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O Prof. Cândido Meirelles de Souza era um cientista fascinado pelo cérebro

M

hemisférios, o córtex cerebral, os lóbulos, o corpo caloso, o tálamo, o hipotálamo, o cerebelo etc. Era intrigado, principalmente, pelo que esse órgão de cerca de mil e trezentos centímetros cúbicos era capaz de realizar e podia armazenar.

Consciência.

Imaginação.

Percepção.

Memórias.

Sonhos.

Alma?

A capacidade de raciocinar, de interpretar os sentidos, de planejar o futuro, de reviver o passado, de criar uma obra de arte, de compor uma música, de inventar a escrita.

— O cérebro humano encerra todo um universo em seu interior — costumava afirmar aos seus alunos iniciantes. — Ele é muito mais do que neurônios, descargas elétricas, recordações, instintos primitivos, morada dos pesadelos e experiências de vida...

Havia um entusiasmo genuíno em suas palavras que, apesar de seus esforços, não encontrava eco nos estudantes. Talvez fosse por sua aparência desleixada, os cabelos negros em desalinho, as roupas amarrotadas, os óculos de aros grossos e lente fundo de garrafa. Fato era que os alunos preocupavam-se mais em memorizar suas aulas, as matérias, os nomes difíceis para, assim, tiraram o mínimo de nota necessário que os possibilitassem a passar de ano. A maioria estava interessada em campos mais rentáveis como a cirurgia estética. Por outro lado, tampouco o Prof. Cândido se lixava para o futuro de sua plateia individualmente. Excetuando-se um ou outro realmente de valor, a maioria não trazia dentro de si nenhuma chama do verdadeiro homem de Ciência, do desbravador, do sequioso pelo saber. Não eram taças aptas a receber o vinho do conhecimento, mas latrinas transbordando daquilo para a qual foram feitas. Assim, ele palestrava tão somente para as ínfimas centelhas quanto para si próprio, alimentando o fogo furtado por Prometeu.

— Fala-se muito em viajar até as estrelas — prosseguia em seu monólogo, ar sonhador —, explorar o Universo. Enquanto isso, o próprio universo dentro de cada um de nós permanece um vasto desconhecido. Seus meandros, sua escuridão, seu éter, seus segredos. Nosso cérebro tem quase tantos neurônios quanto a Via Láctea tem de estrelas, porém, ao contrário destas, cada neurônio conecta-se a outro através de milhares e milhares de sinapses. Toda uma galáxia unida, pulsante, pensante. A maior maravilha que a Natureza criou em bilhões de anos.

Intimamente, o cientista pensava: "E tudo isso desperdiçado nesse bando de retardados. Melhor fariam eles se cedessem seus miolos moles à Ciência".

O Prof. Cândido, como uma boa caricatura do cientista louco, possuía um laboratório num dos quartos de seu apartamento. Deixaria qualquer esposa preocupada, não fosse ele solteiro. Tinha inúmeros aparatos adquiridos ao longo de uma vida. Mas não possuía o principal, o material de seu fascínio, a fonte primordial de seu estudo: um cérebro humano.

A universidade guardava seus próprios exemplares. A maioria era oriunda de indigentes; um ou outro, fruto de doação do próprio falecido.

Todavia, não tinha como o cientista apanhar um desses cérebros para suas próprias pesquisas. Não era como uma caneta ou um clipe de papel que pudesse trazer para casa.

Tampouco era uma imitação bananeira de Victor Frankenstein a ponto de violar túmulos atrás de matéria-prima.

Não tinha jeito.

Via-se num beco sem saída.

Até receber um pacote de além-mar.

2 - MEDIEVAL

Enquanto o Prof. Cândido era o tipo de cientista sedentário, confinado aos laboratórios e salas de aula, seu colega, o Dr. Arvid Rogerson, historiador e arqueólogo, fazia jus a sua ascendência escandinava e empreendia longas viagens. A mais recente delas levara-o ao Reino Unido, onde fora estudar in loco sobre as incursões vikings. Na Irlanda, em um castelo construído sobre as ruínas de um mosteiro, fora encontrado uma entrada secreta que conduzia a uma sala. Ao que os indícios apontavam, o refúgio fora habitado por um monge profano, pois, além de seus aparatos religiosos, havia outros voltados à alquimia. Eram achados preciosos, contudo, os atuais proprietários do castelo não estavam interessados e venderam ou doaram a maior parte a museus, pois pretendiam transformar o castelo em um hotel. Conservaram apenas alguns artigos que, acreditavam, não iria despertar maior interesse ante o tétrico de suas naturezas. E um deles, o Dr. Rogerson conseguiu colocar as mãos e remeter ao Prof. Cândido.

Foi Mário, o porteiro do prédio, quem avisou o professor.

— É pesado — advertiu.

Junto ao engradado que trouxe o material, havia uma carta escrita pelo historiador com sua letra miúda e hedionda.

Prezado Cândido.

Encaminho-lhe uma relíquia que poderá despertar a sua curiosidade.

É apenas um empréstimo, e com a condição de que reparta comigo o que descobrir.

Trata-se de uma antiguidade medieval. Sei que é algo mórbido, mas o seu trabalho é mórbido por natureza! É um jarro tão antigo quanto os mais velhos vinhos existentes no mundo, só que, em vez de suco de uva, traz outra coisa.

Um cérebro!

Sim, um cérebro humano preservado!

Pertenceu a um homem da Idade Média chamado Johann Siegfried Jacobs.

Segundo um pergaminho, esse indivíduo lidava também com alquimia, possuindo objetos mágicos como uma bola de cristal, que, aparentemente, era amaldiçoada. Portanto, deduzo que tinha algum relacionamento com o monge herege. Se trabalhavam juntos ou eram rivais, ainda é cedo para concluir. De concreto está que o tal Jacobs morreu no mosteiro e lá, alguém serrou seu crânio e arrancou o cérebro. O monge? Quem sabe.

O órgão está conservado num líquido escuro e repugnante, tão espesso quanto o mel, tudo muito bem lacrado em vidro. Só fato de existir até os dias de hoje é incrível. Um achado arqueológico que merece ser preservado e estudado. E pensar que os tolos administradores do castelo cogitaram em dar fim a ele. Chega a ser surpreendente. Se fossem tão esperto, colocariam em exposição e o associariam a alguma macabra história de fantasma a fim de atrair turistas. Sorte a nossa.

Sei que não é exatamente um cérebro novinho em folha conforme gostaria, mas, convenhamos, não deixa de ter o seu atrativo também.

Tome cuidado com ele. Devo retornar em um mês, quando espero que já tenha algum resultado. Não se esqueça de me incluir no artigo que vier a escrever.

Deveria tirar o traseiro da cadeira e viajar um pouco, Cândido.

Aqui, por exemplo, tem uma cerveja preta que estou adorando. Ah, eu sei, você também não bebe...

Seja como for, sláinte!

Até a minha volta.

Dr. Arvid Rogerson.

Ele sempre fizera questão do "doutor".

Lentamente, o Prof. Cândido Meirelles de Souza desembrulhou o pacote.

Era como retornar cerca de oitocentos anos a um passado sombrio, mergulhado em trevas.

Sentiu-se um pouco arqueólogo também.

3 - UNIVERSOS QUE SE TOCAM

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