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O PROJETO KANTIANO PARA A PAZ PERPÉTUA

Kant não foi o precursor teórico de um projeto de paz. Anterior a ele, sobretudo na Modernidade, outros pensadores já tinham refletido e escrito acerca da guerra e da paz. Como frisa Kersting, “[...] a filosofia do Estado dos séculos XVII e XVIII era exclusivamente uma filosofia da paz”160.

Dentre os predecessores do projeto kantiano para a paz perpétua, pode-se brevemente citar: Dos índios e Do direito de guerra de Francisco de Vitoria (1482-1546) – tido como o fundador do direito internacional; O direito da guerra de Alberico Gentili (1552-1608); Do direito de guerra e da paz de Hugo Grotius (1583-1645); De iure natura et gentium [do direito de natureza e das gentes] de Samuel Pufendorf (1632-1694); Ensaio para se chegar à paz presente e futura na Europa de Willian Penn; Projeto para tornar perpétua a paz na Europa de Charles-Irénée Castel de Saint-Pierre (1658- 1743); Resumo do projeto de paz perpétua do senhor abade de Saint- Pierre de Jean-Jaques Rousseau (1712-1778); a carta de Leibniz (1646-1716) a Grimarest de junho de 1712; Direito das Gentes do filósofo, jurista e diplomata suíço Emer de

Vattel (1714-1776); Um plano para a paz universal e perpétua de Jeremias Bentham (1748-1831) – o primeiro a usar a terminologia “direito internacional” (International Law)161.

Além dessas produções teóricas, na prática, já em 1616, tinha sido criada em Heidelberg a Cadeira de direito natural e direito das gentes dispensada por Espinosa e assumida por Pufendorf162.

Já que Kant não fora o primeiro a propor um projeto de paz, qual seria então o diferencial do seu projeto perante os teóricos que o precederam? Estas investigações indicarão cinco possíveis diferenciais:

(i) é um projeto universal, portanto não restrito a um determinado continente geográfico, à comunidade europeia, por exemplo;

(ii) não se limita aos Estados cristãos, mas, pelo contrário, tem abrangência cosmopolita;

(iii) não se fundamenta em elementos religiosos ou teonômicos, de modo que não se utiliza das Sagradas Escrituras – como é o caso de Francisco de Vitoria e Alberico Gentili – para legitimar seus argumentos. No dizer de Adela Cortina, À paz perpétua kantiana se dá nos limites da razão, ou seja, é um projeto “noológico”163 [νους];

161 Anterior a Bentham era utilizado o termo “direito das gentes” para

designar o direito que se referia ao problema da guerra e da paz entre as nações. Cf. TRUYOL. “A modo de introducción: la paz perpetua de Kant en la historia del derecho de gentes”. In ARAMAYO (Org.). La

paz y el ideal cosmopolita de la ilustración: a propósito del bicentenario de

hacia la paz perpetua de Kant, p. 17.

162 Cf. Ibid.

163 CORTINA. “El derecho a la guerra y la obligación de la paz”. In

(iv) é um projeto em que a paz não é decidida a partir da arbitrariedade de um monarca ou da vontade de uma determinada elite política (uma aristocracia), mas depende exclusivamente do consentimento dos cidadãos (concepção republicana de paz);

(v) enfim, é um projeto (fundacional) que está embasado em pressupostos a priori morais e jurídicos que têm na política a esfera mediadora entre os referidos princípios e a realidade histórica dos Estados e dos homens em concreto. Até aqui foram propostos alguns pressupostos morais, jurídicos e políticos como bases de sustentação do projeto kantiano de paz. Cabe agora investigar os temas fundamentais que perpassam o projeto em si.

Kant estruturou seu projeto em seis artigos preliminares que compõem a primeira seção, em três artigos definitivos que compõem a segunda seção, e, por fim, em dois suplementos e dois apêndices.

Segundo Soraya Nour, essa estrutura não é uma novidade; ela era comumente utilizada nos séculos XVII e XVIII nos tratados de direito internacional público – naquele tempo denominado direito das gentes. Havia, em documentos distintos, um tratado preliminar contendo as condições para o fim da guerra, e um tratado definitivo contendo os princípios fundamentais para a consolidação da paz entre os Estados, um artigo secreto, uma garantia e dois apêndices164. Um dos diferenciais estruturais precípuos

de À paz perpétua perante os tratados tradicionais é que Kant juntou as partes dos tratados, antes separadas, em um único projeto.

O escopo desta segunda parte do livro é fazer uma exposição temática e não simplesmente estrutural de À paz

164 Cf. NOUR. À paz perpétua: filosofia do direito internacional e das

perpétua. Os artigos preliminares e definitivos, os suplementos e os apêndices serão sem sombra de dúvidas trabalhados, mas trata-se de recolher os pontos chaves que os sustentam e transformá-los em fio condutor da investigação.

Nesse sentido, para os seis artigos preliminares serão analisados os seguintes temas: (i) a distinção kantiana entre tratado de paz e federação de paz; (ii) o princípio da não- instrumentalização do Estado; (iii) o princípio da não- instrumentalização do indivíduo; (iv) o princípio do não- endividamento bélico; (v) o princípio da não-intervenção; (vi) o princípio moral da mútua confiabilidade estatal e a proibição da guerra de extermínio. Na concepção de Carl Friedrich,

os seis artigos preliminares contêm as condições negativas do estabelecimento da paz entre os Estados: as proibições e as leis impostas aos Estados contratantes. Todos os seis artigos constituem a rejeição explícita das práticas existentes, em particular, das próprias práticas dos Estados monárquicos despóticos tal qual a Prússia165.

Para os artigos definitivos serão investigados os seguintes temas: (i) o estado de natureza interestatal e o veto irresistível da razão prática; (ii) o conceito kantiano de guerra; (iii) o republicanismo enquanto mediação normativa do poder e da guerra: a hegemonia cidadã; (iv) federação de povos, Estado de povos e república mundial; (v) o direito cosmopolita e a contradição do colonialismo.

165 « Les six articles préliminaires contiennent les conditions négatives

de l’établissement de la paix entre les États : les interdictions et les lois imposées aux États contractants. Tours les six constituent le rejet explicite des pratiques existantes, en particulier, des pratiques propres aux États monarchiques despotiques tels que la Prusse. » FRIEDRICH. « L’essai sur la paix, sa position centrale, dans la philosophie morale de kant ». In WEIL (et. al.). La philosophie politique de Kant, p. 149.

Para o primeiro suplemento será estudada a garantia teleológica da paz: a interconexão entre natureza e direito; para o primeiro apêndice será exposta a interconexão entre moral, direito e política no âmbito da paz perpétua; e para o segundo apêndice será exposto o princípio da publicidade enquanto critério de justiça. As investigações serão consolidadas com a análise do segundo suplemento que esta pesquisa intitulou filosofia, poder e paz: a tarefa do filósofo na construção da paz.

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OS ARTIGOS PRELIMINARES E

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