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ASSENTADOS NO SERTÃO: CONVERSAS, CAFÉS, JEITOS E MEMÓRIAS

2.2 O “PROGRESSO” NOS CAMINHOS DO SERTÃO

O sertão ora foi tratado como deserto, vazio humano e econômico, espacialmente periférico, fora dos dinâmicos centros culturais do mundo moderno, ora é conhecido e reconhecido pelo Brasil litorâneo. Este, sempre voltado para o mundo civilizado do além-mar, começa a deslocar seu olhar para as potencialidades no interior de seu território.

Para tanto, segundo Ribeiro (2005), era necessário desbravar e conhecer os sertões ―desterrar a ferocidade‖ dessa região, como definiu, em 1800, o naturalista José Vieira Couto, enviado à Capitania das Minas a fim de verificar a viabilidade econômica da região: ―E, assim, mais receitavam integrar o Sertão Mineiro ao ‗mundo civilizado‘ para sacudir e acordar seu povo com um ‗choque de progresso‘, pouco importando se ele o desejava, ou quais seriam suas expectativas de futuro‖ (RIBEIRO, 2005, p.347).

Cabe dizer que o processo civilizatório considerou não apenas o vazio demográfico, no sentido de domar a tímida população local, mas também voltou sua atenção para os aspectos relativos à natureza, especialmente à vegetação. Esta por muitos, depreciada, portanto, suscetível às demandas do progresso, justificava o futuro processo de avanço da fronteira agrícola e do capitalismo nas regiões dos cerrados.

Considerando o aspecto demográfico e a constituição vegetativa, vê-se uma condição propícia para propagação do progresso rumo ao sertão. João Guimarães Rosa (2001) corrobora esta ideia ao descrever este espaço como um lugar em que ―os pastos carecem de fechos, onde tudo dá, grandes fazendões almargem de vargens de bom render‖ (p.24). Observamos, a partir desse excerto, a importância econômica que poderia ser agregada por meio da exploração das potencialidades da região sertaneja.

Os espaços concebidos como sertões seriam a oposição ao litoral, o qual já experimentava o processo civilizatório, caracterizado

pela vida urbana que refletia traços da cultura europeia. Atualmente, é possível observar que em grande parte do sertão os ―fechos‖ se expandem a perder de vista, dividindo gentes, territórios e gerando conflitos. Para Moraes (2002), o sertão é

comumente concebido como um espaço para a expansão, como o objeto de um movimento expansionista que busca incorporar aquele novo espaço, assim denominado, a fluxos econômicos ou a uma nova órbita de poder que lhe escapa aquele momento. [...] Porém, como visto, a mera qualificação de uma localidade como sertão já revela a existência de olhares externos que lhe ambicionam, que ali identificam espaços a serem conquistados, lugares para a expansão futura da economia e ou do domínio político (MORAES, 2002, p. 14 e 19).

No sertão do noroeste de Minas a população (convivia) convive com o cerrado, as veredas e as matas secas, cenário no qual os sertanejos engendram estratégias contínuas de sobrevivência e convivência dentro de suas possibilidades e limitações. Entretanto, desde a segunda metade do século XX, experimentam a expansão dos interesses capitalistas e os reflexos das ideias globalizadoras na região. Espaço vital para essa população, a região converteu-se em atração econômica, devido as riquezas da flora, fauna e da exploração de outros recursos, como o hídrico e o gás natural, esse encontrado na bacia do rio São Francisco. Assim, essa biodiversidade continua atraindo e despertando interesses, prevalecendo a hegemonia do capital em agravo daqueles que encontram nesse espaço a existência. Em consequência disso, o cerrado e a população sertaneja que ali habitava/ habita, sofreu/sofre profundas transformações. Para Ribeiro,

[...] os projetos de modernização da agricultura, que criaram oásis de ―desenvolvimento‖ por várias regiões, a própria capital do país se transfere para o Planalto Central e o sertão se transforma em celeiro agrícola e até se industrializa. O êxodo para as grandes cidades esvazia o ―deserto‖: as cidades passam a concentrar a maioria da população e os problemas nacionais. O sertão diminui de tamanho, geográfica, social e politicamente, mas continua a ser o espelho para mostrar as situações sociais mais graves: fome, mortalidade infantil, ausência

de políticas públicas de saúde e educação (RIBEIRO, 2005, p. 58-59).

