• Nenhum resultado encontrado

om a retirada de cena do Fome Zero e o lançamento do Programa Bolsa Família (PBF), tem início um movimento que passa pela consolidação de um tipo de hegemonia interna do PT,246 que já havia

sido expressa nas eleições de 2002 – com a Carta ao Povo Brasileiro -, e de institucionalização das lutas e conquistas sociais. Esse movimento ocorre também pelas formas de se gerir e tratar a pobreza naquele contexto da chegada do PT à Presidência.

Há todo um debate teórico – realizado principalmente pelas ciências política e social - em torno do que seria esse novo caminho institucional, aberto não somente pelo que fez o governo de Lula, suas características principais, mas pelas expectativas em torno do que se julga que deveria ter sido esse governo onde a solidariedade foi politicamente qualificada e, ao longo de dois mandatos, pode-se dizer, personalizada no próprio Lula com, como escreveu o psicanalista Tales Ab’Sáber, seu “carisma pop”.247

No campo das políticas sociais e das ações assistenciais, a solidariedade já havia sido trabalhada e transviada nos anos 90, enquanto um valor de aglutinação e como elemento de conciliação entre classes. No terreno das expectativas posteriores a 1988, nas formas que a democracia ia adquirindo no país, a solidariedade foi mobilizada pela Campanha da Ação da Cidadania para chamar a atenção aos abismos sociais brasileiros, foi transviada pelo PCS como forma de conciliar projetos políticos inconciliáveis e permaneceu sendo defendida no campo da sociedade civil como um “valor fundamental das relações sociais, articulações e práticas coletivas de resistência e combate à pobreza”.248

Nos termos do benefício coletivo, a solidariedade encontrou a racionalidade econômica nas políticas assistenciais para a distribuição de renda que foram nacionalizadas; com o aceno de um desenvolvimento econômico que incluiu dentre suas metas as crianças na escola.

Em meados dos anos 90, como registou Scherer-Warren, a “supremacia da solidariedade” articulou e renovou valores da tradição católica em uma “nova ética

246 V. COELHO, Eurelino. Uma esquerda para o Capital – Crise do Marxismo e Mudanças nos Projetos Políticos dos Grupos Dirigentes do PT (1979-1998). Tese. Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2005.

247 V. AB’SABER, Tales. Lulismo – Carisma pop e cultura anticrítica. São Paulo: Hedra, 2016 [2. Ed]. 248 SCHERER-WARREN, Ilse. A ação cidadã no combate à pobreza. In: Formas de Combate e Resistência à Pobreza / Organização de Luiz Inácio Gaiger. – São Leopoldo: Ed. Unisinos, 1996. p.17.

solidária” que possibilitou a “articulação de várias matrizes ideológicas – marxista, iluminista e religiosa” de modo que permitiu a criação “de um valor básico de responsabilidade solidária da sociedade civil, como decorrência das denúncias públicas das condições de miséria em nosso país”.249

É significativo o fato de que a religiosidade, em suas diferentes faces, tenha, no Brasil, um longo histórico associado às ações caritativas, explicitamente, pelo menos até 1940, à própria atuação da LBA e, à permanência de instituições filantrópicas - sem muitas regulações - mesmo após 1988 com a promulgação da Constituição que, por sua vez, elevou a assistência social para o campo das políticas sociais.250 Há que se

considerar que mesmo as mobilizações sociais organizadas correram lado a lado e, em meio as dessas organizações que já tinham tido tempo de enraizar socialmente um discurso de apelo comunitário, solidário e religioso com a constituição das mediações e filtros morais pelos quais se identificava os pobres.

Por essa via, a cultura política conciliatória e solidária, que possibilitou a distribuição de renda junto a conciliação de interesses sociais distintos, estava constituída no lugar da mediação de uma relação histórica entre o que estava posto e as possibilidades a serem construídas naquele contexto que se abria com a chegada do mais importante partido popular de esquerda à Presidência.

Nesse sentido, o chão social dos anos 2000 já estava renovado pela cultura política cidadã e de uma ética intermediada pelo enfrentamento, mobilizado por valores cristãos, às visões elitistas da sociedade brasileira. Como argumentou Lula já nos idos de 2014 em uma avaliação de seu governo: “as pessoas têm que saber que distribuir renda é um compromisso social, eu diria quase, num é socialista, num é comunista, é uma coisa cristã”.251 O valor religioso, diferentemente do comunismo ou do socialismo,

não fere o senso comum e abriu caminho para o embaralhamento entre os conflitos de classe e a atenção à um projeto econômico que atenderia aos interesses dominantes.

