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Projectos e planos editoriais relativos ao Livro do Desassossego e a

I. Projectos e planos editoriais

I. 3 Projectos e planos editoriais relativos ao Livro do Desassossego e a

Tanto no caso do Livro do Desassossego como no que diz respeito a Caeiro parece existir um período de pausa na escrita, entre o início e o final dos anos vinte. Na edição crítica do Livro do Desassossego não se encontra nenhum trecho datado, por Pessoa ou pelo editor, entre 1921 e 1928. Entre os poemas de Alberto Caeiro, encontram-se alguns datados entre 1915 e 1923, e posteriormente apenas entre 1929 e 1930. A inexistência de poemas datados entre 1924 e 1928 não significa necessariamente a impossibilidade de algum ter sido escrito neste período, no entanto estas datas são indicativas de um provável intervalo, que se pode constatar igualmente ao nível dos projectos editoriais. No caso das listas de projectos ou outros apontamentos de tipo editorial, não foi localizado nenhum que seja datável do período posterior ao lançamento da revista Athena e anterior a 1928 (cf. Anexo I). A correspondência deste período é principalmente de tipo comercial, interesse expresso aliás em publicações realizadas na mesma época, na

Revista de Comércio e Contabilidade (cf. CR, 246-260), para além de conter

referências esparsas a publicações anteriores, como no caso do envio de respostas a um inquérito a Augusto Ferreira Gomes em 1926, no qual Pessoa, em nome de Campos, sublinha não ter livros publicados:

Não tendo livros publicados, mas só poemas que valem mais que os livros dos meus contemporâneos de todas as falas, não lhe responderei senão entendendo poemas em vez de livros. (CO-I, 119)

A ideia de «entender poemas em vez de livros» resulta do facto de Pessoa associar a noção de obra acabada a uma organização que lhe é inerente, que num primeiro estádio seria o poema. Na Tábua Bibliográfica, escrita em 1928 e como resposta à insistência dos directores da revista presença na divulgação da obra, Pessoa afirma não ter qualquer livro publicado, nem tencionar «publicar — pelo menos por um largo emquanto — livro nem folheto algum.» (PR n.° 17, 10; cf. [30] e o esboço em [29]). No que diz respeito a publicações anteriores, Pessoa

designa os poemas ingleses por «folhetos», precisando ainda que nenhum «escripto heteronymo se publicou salvo em revista [↓ em folheto ou livro]», como se lê na cópia química do original enviado78. Os poemas de Alberto Caeiro publicados na revista Athena e aí designados por «excerptos dos poemas» são incluídos numa enumeração de obras atribuídas a Reis, Caeiro e Campos, pela primeira vez classificadas como «obras heteronymas» (idem). Pessoa omite neste elenco de obras a publicação de um trecho do Livro do Desassossego em 1913, que pela falta de uma referência acaba por ser classificado como «pequena composição», que estaria «por aperfeiçoar ou redefinir» (idem).

Apesar de Pessoa afirmar na Tábua que não tenciona publicar livro ou folheto algum, a verdade é que a correspondência com os directores da revista documenta o forte desejo dos mesmos em publicar textos de Pessoa e, com particular incidência a partir do início dos anos 30, a ideia partilhada de publicar a obra em vários volumes. A publicação da obra em livro, que Pessoa ainda na mesma Tábua associara a uma vigarice, por falta de público que a justificasse, será fortemente estimulada, em particular por João Gaspar Simões, um motivo que justifica os vários projectos e planos editoriais elaborados por volta do início dos anos 30. Ainda em carta a José Régio do início de 1928, Pessoa acedia ao convite para publicar na presença, enviando vários textos, declarando contudo a respeito do falecido mestre Caeiro, perante o qual se coloca uma vez mais na posição de editor póstumo: «Do extincto Alberto Caeiro não pude obter composição alguma, pois os parentes, ou testamenteiros, me não facultaram o traslado.» (CP, 61).