Reforçando e complementando essa ideia, Martins explana, No rural, no latifúndio está a gênese da gente do sertão, da identidade e do território. Nestes territórios está também a origem das múltiplas populações que ocupam estes territórios. A abertura e o fechamento econômico do latifúndio, no isolamento econômico e social, ora limitou ora fomentou a expansão da posse camponesa sobre a terra de trabalho (MARTINS , 2011, p.82).

Os autores, Ribeiro e Martins, acima elencados, evidenciam que o projeto de modernização, ao se direcionar para a região centro-sul do Brasil, colocou em risco a população e a economia camponesa, uma vez que o advento da urbanização e suas peculiaridades atraíram essas populações, tornando eminentes os problemas decorrentes desse processo, quais sejam a exclusão social, a favelização, a violência, entre outros. Também apontamos o aumento da demanda por produtos que estimulou/a o empreendimento de grandes proprietários, esses viram na região um potencial para o agronegócio. Consequentemente, se assistiu a uma desflorestação da mata nativa, a expulsão de trabalhadores rurais, a alteração das formas tradicionais de trabalho e plantio e o crescimento de conflitos pela terra.

Com a modernização incentivada pelo Estado, a partir da década de 1970, a conquista e a devastação das áreas do cerrado foram sendo concebidas e incentivada a partir de projetos de colonização e exploração agrícola. Tais empreendimentos tinham como objetivos tornar essa área grande produtora de Commodities28 para atender, principalmente ao mercado externo. Assim, o cerrado, considerado o

28 Commodities é o termo utilizado para se referir aos produtos de origem primária que são transacionados nas bolsas de mercadorias. São normalmente produtos em estado bruto ou com pequeno grau de industrialização, com qualidade quase uniforme e são produzidos e comercializados em grandes quantidades do ponto de vista global. Também podem ser estocados sem perda significativa em sua qualidade durante determinado período. Podem ser produtos agropecuários, minerais ou até mesmo financeiros. Disponível em www.agrolink.com.br/ acessado em 16 de setembro de 2014.

berço das águas, teve que se curvar ante a ampliação da fronteira agrícola.

A principal modificação ocorreu na utilização das terras, com a substituição das áreas de pastagens por monoculturas destinadas, sobretudo, às exportações, como a soja, o milho e o feijão. Vírgilio Martins Júnior, em entrevista realizada em agosto de 2014, expõe sua percepção sobre as consequências dessa ocupação,

A tecnologia de ponta ainda não tinha alcançado essa região aqui. A agricultura era desenvolvida de forma rudimentar, a aração era feita a boi e a roça era tocada na enxada mesmo, era um modelo que ocasionava menos impacto, né? Porque não tinha esse peso de máquinas agrícolas. Aí eu vi (...) e foi chegando paulista, gaúchos, japoneses e foram ocupando, ocupando, hoje tá isso aqui, a gente sofrendo, é uma colheita do que nós plantamos(...) na verdade o que pesou mesmo foi as culturas vindas de fora, vieram os japoneses a YKK, que é uma multinacional japonesa, gigantesca (...) ela comprou 30 mil hectares de cerrado, a topografia do cerrado (...) plano, né? As pessoas cresceram os olhos no cerrado(...) as pessoas que vinham de fora já enxergavam que a topografia favorecia o maquinário (...) desmataram tudo, o cerrado foi todo jogado no chão (MARTINS JÚNIOR, Virgílio, 05 de ago. 2014).

