• Nenhum resultado encontrado

Fonte: Arquivo pessoal (1977).

60

Nós que preparávamos a merenda, com o que tinha, era macarrão com almôndega, arroz com feijão, achocolatado, bolacha salgada e doce. Fazíamos na cozinha da escola, os alunos eram poucos, então conseguíamos conciliar as aulas, com a cozinha e a limpeza da escola tudo realizado por nós. De comida da cultura não tinha nada, pois tínhamos que fazer a merenda que mandavam nós fazer. Quem mandava nós fazer era o responsável pela educação da época, não lembramos o nome. Mas era assim, os alunos tinham que comer o alimento que era servido na escola, e assim os alunos cresceram comendo estes alimentos e se acostumaram, fazendo parte do dia a dia deles. Hoje vejo que muitos dos que foram meus alunos ainda comem o alimento tradicional, mas seus filhos ou netos não querem, porque na escola ainda é servida a comida não indígena. Nós também temos muitos dos alimentos não-indígenas no nosso dia-a-dia, primeiro aprendemos a comer na nossa escola e comíamos por necessidade mesmo, depois tínhamos que preparar estes alimentos para os alunos porque mandavam nós fazer, e assim fomos nos habituando ao alimento não-indígena. Na época não sabíamos que era importante fazer o alimento tradicional na escola, para manter a cultura, na nossa formação nunca falaram disso, pra falar a verdade não sabíamos nem para que servia a escola, nos trabalhávamos para garantir nosso sustento, fazíamos o que os chefes mandavam.

Carneiro da Cunha (2009) comenta que muitas ações governamentais com apoio da igreja, escolas e organizações não governamentais causaram interferências nos modos tradicionais dos povos indígenas do Brasil, esta luta em desestruturar a cultura indígena perdura desde 1500. Por tanto não é estranho que hábitos tradicionais dos povos indígenas estejam em muitos casos esquecidas, pois foram empenhados esforços para incorporar os indígenas à sociedade brasileira. O relato dos professores descreve esta realidade, pois foram orientados desde sua formação como monitores a seguir regras oriundas da mantenedora da escola, e sobre a questão da merenda escolar deveriam servir os alimentos que mandavam servir. Roberto e Armira relatam:

Ficamos tristes em saber que muitas perdas culturais são causadas pela escola, desde a sua implantação até hoje, a cultura alimentar é uma delas. Antes a merenda servida nas escolas indígenas da Terra Indígena Rio das Cobras eram alimentos não-indígenas, e os pratos tradicionais não eram utilizados. A merenda que nós fazíamos era arroz, feijão e sempre tinha uma carne, ou fazíamos macarrão, quando não tinha comida pesada dávamos bolacha.

Hoje vejo que a escola utiliza os pratos típicos em momentos especiais como em projetos escolares. Acredito que agora é o momento de lutarmos para que a cultura alimentar indígena seja resgatada dentro da escola, pois sabemos da importância desta para a preservação e valorização cultural no nosso povo, da nossa identidade.

61

Com o relato dos dois professores indígenas foi possível identificar que de 1976 até 2000 quando ministraram aulas, a escola implantada dentro da terra indígena fazia uso diário do alimento não-indígena na merenda escolar, não considerando significante os hábitos culturais da comunidade local. Ou seja, a questão da valorização cultural na escola não era trabalhada, o intuito da escola era o de formar o indígena para o mercado do trabalho, para tanto, era preciso que dominasse a língua portuguesa e noções dos hábitos não-indígenas.

4.2 MEMÓRIAS DE DONA MARIA

Dona Maria2, 72 anos, mãe de cinco filhos mora na Terra Indígena Rio das Cobras desde que nasceu. Segundo ela “quando era mais nova no Rio das Cobras tinham poucas famílias, elas viviam nas pequenas comunidades que existem até hoje, mas aumentaram bastante, tiveram muitos filhos”. No ponto de vista de Dona Maria houve um aumento populacional indígena significante ao longo dos anos. Dados da Funai/Guarapuava descrevem que no ano de 1989 a Terra Indígena Rio das Cobras tinha uma população de 1.596 somando Guaranis e Kaingangs. Na época, os dados eram gerais, não distinguiam as etnias. No ano de 2010, segundo o IBGE, a população indígena era de 2.239 (os dados também não distinguiram as etnias), e em 2016, segundo a Unidade de Saúde da Terra Indígena Rio das Cobras, a população Kaingang é de 2.388 e a Guarani é 221 totalizando 2.609 indígenas. Os dados populacionais da Terra Indígena Rio das Cobras certificam o ponto de vista de Dona Maria, apesar dos dados da Funai/Guarapuava e do IBGE não discriminarem os dados por etnias.

Das práticas culturais como dança, música e rituais Dona Maria relata:

Muito pouco restou da nossa cultura, lembro que meus pais cantavam algumas músicas e danças, dos rituais não lembro de ter visto e todos eram feita pelo kuiá (curandeiro), e estes rituais sempre foram secretos. Não era qualquer um que podia conhecer os rituais do kuiá, sempre tinha um escolhido geralmente a pessoa escolhida aparecia num sonho para o kuiá e então era passado todos os saberes dos rituais para o escolhido e este não podia ser repassado para mais ninguém, porque o poder dos rituais não

2

62

iriam fazer efeito. As músicas e as danças tradicionais se perderam no tempo. Meus pais falavam que não podíamos cantar e nem dançar porque era proibido, não sei quem proibiu porque eu era criança e nunca perguntei, porque obedecia meus pais. Mas tem algumas pessoas da comunidade que ainda sabem alguma coisa da dança e da música, mas são bem poucas. Quando era moça aprendi a dançar fandango no clube que foi construído no Rio das Cobras, e essa dança sei que não é Kaingang. Hoje por causa de muitas leis que ajudam a gente a resgatar a nossa história, a escola está buscando resgatar tradições esquecidas como a comida, dança e a música, percebemos que temos que manter viva a nossa cultura. Se antes fizeram nós esquecer da nossa cultura, hoje nós buscamos reavivar o passado com nossos filhos e netos, com a ajuda da escola.

Sobre a dança e a música do Kaingang a Revista Manchete (1976) registrou na Foto 6 abaixo o jovem Kaingang com uma sanfona, com a seguinte frase “Cainguangue diverte-se com a sanfona. Ele é o animador dos raros bailes promovidos pela tribo”. Ao mostrar esta foto Dona Maria relembra que “já era mocinha e ficava assistindo quando as pessoas dançavam, era muito divertido”.

Documentos relacionados