249 Trechos citados nesse último parágrafo estão em SCHERER-WARREN, Ilse. A ação cidadã no combate à pobreza. In: Formas de Combate e Resistência à Pobreza / Organização de Luiz Inácio Gaiger. – São Leopoldo: Ed. Unisinos, 1996. p.17.

250 Sobre esse tema, para uma abordagem mais detalhada, é válida a leitura do “Capítulo 1 O reconhecimento da Política de Assistência Social como Política Pública: longo caminho” da dissertação de AMÂNCIO, Júlia Moretto. Para além do neoliberalismo: os dilemas, ambuiguidades e desafios da gestão de políticas sociais através de parcerias entre sociedade civil e Estado / Campinas: [s.n.], 2008. Dissertação (mestrado) Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. A autora passa pela influência da tradição Portuguesa de Filantropia e das Santas Casas, ainda no período da colonização, até meados dos anos 2000.

251 Trecho, em transcrição livre, de entrevista de Lula em: CARTA PLAY. Entrevista de Lula à Mino Carta. 1˚ parte. Realizada em 10 out. 2014 e publicada em 12 out. 2014 no canal Carta Play do YouTube. Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=loTiN45zblI>. Consultado em: 12 abril 2018.

Pensar a solidariedade enquanto um valor de mobilização que permitiu certa articulação política significa evidenciar motivações que permitiram a coexistência de vários projetos geridos tanto na esfera governamental, com ações e parcerias com ONGs, tanto na esfera da mobilização social pelas mãos dos organismos da Igreja, partidos de esquerda e movimentos sociais. Este é um caldo que pode ter preparado o terreno – adubado por postulados neoliberais - que amarrou a cultura política tradicional e a cultura política de resistência no amplo leque de ações de combate à pobreza, entendidas então como impulsionadoras do desenvolvimento social que foram promovidas a partir de 2003, dentre elas, o PBF.

2.1 - Programa Bolsa Família: “uma nova cultura institucional”252

O lançamento do PBF se deu em meio a um anunciado rompimento dos quadros do PT com seu governo, dentre outros motivos, devido aos rumos das políticas sociais, principalmente no tocante à participação popular em torno da disputa sobre o tipo de cidadania que seria característica desse governo. Este era um projeto caro ao PT e aos movimentos populares, gestado, no mínimo, desde a década de 80.253 Frei Betto

registrou bem o clima de renúncia a esse projeto que pairava no lançamento do programa:

A 20 de outubro de 2003, em cerimônia no Palácio do Planalto, Lula lançou o Bolsa Família, que unificou os programas sociais. Não havia uma única logomarca do Fome Zero nos painéis decorativos do salão do palácio. Será que algum setor do governo pretendia minar o Fome Zero, colocando-o de escanteio? Não parecia ser o caso do presidente, que o citou ao discursar. Porém, infelizmente a unificação ficou com a marca Bolsa Família.254

Com a opção política de reorganização do Fome Zero - “um programa de caráter emancipatório” - por meio da Medida Provisória (MP) n˚132, o PBF - “de caráter

252 BRASIL. Presidência da República, Casa Civil, Subchefia para Assuntos Jurídicos. E.M. n˚47/ C. Civil-PR. Brasília, 20 out. 2003. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Exm/2003/EM47-CCIVIL-03.htm>. Consultado em: 24 jul. 2017. 253 Cf. PAOLI, Maria Célia; TELLES, Vera da Silva. Direitos Sociais – Conflitos e negociações no Brasil contemporâneo. In: Cultura e política nos movimentos sociais latino-americanos: novas leituras / Sonia E. Alvarez, Evelina Dagnino, Arturo Escobar - organizadores. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000. 254 BETTO, Frei. Fome Zero: Ganhos e Perdas. In: Fome Zero: Uma História Brasileira. Org.: Adriana Veiga Aranha. – Brasília, DF: Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Assessoria Fome Zero, v. 1, 2010. pp. 138-9.

compensatório”- 255 foi criado em 20 de outubro de 2003. A Exposição de Motivos

(E.M.) que justifica o projeto da MP introduz o assunto ao apontar que um dos principais desafios da sociedade brasileira é o combate à fome e à pobreza. Nesse desafio estaria incutida a garantia aos brasileiros do “pleno exercício da cidadania e de seus direitos”.