A partir deste mesmo ano, Pessoa é solicitado a organizar a publicação das obras de Mário de Sá-Carneiro, elaborando ainda antes da sua a Tábua

Bibliográfica de Sá-Carneiro. Nesta, Pessoa não só coloca a ideia de uma

«publicação definitiva» em termos muito semelhantes aos que utilizara para se referir à sua própria obra («Essa publicação definitiva não será feita por emquanto, pois não ha ainda publico, propriamente dicto, para ella»; PR n.° 16, 8), como a posição que para si reivindica de editor das obras do falecido amigo se

aproxima claramente da que assume nos casos dos poemas de Caeiro e do Livro

do Desassossego: «Mario de Sá-Carneiro deixou a Fernando Pessoa a indicação

de publicar a obra, que d’elle houvesse, onde, quando e como lhe parecesse melhor.» (idem). A julgar pela cronologia acima referida e analisada, não será despropositado pensar que terá sido sensivelmente a partir da morte de Sá- Carneiro em Abril de 1916 que Pessoa projectou apresentar-se como editor póstumo de um Livro do Desassossego escrito por Vicente Guedes, atribuindo primeiro a António Mora e depois a Ricardo Reis e aos parentes de Alberto Caeiro as tarefas de editar e prefaciar o livro de poemas do mestre.79

Entre o início de 1929 e o final de 1932, Pessoa publicou vários textos que indica como pertencentes ao Livro do Desassossego, em A Revista, presença (PR n.º 27, Jun. 1930 e n.º 34, Nov. 1931), Descobrimento e Revolução (cf. as indicações completas em LdD, 566-577), ao longo daquela que terá sido, não só tendo em conta as publicações, a fase mais produtiva de escrita do mesmo. Todos estes textos são acompanhados, com pequenas variações, pela indicação «Trecho | Do «Livro do Desasocego», composto por Bernardo Soares, ajudante de guarda- livros na cidade de Lisboa» (cf. LdD, 169), assinados porém, sem excepção, com o nome de Fernando Pessoa.

São datáveis do período inicial desta segunda fase de escrita, provavelmente ainda do final dos anos 20, uma lista de projectos editoriais, que inclui o «Livro do Desasocego» ([34]), assim como um plano que atribui a Bernardo Soares vários títulos, entre eles «Rua dos Douradores», que remete para um texto que lhe será contemporâneo (cf. LdD, 208-209), «Os trechos varios (Symphonia de uma noite inquieta, Marcha Funebre, Na Floresta do Alheamento» e ainda «Experiencias de Ultra-Sensação» ([32]). Sob esta última

79 Recorde-se que Pessoa indica no caso de Caeiro a data de 1915 como da sua morte, indicação

que se encontra em listas de projectos datáveis sensivelmente a partir de 1916 (cf. [12] e [20] a [22]). Note-se ainda que Caeiro, tal como Sá-Carneiro, teria vivido 26 anos (entre 1889 e 1915), para além da já por diversas vezes notada proximidade entre os apelidos (cf. a este respeito nomeadamente Zenith; 2001, 230). Sobre Caeiro escreve Pessoa na narrativa da génese dos heterónimos: «lembrei-me um dia de fazer uma partida ao Sá-Carneiro — de inventar um poeta bucolico, de especie complicada» (CP, 255). No caso do semi-heterónimo Barão de Teive, Pessoa constrói novamente a narrativa de um manuscrito legado por este ao seu editor póstumo. O paralelo desta com a situação decorrente do legado deixado por Sá-Carneiro é em qualquer dos casos evidente.

designação, Pessoa reúne vários poemas, entre eles Chuva Oblíqua, desta feita atribuída a Soares. Trata-se de um caso marcante de variação na atribuição de autoria, tratando-se de um poema que irá ter posteriormente um papel fundamental na narrativa da génese dos heterónimos, atribuído nessa mesma narrativa a Pessoa, que o teria escrito após o aparecimento do mestre Alberto Caeiro (cf. CP, 256). Esta atribuição de Chuva Oblíqua a Bernardo Soares tem a particularidade de implicar a sua inclusão numa determinada obra, dado o nome de Soares, como também no caso de Caeiro, funcionar aqui, por metonímia, como categoria delimitadora da obra intitulada Livro do Desassossego. Esta relação metonímica é evidenciada ainda pela existência de um documento cujo conteúdo é afim a este e no qual é o título a desempenhar a mesma função referencial que o nome de Soares:

Nota para as edições proprias. (e aproveitavel para o “Prefacio”)

Reunir, mais tarde, em um livro separado, os poemas varios que havia errada tenção de incluir no Livro do Desasocego; este livro deve ter um titulo mais ou menos equivalente a dizer que contém lixo ou intervallo, ou qualquer palavra de egual afastamento. (LdD, 452; cf. [33])

