as delimitações que circunscrevem as representações de um corpo feminino. Nesse sentido, para Preciado (2014, p. 26), o corpo é “um texto socialmente construído, um arquivo orgânico da história da humanidade [...] na qual certos códigos se naturalizam, outros ficam elípticos e outros são sistematicamente eliminados ou riscados”. Logo, “longe de ser neutra, a percepção e a descrição do corpo é um enunciado interpelativo performativo, e a linguagem que parece simplesmente descrever o corpo efetivamente o constitui” (SALIH, 2015, p. 112-113). E embora esteja se referindo à constituição de um corpo sexuado, a percepção de Salih (2015) também é cabível nos termos postos por Violeta, pois tão logo teve o seu corpo descrito como “magro” pela preocupação de seus pais em justificá-lo numa apresentação em família, o corpo dessa Grande Dama foi constituído como tal. E assim como os efeitos da nomeação de gênero são para toda uma vida, não foram poucos os momentos em que Violeta apontou, por meio do acionamento de suas memórias, não se sentir confortável com seu aparato morfocultural:

Eu acho meio estranho... [...] Eu acho que peguei isso! Devo ter pegado porque todo mundo diz que eu sou bonita, mas eu não acho. Eu me acho meio estranha. [...] Aí as vezes eu não vou para a praia porque eu não quero, não gosto de usar biquíni... Não, não sei... Porque como meus pais, eles querem que eu ande coberta da cabeça

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aos pés. Se eu tivesse como usar uma burca, eu com certeza usaria uma burca. Mas... é calor [risos]. (Violeta, notas de diário de campo, julho/2017)

Não foi apenas o seio familiar que ensinou (“eu acho que peguei isso!”) a Violeta o que seria um corpo sadio, um corpo normal, um corpo adequado; um corpo

desejável, aceitável; um corpo jovem, esguio, produtivo. E embora todos esses adjetivos

sejam “referências transitórias”, é imprescindível notar que eles “não perdem seu poder de excluir, inferiorizar e ocultar determinados corpos em detrimento de outros” (GOELLNER, 2007, p. 33). Os artefatos culturais que consumira ao longo de toda a vida também lhe ensinaram, uma vez que eles “terminam por incorporar e produzir significados, saberes e valores que concorrem para processos de subjetivação” (MAKNAMARA, 2016, p. 196). Os filmes que avidamente assistiu, as séries de TV que consumiu por horas a fio, os livros cujas páginas foram “devoradas”, as páginas de websites que frequentou... Todos esses e inúmeros outros artefatos são verdadeiras “máquinas de ensinar” (GIROUX, 2001), lhe fazendo refletir que “ao ponto de vista da maioria das pessoas, [...] elas querem ser

saradas. Porque elas assistem, veem, leem muitas coisas que dizem que aquilo é um padrão de beleza, então as pessoas querem mostrar esse padrão” (Violeta, notas de diário de

campo, julho/2017).

A Grande Dama assume o caráter pedagógico dessa miríade de dispositivos e apreende que quando um discurso sobre o corpo é evocado num determinado aparato midiático – “muitas coisas que dizem que aquilo é um padrão de beleza” – seus “espectadores” passam a internalizá-lo – “então as pessoas querem mostrar esse

padrão”. Isso porque “diferentes marcas se incorporam ao corpo a partir de

distintos processos educativos” que dizem de/para/sobre nossos corpos, “por vezes, de forma tão sutil que nem mesmo percebemos o quanto somos capturadas/os e produzidas/os pelo que lá se diz” (GOELLNER, 2007, p. 29).

Potencialidades que essa Grande Dama exibe para suas futuras práticas de ensino, ao inferir que um corpo não prescinde dos discursos, aparatos e tecnologias

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