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De acordo com Melo (2006), os estudos sobre literatura popular no Brasil s‚ ir•o iniciar a partir da segunda metade do sŠculo XIX, sob a Šgide da constru€•o de uma identidade nacional. ˆ nesse cen„rio que o crƒtico e folclorista Silvio Romero30 desenvolve seus estudos, apontando o mesti€o31 como ’agente transformador por excel†ncia• (ROMERO apud MATOS, 1994, p. 78) e produtor da verdadeira literatura popular, alŠm disso, Silvio Romero considerava tambŠm que, apenas os habitantes do sert•o, estavam ’em situa€•o propƒcia a produzir a legƒtima poesia popular• (MATOS, 1994, p. 75). A partir daƒ, buscava-se a desejada nacionalidade, que ’desde o Romantismo, este solo come€a a ser, mais ou menos timidamente cultivado pela escritura artƒstica, que procura alimentar-se de sua seiva ’natural• e ancestral, no intuito de produzir uma flora€•o vƒvida, aut‚ctone, original• (MATOS, 1994, p. 81).

Esse tipo de literatura que come€ava a despontar no Brasil tem suas origens no Ocidente e divide-se em dois seguimentos:

O primeiro Š a partir do sŠculo XII, como manifesta€•o leiga independente do sistema de comunica€•o eclesi„stico. Ele se caracteriza, sobretudo por ser uma linguagem regional e n•o em latim, que naquela Špoca era a lƒngua oficial de toda a Europa crist•. Aos poucos, porŠm, as pessoas do povo iam

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Foi pela boca do povo que Silvio Romero, na inf–ncia provinciana, travou conhecimento com a poesia popular. Quando ingressou na Rep•blica das Letras, j„ trazia consigo mem‚ria dessa poesia, impress“es que mais tarde derivaram em estudos eruditos e lograram as honras a tipografia (MATOS, 1994, p. 15). 31

O mesti€o, que Š o brasileiro por excel†ncia, pode-se considerar uma ra€a nova, de forma€•o hist‚rica, e servir de base para o estudo de nossas tradi€“es populares. Os brancos puros e os negros puros que existem no paƒs, e que ainda n•o est•o mesclados pelo sangue, est•o mesti€ados pelas ideias e costumes, e o estudo dos h„bitos populares e da lƒngua fornece as provas desta verdade (ROMERO apud MATOS, 1994, pp. 108 -109).

contando suas hist‚rias e compondo seus versos, de forma primitiva. [...]. Muito mais tarde, l„ pelo sŠculo XVIII, ap‚s a Revolu€•o Francesa, temos uma transforma€•o que vai repercutir por toda a Europa. ˆ a ascens•o da burguesia. AtŠ ent•o, toda cultura n•o latina era comum tanto a dominantes Œ nobres e cortes“es Œ como ao povo propriamente dito. Com a Revolu€•o Industrial e a tomada de poder por uma espŠcie de classe mŠdia da Špoca, houve uma tentativa da parte desta de alcan€ar n•o s‚ o poder mas aspectos culturais antes nas m•os exclusivas dos poderosos que acabavam de cair (LUYTEN, 1986, pp. 16-18).

No caso especƒfico do Brasil, a poesia popular ganha contornos variados, cuja abrang†ncia se dilata por todo territ‚rio nacional. Esse fato particularmente devia-se a predomin–ncia da popula€•o rural32. Contudo, dois acontecimentos contribuƒram significativamente para prolifera€•o da poesia popular brasileira. ’Um deles foi a imigra€•o europŠia no Sul do paƒs, que introduziu muitos moldes diferentes em detrimento dos que j„ existiam no local. Outro foi a grande expans•o nordestina para todas as „reas amaz‰nicas por ocasi•o do Ciclo da Borracha• (LUYTEN, 1986, p. 11). Por essa via, a poesia popular brasileira passa a adquirir um tra€o realista, que muitas vezes produziu uma vis•o ’negativa da vida no meio rural, conviveu com a tend†ncia a mitificar o sertanejo e sua terra, e com a busca de registro, reconstitui€•o e valoriza€•o de folclore regional, no sentido de incorporar … cultura liter„ria a narrativa oral• (MURARI, 2005, 1999). No entanto, esta literatura que estava florescendo, nasce sob o signo da arbitrariedade, j„ que

Um contƒnuo movimento de aproxima€•o e de afastamento caracteriza a busca da origem, experi†ncia caracteristicamente moderna que descreve esta trajet‚ria de retorno …s fontes da subjetividade, traduzindo-se, na literatura brasileira, pela valoriza€•o da terra natal. Na literatura brasileira, a partir do final do sŠculo XIX, a busca do passado individual confundia-se com o processo de fabula€•o de uma realidade tida como origin„ria para a nacionalidade, e que era ao mesmo tempo percebido como alteridade radical (MURARI, 2005, p. 200).