Como acontece por vezes neste tipo de notas, e também em listas de projectos ou apontamentos de cariz editorial, encontram-se indicações de que estas seriam parte integrante da própria obra. A indicação de que uma nota deste tipo seria «aproveitavel para o “Prefacio”» mostra como um pensamento a respeito da edição e publicação da obra é visto como parte integrante da mesma. A ideia de inclusão de Chuva Oblíqua no Livro não é totalmente surpreendente, se tomarmos em conta que Pessoa aproximara este poema do Interseccionismo e do Sensacionismo, em listas de projectos da década de 10. Bernardo Soares, nome que surge, à semelhança de Vicente Guedes, anteriormente como contista80, seria aqui a figura unificadora de textos aparentemente díspares. No entanto, já no primeiro plano lemos a indicação de que Soares seria principalmente um prosador, num apontamento que aproxima estes dois planos editoriais:

80 Cf. nomeadamente a lista de contos atribuídos a Bernardo Soares, publicada em GL, 553, que

se encontra num caderno onde as datas mencionadas se situam entre 1919 e 1921, o mesmo que contém a lista de projectos [25] (cf. também http://purl.pt/13883).

Soares não é poeta. Na sua poesia é imperfeito e sem a continuidade que tem na prosa; os seus versos são o lixo da sua prosa, aparas do que escreve a valer. (idem)

O dado surpreendente desta afirmação consiste em considerar «lixo» um poema como Chuva Oblíqua, que para lá da sua qualidade estética possui um valor fundamental no enquadramento narrativo da obra, testemunhado aliás pelas constantes oscilações no que respeita à sua autoria e a sua consequente posição na obra, como acontece com o próprio Livro do Desassossego. A afirmação de que

Chuva Oblíqua seria «lixo» é menos surpreendente se contextualizada. Sublinhe-

se, por um lado, que esta consideração não possui um valor absoluto, mas diz respeito aqui à obra atribuída a Soares e neste caso especificamente ao Livro do

Desassossego. Como noutros casos, nos quais Reis surge por exemplo como

crítico da obra de Caeiro ou Campos enquanto crítico de Pessoa, o termo «lixo» deve ser entendido com relação a um conjunto de textos que constituiriam um

Livro atribuído a uma figura com características próprias. Depreende-se aliás do

apontamento acima citado que esta designação depende essencialmente de uma ideia de organização do livro, que como Pessoa conclui não incluiria os poemas. Sendo «aparas do que escreve a valer», o termo remete ainda para o sentido de resto, de conteúdo marginal e que Pessoa acaba por considerar excluir. O que está verdadeiramente em causa aqui é a delimitação do livro, que após um plano inicial sofre duas correcções que, mantendo a sua atribuição a Soares, questionam radicalmente uma primeira ideia, remetendo para outros títulos conteúdos que inicialmente estariam integrados nele. A primeira exclusão é a da poesia, que seria integrada num livro de «refugos», «armazem publicado do impublicavel», como Pessoa acrescenta na citada nota ([33]; LdD, 452-453). A segunda seria a dos «trechos grandes», que correspondem aos textos que possuem título e que considerará então excluir:

Ha que estudar o caso de se se devem inserir trechos grandes, classificaveis sob titulos grandiosos, como a Marcha Funebre do Rei Luiz Segundo da Baviera, ou a Symphonia de uma Noite Inquieta. Ha a hypothese de deixar como está o trecho da Marcha Funebre, e ha a hypothese de a transferir para outro livro, em que ficassem os Grandes Trechos juntos. (LdD, 453; cf. [36])

A julgar por estas notas, Pessoa seria muito selectivo na escolha dos textos que integrariam o Livro, sendo persistente a dúvida quanto à sua inclusão

ou exclusão81. A ideia que frequentemente resulta da leitura do Livro do

Desassossego, partilhada por grande parte da crítica, de que este seria algo

metaforicamente próximo de um depósito para textos muito diferentes, o que resultaria num livro profundamente heterogéneo, plural, nunca definitivamente concebido para se adequar à sua inserção no suporte do livro e, por isso mesmo, um «anti-livro» (Zenith; 1998, 13), poderá adequar-se às edições postumamente realizadas, mas menos à precisão com que Pessoa o pretendia organizar:

L. do D. (nota)

A organização do livro deve basear-se numa escolha, rigida quanto possivel, dos trechos variadamente existentes, adaptando, porém, os mais antigos, que falhem à psychologia de B[ernardo] S[oares], tal como agora surge, a essa vera psychologia. Àparte isso, ha que fazer uma revisão geral do proprio estylo, sem que elle perca, na expressão intima, o devaneio e o desconnexo logico que o caracterizam. (LdD, 453; [36])