A E.M. identifica um “consenso” em torno da “importância de programas de transferência de renda” às famílias pobres “não somente para melhorar concretamente seu nível de renda, mas também para ampliar o acesso a políticas universais, em especial as de educação, saúde e de alimentação”. Aponta o referido documento que os programas de tal natureza criados a partir de 2001 (no governo de Cardoso) por terem sido gestados de forma independente, não se constituíram em “uma política dotada dos necessários atributos de complementariedade e integralidade”, assim, em favor da “racionalidade, organicidade e efetividade ao trabalho do Estado na gestão e execução das ações de transferência de renda” o PBF estimularia “uma nova cultura institucional” com um “inédito modelo de gestão” para o “enfrentamento da pobreza” e na “qualidade do gasto social”.

A E.M. segue com a explanação de que o objetivo básico do PBF é “combater a pobreza” e dar condições para que as famílias enfrentem a vulnerabilidade256 tanto “por

meio de um benefício monetário que visa ao atendimento de suas necessidades básicas, quanto pelo estabelecimento de condicionalidades que induzem o acesso aos direitos sociais de segurança alimentar, saúde, educação e assistência social”, com a pretensão de “contribuir para a emancipação dessas famílias, criando oportunidades de inclusão

255 Ambas as citações entre aspas estão em: BETTO, Frei. Fome Zero: Ganhos e Perdas. In: Fome Zero: Uma História Brasileira. Org.: Adriana Veiga Aranha. – Brasília, DF: Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Assessoria Fome Zero, v. 1, 2010. pp. 139.

256 “Vulnerabilidade” é um termo que começa a ser amplamente utilizado nos anos de 1990, conforme registra DEAK, Mariel Serapião. O Bolsa Família no cotidiano: conexões e desconexões em um território vulnerável. Dissertação. Escola de Administração de Empresas São Paulo (FGV), 2018. p. 36: “Esta abordagem entra em cena nos anos 1990 a partir dos estudos sobre risco, desastres e ameaças naturais, passando depois a ser utilizada nos estudos sobre pobreza e privação. Ela entrou na agenda de diversas instituições internacionais – tais como o Departamento para o Desenvolvimento Internacional (DFID), o Instituto de Estudos sobre Desenvolvimento (IDS), Oxfam e PNUD, entre outros – que foram responsáveis pela disseminação dessa agenda através da produção de estudos sobre vulnerabilidade e de uma série de manuais (guidance sheets) que tinham como objetivo propagar o uso desse framework teórico”. Para uma análise crítica acerca dos fundamentos teóricos que conduzem as políticas sociais V. MAURIEL, Ana Paula Ornellas. Combate à pobreza e desenvolvimento humano: impasses teóricos na construção da política social na atualidade. Tese. Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais. Unicamp: 2008.

social”.257

Esses argumentos são amplamente utilizados na bibliografia sobre o tema, seja para apresentar o programa ou para as explicações dos motivos que levaram à criação do PBF. Em avaliação posterior, em livro que celebrou o decênio do PBF, a economista Tereza Campello registraria como a criação do PBF constituiu a “(...) primeira vez que se desenhava uma política pública nacional voltada ao enfrentamento da pobreza, visando garantir o acesso de todas as famílias pobres não apenas a uma renda complementar, mas a direitos sociais”.258

Assim, a MP n˚ 132, unificou o Programa Nacional de Renda Mínima vinculado à Educação – “Bolsa Escola” (de 2001), o Programa Nacional de acesso à Alimentação – PNAA (de 2003), o Programa Nacional de Renda Mínima vinculada à saúde - “Bolsa Alimentação” (de 2001), o Programa Auxílio-Gás (de 2002) e o Cadastro Único do Governo Federal (de 2001).259 Em 2004, a MP foi convertida na Lei n˚10.836260 que foi

regulamentada pelo Decreto n˚ 5.209261 do mesmo ano.