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As transformações advindas da modernização do campo e de sua ―remodelagem‖ ocorridas nesse bioma, para atender ao agronegócio, colaboraram significativamente para o desrespeito ao meio ambiente29. Acrescenta-se a isso, a substituição dos trabalhadores, a concentração fundiária e, por fim, o crescimento do êxodo rural. Outro fato decorrente da modernização agrícola bastante perceptível e significativo foi o aumento da área produtiva, bem como as desigualdades intrínsecas ao modelo econômico vigente, o capitalismo.

Nota-se nesse cenário a polarização do espaço sertão marcado pela produção hegemônica concentrada e pela exiguidade de

29Trataremos melhor dessas consequências no terceiro capítulo.

demandas sociais primárias. A perspectiva de uma racionalidade30 voltada à modernização agrícola limitada suscitou, sobremaneira, a exclusão e precarização das relações de trabalho. Segundo Santos,

[este é] o momento que estamos vivendo (a racionalização do espaço é esse limite) aponta para essa perda da razão. Mas, ao mesmo tempo, e felizmente, aponta para a possibilidade da construção de um novo sentido, a partir justamente da elaboração das contra- racionalidades, que a análise geográfica revela nos comportamentos atuais do campo e da cidade (SANTOS, 2004, p.310).

Nesse contexto, os atores que estavam fora da órbita hegemônica do capital seguiram em busca de formas alternativas para sua sobrevivência, as quais foram substituídas, em grande medida, pela tecnologia agrária, como ressaltou Virgílio ao relembrar o cenário inicial da expansão agrícola e a exclusão do camponês,

[antes] o que mantinha o homem do campo no campo, era a fartura. O homem do campo gostava do campo. Com o desmatamento da região, mudou a incidência das chuvas (...) já não tinha mais aquela fartura. A tecnologia já estava despontando, o uso da máquina, (...) os que

30 Racionalidade e Contra racionalidade em Milton Santos. Em obra mais recente, Santos (2006) chama a atenção para dois tipos diferentes de racionalidades nos circuito superior e inferior: a racionalidade orgânica (ou Contra-racionalidade) e a racionalidade organizadora (ou Racionalidade), de modo que o cotidiano dos mais pobres se confunde com o circuito inferior. O circuito superior é dominado pela racionalidade organizadora, de modo que não há nele qualquer espaço que não seja dominado pelos cálculos econômicos, pela economização. Não é assim no circuito inferior, aqui não se trata meramente de atividades econômicas (ao menos no sentido neoclássico que essa palavra carrega nos nossos dias). A dimensão econômica é, aqui, também a dimensão da vida e da coletividade. É neste sentido que se constitui o circuito inferior em processos pedagógicos que se conformam no senso comum, no tempo lento, no cotidiano, em uma racionalidade distinta, tratada por Milton Santos como Contra- racionalidade. (GALVÃO Victor Araujo. Por uma Contra-racionalidade Autônoma: as articulações entre a economia solidária e os softwares livres.) Disponível em http://xiisimpurb2011.com.br/app/web/arq/trabalhos.pdf acessado em 01 de out. de 2014.

vieram de fora, já enxergavam que a topografia favorecia o maquinário em substituição ao trabalho do homem. Qual foi a alternativa do trabalhador? Foram as carvoarias que estavam chegando a mil na região (...) ai o povo foi migrando das fazendas (...) foi saindo, buscando as carvoarias como [uma das] alternativa (s), precisava sobreviver. (MARTINS JÚNIOR, Virgílio, 05 de ago. 2014).

Na contemporaneidade, os personagens que outrora foram excluídos e/ou marginalizados, retomam e re-significam seus anseios políticos, sociais e culturais. Essa será, portanto, a temática que trataremos na seção a seguir, ao passo que refletiremos também sobre as populações desterritorializadas31, uma das características centrais do capitalismo em busca de uma territorialização como prerrogativa à sobrevivência.

2.3 TERRITÓRIO E TERRITORIALIDADE: SUA