Se é certo que Pessoa tinha em mente um certo «devaneio e desconnexo logico» que caracterizaria os «trechos» do Livro, é transmitida a ideia de que a escolha desses mesmos trechos seria «rigida quanto possivel», implicando uma revisão global dos mesmos e organizada em torno de um princípio fundamental, o da sua adequação à «psychologia de Bernardo Soares». É este o princípio decisivo da organização não só do Livro do Desassossego como dos vários livros atribuídos a figuras concebidas como personagens de um drama, inseridas num conjunto no qual cada uma ocuparia uma posição rigorosamente determinada82. A

81 O primeiro documento do espólio de Pessoa, já por diversas vezes referido e publicado, é

encabeçado pela indicação: «A. de C. (?) | ou L. do D. (ou outra cousa qualquer)» (BNP/E3 1-1r;

cf. “Textos com destinação múltipla”, LdD, 473-489). Este é apenas um de vários exemplos da

dúvida de Pessoa quanto à inclusão de certos textos e que passa pela sua reunião sob um título e/ou um nome de autor. Este caso específico de dúvida entre uma atribuição a Álvaro de Campos ou a inclusão no Livro, cuja figura autoral é neste período Soares, encontra-se espelhada na seguinte passagem do esboço de prefácio a “Ficções do Interludio”, que reflecte sobre a semelhança entre os dois: «Ha notaveis similhanças, por outra, entre Bernardo Soares e Alvaro de Campos. Mas, desde logo, surge em Alvaro de Campos o desleixo do portuguez, o desatado das imagens, mais intimo e menos propositado que o de Soares.» (LdD, 455-456).

82 Importa entender esta «experiência da impossibilidade do livro» que o «Livro do

Desassossego» «representa» (Rubim; 2000, 217), este «livro impossível, ou possível na sua

função de texto sem cessar diferido, tal como ele existiu para Pessoa» (Lourenço; 2008, 113) não enquanto caso particular na obra mas como «símbolo» da «sua certeza do não-fechamento de todos os textos» (idem). Para além disso, é necessário precisar a relação existente entre «uma caoticidade textual empírica» e o modo como é «condicionada pela intenção expressa de Pessoa» (idem), intenção esta que não cultiva essa caoticidade ou o fragmento como experiência estética, mas persegue uma ideia estruturante de livro permanentemente questionada e tornada impossível pelo dinamismo e a instabilidade da obra no seu conjunto.

introdução tardia da figura de Soares como autor do Livro corresponde a uma segunda fase de organização do mesmo para publicação, seguindo-se à ideia anterior, datável do final dos anos 10, na qual uma função semelhante é atribuída a Vicente Guedes. Note-se como neste caso, uma vez mais, a atribuição de autoria é posterior à escrita de pelo menos um conjunto significativo de textos, dependendo do propósito de os organizar pela introdução de um princípio em torno do qual se exerce essa organização. O problema de «adaptar» trechos mais antigos a essa «vera psychologia», «tal como agora surge», terá sido uma dificuldade inultrapassável na ideia de organizar um livro que conheceu pelo menos duas fases muito distintas.83

Tal como no caso do primeiro projecto associado ao nome de Vicente Guedes, o propósito de organizar o livro para publicação é acompanhado da escrita de esboços de prefácios, explicitamente sob o título que seria o da publicação de um conjunto de obras intitulado Ficções do Interlúdio, ou enquanto textos de apresentação teórica que pelo conteúdo facilmente se adequariam a integrar um prefácio e terão sido pensados com esse propósito (cf. LdD, 454- 459)84. Nestes, Pessoa estabelece diferenças entre tipos de figuras às quais atribui obras, descrevendo tanto Bernardo Soares como o Barão de Teive como figuras

83 Já Jorge de Sena apontava para a importância de distinguir pelo menos duas fases de escrita, na

sua projectada introdução ao Livro, referindo-se até a três fases, sendo que a segunda se caracterizaria por uma «dormência hesitante e muito fragmentária», «até cerca de 29», seguindo- se a uma primeira «até 1914, e com recorrências até 1917» e antes de uma última «que corresponde à massa de datas que possuímos entre 22/3/29 e 21/6/34» (Sena; 1982, 207). Vemos como a intuição de Sena é confirmada não só pelos planos e projectos, como pelas edições que organizam os trechos cronologicamente, como as de Sobral Cunha (LD-I e II) e Pizarro (LdD). Sena aludira já ao facto de o nome de Vicente Guedes dever estar associado a uma primeira e o de Bernardo Soares a uma segunda fase, ideia confirmada por ambos os editores e pela datação das listas de projectos e dos prefácios. Outra linha de edição, que não privilegia o modelo cronológico, tem por base a ideia de que Bernardo Soares se afirmaria como a figura autoral do

Livro, substituindo anteriores atribuições (cf. Prado Coelho; 1982 e Zenith; 1998).