A E.M. da MP previa a organização de uma instância de controle social, posteriormente consolidada como CGI – Conselho Gestor Interministerial, o que por efeito, na avaliação posterior de Frei Betto a Lei que instituiu o PBF:

excluiu, assim, os Comitês Gestores, embora o artigo 9˚ preveja que ‘o controle e a participação social do programa Bolsa Família serão realizados, em âmbito local, por um conselho ou comitê instalado pelo poder público municipal na forma do regulamento. ‘Os membros desse conselho ou comitê não seriam remunerados.262

257 Todos os trechos citados referem-se ao documento: BRASIL. Presidência da República, Casa Civil, Subchefia para Assuntos Jurídicos. E.M. n˚47/ C. Civil-PR. Brasília, 20 out. 2003. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Exm/2003/EM47-CCIVIL-03.htm>. Consultado em: 24 jul. 2017. 258 CAMPELLO, Tereza. Uma década derrubando mitos e superando expectativas. In: Programa Bolsa Família: uma década de inclusão e cidadania / organizadores: Tereza Campello, Marcelo Côrtes Neri. – Brasília: Ipea, 2013. p. 15.

259 BRASIL. Presidência da República, Casa Civil, Subchefia para Assuntos Jurídicos. Medida Provisória

132, de 20 de outubro de 2003. Disponível em: <

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/mpv/Antigas_2003/132.htmimpressao.htm>. Consultado em: 24 jul. 2017. Acrescenta-se que o PETI – Programa de Erradicação do Trabalho Infantil foi incorporado ao PBF em 2005.

260 BRASIL. Presidência da República, Casa Civil, Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei n˚ 10.836, de 9 de janeiro de 2004. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004- 2006/2004/lei/l10.836.htm>. Consultado em: 22 ago. 2017.

261 BRASIL. Presidência da República, Casa Civil, Subchefia para Assuntos Jurídicos. Decreto n˚ 5.209 de 17 de setembro de 2004. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004- 2006/2004/decreto/d5209.htm>. Consultado em: 18 ago. 2017.

262 BETTO, Frei. Fome Zero: Ganhos e Perdas. In: Fome Zero: Uma História Brasileira. Org.: Adriana Veiga Aranha. – Brasília, DF: Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Assessoria Fome Zero, v. 1, 2010. p. 139.

Os Comitês Gestores, como visto no capítulo anterior, eram o ponto forte do Fome Zero e, em fins de 2003, estavam ativos em “2.400 municípios”. Ainda na avaliação de Frei Betto: “havia uma nítida tendência, dentro do Bolsa Família, de suprimi-los em nome do respeito ao ‘pacto federativo’. Leia-se: fortalecer os prefeitos por razões políticas”.263

De fato, em texto de 2005, a historiadora Ana Fonseca - considerada no meio acadêmico como uma das idealizadoras do PBF -,264 pontuaria, citando o Fome Zero

indiretamente ao fazer referência ao “programa Cartão-Alimentação”, que no seio dos debates sobre a questão da descentralização, na crítica ao argumento da “baixa tradição republicana nos níveis subnacionais de governo”, esse “mesmo argumento serve para justificar o seu contrário, isto é, somente após um processo de maior responsabilização dos municípios pelo bem coletivo é que a tradição republicana pode ser criada ou amadurecida”. Na avaliação da autora sobre as opções que foram feitas: “do lado da sociedade civil”, a criação de uma “cultura de solidariedade” demandaria e emergiria “do avanço da tradição republicana no interior do Estado”.265 Como decisão técnica de

se extinguir os Comitês Gestores, a justificativa se dava não por:

uma visão centralizadora no campo das políticas públicas, mas uma posição realista: em primeiro lugar porque o Brasil é um país federalista e não há política pública, para ser bem-sucedida, que passe ao largo dos estados e municípios; em segundo lugar porque faz convergir os esforços do Estado no combate à pobreza e à desigualdade e essa era a ênfase posta na pactuação.266

A discussão em favor do controle social pelos governos e não pelos comitês gestores estava centrada no argumento da paridade. Como haviam vários programas em funcionamento, era preciso que todos fossem geridos da mesma forma e sob os mesmos critérios e, que o controle do gasto público fosse realizado pelas instâncias cabíveis, assim como o cadastramento dos beneficiários e sua exclusão quando fosse o caso.

263 BETTO, Frei. Fome Zero: Ganhos e Perdas. In: Fome Zero: Uma História Brasileira. Org.: Adriana Veiga Aranha. – Brasília, DF: Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Assessoria Fome Zero, v. 1, 2010. p. 139.

264 Por ter sido responsável não apenas pela implantação das experiências do PGRFM em meados de 1990 em São Paulo, mas integrante no governo de transição Cardoso/Lula pela equipe técnica da área social. 265 Todos os trechos citados de: Fonseca, Ana Maria Medeiros da.; Roquete, Claudio. Proteção Social e Programas de Transferência de Renda: Bolsa Família. In: Lilia Montali (org.). Caderno de Pesquisa NEPP. Proteção Social e Transferência de Renda. Edição Especial em Homenagem à Ana Fonseca, n. 86, jun. 2018, p.20.