Assim, o sert•o33, ser„ caracterizado como sƒmbolo de ’autenticidade•, ’mobilizando um conjunto amplo de significados e adquirindo um forte apelo

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[...] logicamente devido …s dist–ncias, o entrosamento era muito pequeno, ainda mais, tendo-se em vista os sistemas de comunica€•o de massa de nossos dias. As diferen€as de express•o regional eram muito grandes e a poesia tambŠm. O padr•o linguƒstico da elite brasileira ainda era o de Coimbra ou Lisboa e o povo se expressava como bem podia (LUYTEN, 1986, p. 11).

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O uso liter„rio do termo fixou uma acep€•o bastante ampliada, denotando todo o interior do Brasil, o mundo rural em oposi€•o ao urbano, por defini€•o afastado da ’civiliza€•o•, ainda que geograficamente pudesse estar muito pr‚xima a ela (MURARI, 2005, p. 200).

emocional, ligado a este eterno retorno … origem na busca pelos signos da identidade nacional• (MATOS, 1994, p. 200). Invariavelmente, esse fato nos remete aos escritos Jonhann Gotfried Von Herder34 que baseava ’na ess†ncia intuitiva e espont–nea que caracterizaria a Naturpoesie (poesia primitiva, poesia da natureza, contraposta … Kunstpoesie ou poesia da arte)• (MATOS, 1994, p. 133). Vale ressaltar que a ’poesia natural• sempre esteve presente na GrŠcia antiga, ’Š possƒvel rastre„-la tanto nos mitos ‚rficos quanto na concep€•o plat‰nica sobre a origem divina da poesia• (MATOS, 1994, p. 160). Nesse sentido,

Para Herder a poesia da natureza emana de um saber n•o formal intuitivo, isento de conceitua€“es obscuras e abstratas; reflete o espƒrito do povo em sua totalidade, em sua juvenilidade incorrupta; essencialmente lƒrica, Š efus•o direta da alma, gerada no ƒmpeto imaginativo do homem primitivo e natural. Estes dons criativos primordiais debilitam-se sob o impacto desintegrador da civiliza€•o ’atŠ que finalmente vem a arte e sufoca a Natureza• com falsidade e artifƒcio. Na poesia de arte, a intui€•o transcendente e coletiva d„ lugar … reflex•o individualizada (MATOS, 1994, p. 160).

De acordo com Matos (1994) os irm•os Grimm35 d•o seq™†ncia as idŠias de Herder, mas, delimitam o campo da Naturpoesie … produ€•o an‰nima, ressaltando as fontes coletivas da poesia em parceria com sua voca€•o Špica. Tais considera€“es podem ajudar a compreender a ess†ncia da poesia popular nordestina, mais especificamente os versos de Patativa do AssarŠ36, na medida em que, o poeta estabelece ’um vƒnculo primitivo com a Natureza que ganha foros de origem cultural• (MATOS, 1994, p. 133), alŠm de trazer como fonte de inspira€•o os fragmentos do seu cotidiano sertanejo, perpetuando seu discurso poŠtico e profŠtico de tradi€•o oral, por meio da tradi€•o escrita37. A partir dessas constata€“es Patativa consegue ’implodir as dicotomias ordeiras que p“em cada sujeito no seu lugar n•o Š s‚ uma conquista te‚rica, Š tambŠm um prop‚sito moral e social• (MATOS, 1994, p. 198).

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Herder Š o primeiro intelectual a tentar uma caracteriza€•o cuidadosa da poesia popular (MATOS, 1994, p. 159).

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Os estudos folcl‚ricos do final do sŠculo XIX t†m na obra de Grimm uma de suas refer†ncias fundamentais, quanto aos processos de coleta, critŠrios de classifica€•o etc.. Encarando a poesia popular como reposit‚rio das ess†ncias primordiais do car„ter nacional (MATOS, 1994, p. 133).

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Para Patativa, o processo de cria€•o ecoa os romances de feira lidos, as hist‚rias de trancoso ouvidas e atŠ uma Asa Branca, da tradi€•o oral entoada por sua m•e (CARVALHO, 2009, p. 155).

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Patativa, paradoxalmente escreve para ser ouvido. O livro foi a maneira mais f„cil e mais legitimadora de fazer com que seus poemas ganhassem um registro, se fixassem deitados na escrita, mesmo com os riscos de perder parte de sua significa€•o que fica no gesto, na modula€•o da voz e se vai tecendo atŠ o instante final em que a voz ter„ cumprido sua fun€•o de suporte dessas mensagens (CARVALHO, 2009, p. 163).