84 Existem fortes indícios, quer de conteúdo, quer materiais, para aproximar uma parte

significativa destes esboços do período entre 1929 e 1931, o mesmo já não acontecendo noutros casos, nos quais o editor, apoiando-se em propostas de datação de antigas edições, aproxima conjecturalmente da segunda metade da década de 10 (cf. LdD, 454-455). A ocorrência deste título na segunda metade dos anos 10 encontra-se aparentemente associada apenas à publicação de um conjunto de poemas assinados por Pessoa em Portugal Futurista, n.º 1, 1917, num plano manuscrito respeitante a este mesmo conjunto de poemas em BNP/E3 117-9 e ainda noutro em que «Ficções do Interludio — 5 poemas» é indicado como parte de um livro intitulado «Episodios.» (cf. BNP/E3 144U-47v e ainda, sobre Ficções do Interlúdio, a “Nota a Ficções do

«minhamente alheias», que escreveriam «com a mesma substancia de estylo, a mesma grammatica», não havendo lugar a uma absoluta distinção entre elas e o autor do prefácio (cf. LdD, 456-457). Independentemente das dificuldades de Pessoa em caracterizar as diferenças entre o que designa noutro esboço por «dois graus ou typos» de «invenções de personalidade» (idem), certo é que esta distinção funciona como critério para não incluir o Livro do Desassossego, obra atribuída ao mais tarde designado por semi-heterónimo (cf. CP, 258 e Anexo II, [24]), no conjunto das Ficções do Interlúdio:

Ha o leitor de reparar que, embora eu publique (publicasse) o Livro do Desasocego como sendo de um tal Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros da cidade de Lisboa, o não incluí todavia nestas Ficções do Interludio. É que Bernardo Soares, distinguindo-se de mim por suas idéas, seus sentimentos, seus modos de ver e de comprehender, não se distingue de mim pelo estilo de expôr. (LdD, 457)

Esta ideia de uma distinção que não é absoluta entre um eu que publica a obra e a figura de Soares estará na base da apresentação dos trechos publicados como compostos por Bernardo Soares, mas acompanhados da assinatura de Fernando Pessoa. Aquela que poderá ser lida como uma distinção entre Pessoa e Soares como entidades autorais pode também sê-lo entre o de uma figura que organiza, prefacia e publica a obra e outra que assume a autoria. Tal como no caso de Vicente Guedes, Fernando Pessoa seria aqui o nome da figura que edita e publica a obra, reflectindo sobre a sua exclusão de uma colecção que o mesmo editor intitula Ficções do Interlúdio.

Não se encontram muitas referências ao Livro na correspondência com os directores da presença. Em carta de Dezembro de 1930, Pessoa planeia enviar «qualquer trecho do “Livro do Desasocego”», o que não chega a fazer. Não sendo possível encontrar uma referência ao primeiro trecho enviado para a presença e publicado em Junho de 1930, o mesmo já não acontece com o segundo, publicado em Novembro de 1931. A respeito deste, Pessoa anuncia o envio de «um trecho do guarda-livros, de indole diferente dos que escolhi para o “Descobrimento”» (CP, 164), advertindo em carta seguinte para uma repetição propositada numa das frases desse trecho («um branco branco»), de modo a que o «typographo não me julge dactylographicamente repetente» (CP, 165). A preocupação de Pessoa com a materialidade do texto a publicar é reiterada na

mesma carta pela referência à ortografia, afirmando que ele próprio não seguia a ortografia corrente («orthografia republicana»), mas autorizando Gaspar Simões a modificá-la, «para a devida uniformidade da Revista» (idem; cf. também CP, 145).

Para além destas referências, aquela que será a passagem mais decisiva a respeito do Livro do Desassossego encontra-se em carta datada de 28 de Junho de

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