266 Fonseca, Ana Maria Medeiros da.; Roquete, Claudio. Proteção Social e Programas de Transferência de Renda: Bolsa Família. In: Lilia Montali (org.). Caderno de Pesquisa NEPP. Proteção Social e Transferência de Renda. Edição Especial em Homenagem à Ana Fonseca, n. 86, jun. 2018, p.21.

Fonseca ressalta que essa discussão teria ganhado corpo “após a constatação de problemas de ordem político-institucional na esfera local”. A autora os enfatiza como: “Resumidamente: resultado da pouca tradição republicana no plano municipal ou da cooptação das organizações civis por instituições, como Igreja, corporações profissionais, partidos, famílias influentes, crime organizado, etc.”267

Vale ressaltar, que o embate pode ser ilustrado também pela divisão de áreas entre as equipes do governo de transição, visto que José Graziano da Silva, como articulador do Fome Zero, trabalhava não na equipe da área social, mas, na responsável pela segurança alimentar e nutricional. Até o lançamento do PBF houveram divergências – muitas vezes levadas à público por declarações na imprensa – entre os ministros e assessores de Lula, em especial, entre Buarque, Silva e Betto sobre as formas das políticas sociais no novo governo, incluídos os temas da focalização, unificação e fiscalização.268

Cabe observar, que o Decreto n˚ 4.675 de 2003 que regulamentou a MP n˚108, de 27 de fevereiro de 2003 sobre o Programa Nacional de Acesso à Alimentação – “Cartão Alimentação”; instrumento do Fome Zero, previa convênio de cooperação com os Estados e municípios, de modo que a instalação do Comitê Gestor previa “a capacitação de agentes locais; o monitoramento, o acompanhamento e a avaliação” dos Comitês e “o cadastramento dos indivíduos e famílias elegíveis ao ‘Cartão Alimentação’ no Cadastro Único dos Programas Sociais do Governo Federal”. O recebimento do benefício estaria “associado à participação das famílias beneficiadas em atividades comunitárias e educativas, inclusive aquelas de caráter temporário, e outras formas de contrapartidas sociais a serem definidas de acordo com as características do grupo familiar”, além de a titularidade do recebimento já ser preferencialmente destinada à mulher responsável pela família.269 A estruturação do programa nesse

Decreto aponta para formas específicas de parcerias entre agentes locais e administrações públicas locais. De modo que a diferença com o funcionamento do PBF

267 Fonseca, Ana Maria Medeiros da.; Roquete, Claudio. Proteção Social e Programas de Transferência de Renda: Bolsa Família. In: Lilia Montali (org.). Caderno de Pesquisa NEPP. Proteção Social e Transferência de Renda. Edição Especial em Homenagem à Ana Fonseca, n. 86, jun. 2018, p.20.

268 Relatadas como “fragmentação” do governo em levantamento apresentado no trabalho de: Monteiro, Iraneth Rodrigues. Integração de políticas sociais: um estudo de caso sobre o Bolsa Família / Rio de Janeiro: 2011. Dissertação (Mestrado Profissional em Bens Culturais e Projetos Sociais) pelo CPDOC/FGV.

269 BRASIL. Presidência da República, Casa Civil, Subchefia para Assuntos Jurídicos Decreto n˚4.675,

de 16 de abril de 2003. Disponível em:

<http://legislacao.planalto.gov.br/legisla/legislacao.nsf/Viw_Identificacao/DEC%204.675- 2003?OpenDocument>. Consultado em 17 jun. 2018.

estaria na centralização da gestão do programa em formas já institucionalizadas.

Esse foi um debate que passou por uma pauta política localizada nos sentidos que seriam atribuídos ao papel das questões da fome e da pobreza no desenvolvimento social. No entanto, estava desarticulada desde seu início em seus princípios e compreensão de motivos.

A derrota dos Comitês Gestores pode ter representado também a derrota do projeto que tinha por expectativa reverter o modelo de gestão das políticas sociais instituído pelo governo anterior. Tal modelo havia sido nacionalizado com a expansão do Bolsa Escola e a criação do CadÚnico, definindo suas características e normas como tendência. Estes foram atos representativos da conformação das políticas sociais aos

Documentos relacionados