Diante do exposto, verifica-se claramente que a literatura n•o Š apenas fruto de uma cria€•o estŠtica ou um instrumento did„tico ou de emancipa€•o cultural do indivƒduo, porŠm Š vi„vel perceb†-la como um eixo que converge para si constru€“es e discursos variados que almejam comunicar, dialogar e intervir diretamente no mundo, moldando muito daquilo que somos. Nesse sentido Nunes afirma que:

[...] da ades•o a esse ’mundo de papel•, quando retornamos ao real, nossa experi†ncia, ampliada e renovada pela experi†ncia da obra, … luz que nos revelou possibilita redescobri-lo, sentindo-o e pensando-o de maneira diferente e nova. A ilus•o, a mentira, o fingimento da fic€•o aclara o real ao desligar-se dele, transfigurando-o, e aclara-o pelo insigt que tem em n‚s provocou (NUNES, 1996, p. 3).

Com efeito, desta forma, visualiza-se a importante fun€•o da literatura como fonte relevante de pesquisa na rela€•o ser humano e natureza, alŠm de ser uma significativa express•o atravŠs da qual a sociedade pode se manifestar. No entanto, a literatura n•o Š apenas o reflexo da sociedade, mas uma fonte de informa€“es, cuja fun€•o social Š permitir que o homem se reconhe€a enquanto agente transformador de sua sociedade. Dessa forma,

A literatura pode, por um lado, servir de pe€a etnogr„fica para espelhar a sociedade e, de outro, contar como se d•o as rela€“es dos seres humanos com o mundo natural. Thomas (1988), Williams (1989) e Corbin (1989), por exemplo, usam como fonte de dados uma sŠrie de cita€“es hist‚ricas, pict‚ricas e liter„rias que permitem entender como a sociedade ocidental foi mudando de atitude em rela€•o …s plantas, aos animais, ao campo, … cidade e ao litoral (MEYER, 2008, p. 25).

Pontua-se que grande parte da produ€•o liter„ria apresenta a natureza como cen„rio, palco ou moldura onde se desenvolve a a€•o. Essa perspectiva vai de encontro …s estruturas de sentidos cartesianas que colocou o termo ’natural• como algo pejorativo, no qual a natureza passa a ser concebida como algo extremamente fr„gil e doente, separada do homem. Em contrapartida Merleau Œ Ponty prop“e um conceito de natureza viva, participante, criativa, em que a rela€•o com o ser humano Š de co- preten€a, j„ que ’a natureza Š um objeto enigm„tico, um objeto que n•o Š inteiramente objeto; ela n•o est„ inteiramente diante de n‚s. ˆ o nosso solo, n•o aquilo que est„ diante, mas o que sustenta• (MERLEAU Œ PONTY, 2000, p. 4).

Esse redirecionamento do olhar para a interpreta€•o da natureza como org–nica e espont–nea Š o que tem fundamentado os estudos recentes que envolvem literatura e ecologia. Essa rela€•o a princƒpio pode causar certo estranhamento, j„ que os estudos ambientais se voltaram ao longo do tempo a investigar apenas os registros do ambiente, n•o levando em considera€•o a rela€•o com os seres humanos. Nesse sentido, existe uma diferen€a marcante entre problemas de ecologia e problemas ecol‚gicos, o primeiro diz respeito a ’quest“es propriamente cientificas, a serem resolvidas pela formula€•o e verifica€•o de hip‚teses em experimentos ecol‚gicos• (GARRARD, 2006, p. 17), j„ o segundo os ’s•o aspectos de nossa sociedade provenientes de nossas maneiras de lidar com a natureza, dos quais gostarƒamos de nos livrar e que n•o vemos como consequ†ncias inevit„veis do que h„ de bom nesta sociedade• (PASSMORE apud GARRARD, 2006, p. 17). Tal distin€•o oferece-nos um campo abrangente, no qual o estudo entre literatura e ecologia nos permita ’transformar um problema (cientƒfico) da ecologia num problema ecol‚gico amplamente percebido, que foi ent•o contestado nos planos polƒtico e jurƒdico, nos meios de comunica€•o e na cultura popular• (GARRARD, 2006, p. 18).

Para tanto, se faz necess„rio adentrar no universo mƒtico desse ’trovador nordestino•, j„ que homem e poeta estabelecem uma imbrica€•o que se d„ de forma arbitr„ria, contribuindo para a ess†ncia de sua poesia, que nasce desta rela€•o tel•rica e imagŠtica, na qual seus versos s•o contaminados pelos elementos naturais e sociais.

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